Num tempo marcado por paradoxos e urgência, a função de Chief Sustainability Officer não representa apenas a gestão de indicadores ESG ou relatos de conformidade. Antes um dever de leitura do mundo, de mediação ética e de construção de coerência num contexto fluido e desafiante. Este testemunho parte da experiência vivida e reflete sobre as competências e compromissos inerentes à função de CSO hoje – e no futuro -, sem a pretensão de responder integralmente ao repto do que significa “ser ou não ser CSO”. Na verdade, todos seremos um pouco, se acreditarmos na nossa capacidade de moldar um futuro diferente – ou, no pior cenário, de conseguirmos adaptar-nos com lucidez, coragem e compaixão. Mas ser CSO é escolher permanecer: sustentar o desconforto da dúvida, o desafio da responsabilidade e a inspiração de um legado partilhado. Porque o que está em causa não é apenas a sustentabilidade de um negócio, de uma organização, mas a permanência digna neste “planeta habitável[1]”.

“CSO” – Chief Sustainability Officer – a sigla anglo-saxónica que designa um exercício de natureza diretiva, integrado no registo de competências “C-Level”, e responsável por liderar a resposta organizacional aos desafios do desenvolvimento sustentável. Mais do que um cargo, traduz uma missão estratégica: representar a visão da sustentabilidade na estrutura de topo da organização, assegurando a coerência entre valores fundamentais, decisões, impactos e oportunidades. O reconhecimento formal desta responsabilidade decorre, sob conformidade, da nomeação pela gestão de topo, que assim delega a representação institucional neste domínio cada vez mais crítico às organizações.

Entre paradoxos, vivemos com o maior volume de informação sobre os limites do planeta, com a sofisticação da tecnologia e dos instrumentos de medição, e a exigência da regulação afeta aos riscos ambientais, sociais e de governação. E, ainda assim, nunca estivemos tão próximo de ultrapassar irreversivelmente as linhas vermelhas que, ano após ano, sucessivos relatórios baseados na ciência ou na factualidade dos registos sociais e económicos nos alertam para o que de verdade importa: assegurarmos que o “nosso desenvolvimento suprime as necessidades que temos, hoje, sem comprometer a capacidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades”[2]. Sem comprometer, ainda mais, os recursos naturais e ecossistemas que nos têm permitido viver a nossa humanidade e projetar metas de qualidade de vida para mais de 8 mil milhões de pessoas. O repto não mudou desde que ficou registado em 1987. Mas enquanto sociedade, modelo económico e comunidade global interligada, permanecemos aquém da transformação necessária.

Neste contexto, o papel de Chief Sustainability Officer (CSO) ultrapassa largamente uma descrição funcional. Assumir esta responsabilidade é responder a um desígnio exigente: interpretar a complexidade, conciliar diferentes interesses e assegurar a coerência de um compromisso que se traduz nas escolhas quotidianas. Não se trata apenas de coordenar políticas ou alinhar relatórios com marcos regulammentares, mas de saber ouvir, compreender, ler os sinais do tempo e contribuir para que as decisões de hoje não comprometam a dignidade da Vida, amanhã.

Como as personagens que na literatura conciliam razão, “sensibilidade e bom senso[3], a função de CSO é chamada a equilibrar discernimento estratégico e consciência humana. Exige mais do que conhecimento técnico e capacidade de trabalhar em equipa – requer determinação, criatividade, responsabilidade transversal e uma profunda clareza de propósito. Numa realidade tantas vezes marcada por paradoxos e tensões, é nesta interseção entre dever institucional e sentido de missão que reside a legitimidade das pessoas que ocupam esta função.

Escrever sobre o que significa “ser CSO”, remete para uma reflexão sobre competências essenciais. Sem verdades absolutas, porque “caminante, no hay caminho; se hace camino al andar”[4]. E este é um caminho de permanente construção. No desempenho profissional e na evolução humana. Descobrir que o que fazemos é sempre pouco para o muito que desejamos ajudar a transformar.

