No primeiro ato de “Fausto”, de Goethe, o protagonista, insatisfeito com os limites do conhecimento e do progresso humano, faz um pacto para obter respostas definitivas. De forma análoga, também a Alemanha, nas eleições deste domingo, parece presa num dilema irresolúvel. No entanto, ao contrário do personagem literário, felizmente não houve pacto com o diabo para encontrar um caminho claro. O país passou semanas a reagir e a justificar-se, sem nunca delinear um futuro concreto. No final, ficou a pergunta: que Alemanha querem realmente os principais candidatos?

Esta campanha eleitoral revelou-se atípica e, por muitos aspetos, a mais inusitada das últimas quatro décadas. O que deveria ter sido um debate aprofundado sobre os desafios estruturais da Alemanha — o seu papel na União Europeia, a transição energética, a segurança e a competitividade e o crescimento económica — foi, em vez disso, dominada por uma batalha constante de respostas e defesas. Nenhum dos principais candidatos conseguiu impor uma narrativa de futuro, optando antes por responder a ataques, crises e medos emergentes. A campanha tornou-se, essencialmente, uma reação contínua ao crescimento da extrema-direita e à ameaça que esta representa para a democracia.

A mobilização popular foi um dos aspetos mais marcantes destas eleições. Contudo, não foi uma mobilização inspirada por um candidato ou projeto de governação específico. Milhares de alemães saíram às ruas não para exaltar a visão de um partido, mas para defender os valores fundamentais da democracia e dos direitos humanos. Percebeu-se que, mais do que um embate eleitoral comum, a campanha eleitoral foi um momento de luta pela preservação do modelo democrático do país. O crescimento da Alternativa para a Alemanha (AfD, extrema-direita) e a sua crescente aceitação no debate político trouxeram à superfície um receio latente: até que ponto está a sociedade alemã disposta a tolerar o extremismo?

As interferências externas desempenharam um papel significativo, amplificando as tensões já existentes no debate político alemão. Declarações de Donald Trump e Elon Musk, disseminadas através das redes sociais, não só alimentaram o discurso populista e anti-imigração como reforçaram algumas das narrativas mais perigosas da extrema-direita. No caso de Musk, a interferência foi ainda mais flagrante: apoiou deliberadamente a AfD sem qualquer conhecimento real da política europeia, da história alemã ou, sequer, das verdadeiras posições do partido. Um gesto irresponsável que demonstra como figuras influentes do mundo empresarial e tecnológico podem intervir no jogo político sem qualquer compreensão das consequências.

O caso mais preocupante veio da esfera oficial dos Estados Unidos. O vice-presidente J.D. Vance deslocou-se à Europa para fazer um discurso que, em vez de fortalecer a relação transatlântica, atingiu diretamente o cerne da aliança entre a Europa e os Estados Unidos. Ao invés de reafirmar o compromisso histórico entre ambas as regiões, Vance adotou um discurso que, de forma quase incompreensível, sugeria que o verdadeiro problema da Europa era a sua relutância em aceitar os extremismos. Uma afirmação que não só revela falta de noção alarmante sobre a realidade política europeia como representa um perigoso alinhamento com narrativas que legitimam movimentos antidemocráticos.

O impacto destas interferências não se limitará à Alemanha. Este parece ser apenas o ensaio para uma estratégia mais vasta, que poderá ter a sua próxima manifestação no Reino Unido. O precedente está lançado e, se não for travado, o cenário europeu poderá tornar-se cada vez mais vulnerável à influência de atores externos que, longe de compreenderem a complexidade política do continente, agem por impulsos ideológicos e interesses próprios.

A crise intensificou-se quando Friedrich Merz, líder da União Democrata-Cristã (CDU) e provável vencedor destas eleições, tentou um golpe de teatro político ao apresentar, de forma precipitada, uma moção no Bundestag (Parlamento). A intenção era clara: consolidar a posição da CDU/CSU (União Social-Cristã) face ao avanço da extrema-direita. No entanto, a escolha do momento e da estratégia revelou-se desastrosa. A proposta foi rapidamente rejeitada, um desfecho previsível, dado que já se sabia que não reuniria apoio suficiente no Bundesrat (Senado). O fracasso desta jogada não só expôs a fragilidade da estratégia de Merz como desviou o foco dos verdadeiros desafios estruturais do país, desperdiçando tempo político precioso num gesto com impacto real e extremamente negativo.