Contexto atual e desafios emergentes

Ser CSO é estar no epicentro de transformações globais, para além do relato regulamentar, da gestão de riscos não financeiros ou do cálculo de emissões, as matérias mais facilmente assimiláveis hoje, e que tendem a relegar a conciliação entre a pessoa humana e a natureza, entre a extraordinária capacidade de edificar e a irresistibilidade do poder sem consequências. A função evoluiu para integrar e dar sentido à multiplicidade de pressões, normas, métricas e expetativas, traduzindo complexidade em clareza e impelindo à transformação de compromissos em ação.

Promover uma estratégia corporativa com dinâmicas regulatórias, análises internas de viabilidade e de conciliação com o “business-as-usual”, enquanto se valorizam as expetativas das partes interessadas – numa sociedade onde a tecnologia abre espaço para tudo e o seu contrário -, desafia à postura de escuta ativa, capacidade narrativa e entendimento dos sistemas socioambientais. E das comunidades que servimos.

Ao mesmo tempo, os desafios sociais e climáticos exponenciam-se e atravessam os limites do tempo que gostaríamos de ter. Desde o aquecimento global, à perda de biodiversidade, desequilíbrios nos ecossistemas e desigualdades sociais – conceitos difíceis de assimilar, por defesa ou por nos aproximarem da nossa própria finitude -, as organizações enfrentam uma forma crescente de escrutínio: não apenas o que fazem, mas como fazem, com quem fazem e com que impactos.

Nesta realidade liminar, para a qual a incerteza geopolítica tende a contribuir, é quase inevitável lembrar as figuras que aguardam a chegada da nuvem radioativa no silêncio do fim do mundo, on the beach[5]. Também o exercício desta função opera entre a urgência e a espera, entre a lucidez e a esperança, entre o sonho e a realidade; na necessidade de agir com serenidade num contexto que, por vezes, convida ao esmorecimento; na liderança com sensibilidade e ética, mesmo quando não há garantias de resultado.

A singularidade desta responsabilidade acometida reside, também, na sua multipolaridade: a função de CSO salvaguarda a atuação estratégica, diplomática, educadora, conselheira – e, sobretudo, capaz de que conferir sentido, coerência e rumo à agenda de sustentabilidade, contribuindo para os valores fundamentais da cultura corporativa. Trabalhando, em suma, como “sense-maker in chief”[6].

Como?

Não existem competências fixas, mas um conjunto de capacidades dinâmicas em constante evolução que preconizam uma conduta de rigor, respeito e solidariedade, e um compromisso com algo maior do que o reconhecimento imediato. Por vezes, gere-se no “aguçado fio da navalha”[7] – quando o equilíbrio entre a integridade e a ambição, entre o possível e o desejável, exige consciência do propósito e resiliência perante a complexidade.

Poder-se-ão estruturar essas capacidades em cinco dimensões:

Sentido estratégico e visão sistémica. Compreender os sistemas nos quais a organização opera e reconhecer interdependências, traduzindo tendências globais em estratégias viáveis, equilibrando riscos e oportunidades de forma orientada para a geração de valor e a tangibilidade dos impactos.

Capacidade narrativa e influência. Mais do que comunicar, inspirar. No storytelling, vive a capacidade de construir narrativas que juntem factos, dados e emoção, alinhando razão e sensibilidade, para mobilizar diferentes públicos ou partes interessadas. O contributo para a sustentabilidade não é um testemunho fechado no tempo, antes uma longa história de entrega da organização, que se escreve e enriquece sempre que se comunica mais um passo neste caminho. Representa o melhor que a empresa, enquanto pessoa coletiva, faz – a sua ambição e o compromisso com um bem maior: o nosso futuro comum.

Literacia multidisciplinar e análise crítica. Conhecer e integrar conhecimento diversificado, em face das dinâmicas e desafios que múltiplas solicitações trazem, mas também questionar pressupostos, tensionar verdades e promover a reflexão crítica e trabalhar a acessibilidade de uma nomenclatura própria junto dos que não a dominam.

Inteligência emocional e empatia ativa. O legado de Sensibilidade e Bom Senso. Perene ao tempo, porque a disponibilidade para ouvir e compreender, respeitando diferentes vozes e culturas, assenta numa ética do cuidado, capaz de promover a colaboração e a confiança.

Aprendizagem contínua e inovação. Numa agenda global em constante mutação, importa ter disponibilidade para “desaprender” e reaprender, para experimentar, iterar, cocriar soluções e manter o compromisso com a integridade ao longo de cada novo processo, ou da revisão de existentes.

Aptidões moldadas entre o propósito e o pragmatismo, num percurso em que ser CSO é, simultaneamente, ser aprendiz e guia.

O desenvolvimento destas competências depende de ambientes que as acolham e cultivem. Para isso, é necessário que as organizações:

  1. Reconheçam o papel estratégico da função de CSO, mas também da pessoa que receberá essa missão, assegurando acesso aos centros de decisão e autoridade para alinhar a sustentabilidade com a operativa de negócio;
  2. Promovam o desenvolvimento contínuo, através de programas de aprendizagem, redes colaborativas, contacto com realidades externas e reflexão transversal;
  3. Valorizem a experimentação e a confiança, criando espaço para a inovação responsável e tolerância ao erro;
  4. Fomentem a diversidade e a escuta plural, porque os sistemas mais resilientes são mais diversos e consistentes;
  5. Cuidem do lado humano da liderança, promovendo bem-estar, pertença e comunidades de prática para reforço mútuo e suporte emocional.

Três letras para uma trilogia virtuosa – sensibilidade, bom senso e sentido de missão

Ser CSO é, verdadeiramente, um exercício de sentido: interpretar a complexidade do mundo envolvente e criar coerência entre valores, decisões, impactos, mas também oportunidades, sustentando uma teimosa e, por vezes regular, tensão entre os sonhos e as restrições, entre o urgente e o essencial.

Nesta reflexão, três livros e um poema ajudaram a construir a narrativa. Particularmente, moldaram o meu caminho – de vida e de profissão. São referências que guardo, partilho e continuo a perseguir neste caminho de todos os dias: agir com sensibilidade sem perder o bom senso; manter o foco no propósito, mesmo entre dissonâncias envolventes; e escolher a dignidade e a ética, mesmo diante da incerteza. Não são verdades inexoráveis, mas portos de abrigo. Lugares onde regresso quando a pressão ou a confusão ameaçam desfocar os valores e princípios que sustentam o desígnio de gerir o contributo corporativo para o desenvolvimento sustentável, das suas pessoas, das partes interessadas que moldam o quotidiano e esperam o futuro.

Chief sustainability officers são tradutores da complexidade, construtores de sentido, guardiões da esperança e arquitetos do possível. Se há idealismo e generosidade nesta reflexão? Talvez. Mas o pragmatismo e os permanentes desafios inerentes à função oferecem o contrapeso de realismo necessário para desenhar, com lucidez, o percurso.

Ser ou não ser CSO. Todos seremos um pouco, porque acreditamos que somos capazes de moldar um futuro diferente ou, no pior cenário, de nos adaptarmos a eventos e circunstâncias exigentes ou desconhecidas. Mas é mais do que isso: é permanecer num caminho que vale a pena percorrer. Sustentando num modelo de governação corporativa que reconhece a relevância deste perfil. Pelo bem da entidade da qual fazemos parte e das pessoas que a edificam; pelo seu legado e pelo futuro que, convictamente, enquanto embaixadores da sustentabilidade queremos ajudar a desenhar. Olhar para além de nós. Para além da organização.

Paula Viegas,
CSO | Banco Montepio

[1] Expressão utilizada pelo Banco Mundial

[2] “O nosso futuro comum”, Relatório Brundtland, Nações Unidas, 1987

[3] Jane Austen (escritora)

[4] António Machado Ruiz (poeta)

[5] Nevil Shute

[6] in https://www.deloitte.com/global/en/Industries/financial-services/perspectives/the-future-of-the-chief-sustainability-officer.html

[7] W. Somerset Maugham