Infelizmente, o momento mais crítico da campanha ocorreu quando um ataque deixou mais de 30 feridos e resultou na morte de dois cidadãos. Este trágico acontecimento, que em qualquer democracia madura deveria ter conduzido a um debate sério sobre segurança, estabilidade e combate ao radicalismo, foi tratado de forma populista pela classe política. Muitas vezes, o incidente foi instrumentalizado para reforçar discursos já existentes, sem um verdadeiro esforço para abordar as causas profundas do problema. O resultado foi um período de polarização extrema, em que a campanha se esvaziou de conteúdo programático e se tornou um reflexo das ansiedades coletivas.

O debate público reduziu-se a uma constante gestão de crises. Cada candidato tentou sobreviver ao ciclo noticioso, desviando-se de declarações controversas, distanciando-se de erros passados e reagindo ao que a opinião pública ditava. O verdadeiro problema é que a Alemanha, no meio de tudo isto, perdeu tempo. Perdeu tempo a discutir a extrema-direita em vez de apresentar soluções concretas para os desafios estruturais do país. Perdeu tempo a justificar escolhas do passado em vez de debater um plano claro para o futuro.

Num momento crucial para a segurança e estabilidade da Europa, as eleições alemãs deveriam ter sido um espaço para a afirmação de uma liderança forte, uma visão clara e reformas ambiciosas. O que tivemos foi um debate sem ideias, num dos momentos mais importantes da história recente. Tal como Fausto, a Alemanha parece estar à procura de um caminho, dividida entre a incerteza e o medo. Mas, ao contrário da tragédia literária, onde o protagonista pelo menos tinha um desejo de saber, esta campanha pareceu caracterizar-se pela ausência de qualquer desejo genuíno de mudar. E isso, para a Alemanha e para a Europa, pode revelar-se um preço demasiado alto a pagar.

A ascensão da AfD, que nas sondagens alcança cerca de 21% das intenções de voto, duplicando o seu resultado de 2021, é um sinal claro do descontentamento de uma parcela significativa da população com os partidos tradicionais. Este crescimento reflete uma sociedade cada vez mais polarizada, onde o medo e a desinformação encontram terreno fértil. A retórica anti-imigração e eurocética da AfD ressoa sobretudo em regiões que se sentem deixadas para trás pelo progresso económico, expondo as fraturas existentes na unidade social alemã.

A sociedade alemã, conhecida pelo seu compromisso com o consenso e a estabilidade, enfrenta agora um teste decisivo. As manifestações em massa contra a extrema-direita demonstram que há uma vontade coletiva de defender os valores democráticos. No entanto, a eficácia destas mobilizações depende da capacidade dos líderes políticos em canalizar este sentimento para ações concretas que abordem as preocupações legítimas dos cidadãos, sem recorrer a soluções simplistas.

As urnas indicarão um país dividido entre dois blocos políticos irreconciliáveis. De um lado, uma extrema-direita que ultrapassará os 20%, consolidando-se como força política com influência real no Parlamento. Do outro, um campo progressista fragmentado: um Partido Social-Democrata (SPD) que caminhará para o pior resultado desde o século XIX, A Esquerda à deriva e os Verdes, cuja política ambientalista e social será diametralmente oposta à da CDU, que, por sua vez, assumirá uma posição ainda mais à direita. A possível não entrada do liberal FDP no parlamento apenas reforçará o impasse.

Perante este cenário, a questão impõe-se: que Governo poderá ser formado? Merz estará encurralado entre dois blocos antagónicos, sem espaço para alianças naturais e sem margem para um Executivo de estabilidade. Estará disposto a ceder ao extremismo para garantir governabilidade através do parlamento Pu optará por uma aliança precária e disfuncional com partidos cuja visão de país é radicalmente oposta à sua?

O dilema do eleitorado oscilará entre o voto útil para evitar o pior e o voto envergonhado que reforçará as polarizações. No final, a Alemanha poderá sair destas legislativas sem verdadeiro rumo, empurrada para um período de incerteza política, onde cada passo será dado entre a necessidade de governar e o risco permanente de implosão parlamentar. Se a CDU vencer, governará como e com quem? Ou estaremos a assistir ao início de uma era de governos curtos, instáveis e incapazes de realizar reformas estruturais? O destino da Alemanha está em jogo, e a resposta será tão incerta quanto a eleição que se aproxima.