
A União Europeia tem apostado, nos últimos anos, num quadro regulatório assente na responsabilidade social corporativa e na justiça social. Tem sido assim em matéria de ambiente, sustentabilidade social, igualdade e proteção de dados pessoais.
Nos últimos anos, foram aprovados, pela União Europeia, entre outros atos legislativos, o Regulamento Geral de Proteção de Dados; a Diretiva de proteção do denunciante; a Diretiva relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade; a Diretiva relativa à conciliação entre a vida profissional e familiar; a Diretiva para melhorar o equilíbrio de género nos órgãos sociais das empresas cotadas na bolsa (“Women on Boards”); a Diretiva sobre o trabalho prestado nas plataformas digitais; e a Diretiva sobre transparência salarial. Tudo isto, para além do Regulamento Europeu sobre Inteligência Artificial.
Todas estas diretivas e regulamentos, que se seguem a outras tantas em matéria de igualdade e não discriminação, estão centrados na proteção de direitos fundamentais e na igualdade e não discriminação enquanto igualdade de oportunidades. Ou seja, mais do que afirmar que todos são iguais perante a lei, a União Europeia tem promovido a igualdade substantiva, criando novas oportunidades para quem tem mais dificuldades de acesso ao mercado de trabalho ou de progressão na carreira, através de medidas de ação positiva. No caso do acesso das mulheres a órgãos sociais das empresas ou do acesso de deficientes ao mercado de trabalho, tais medidas passam pela criação de quotas.
O referido movimento europeu, centrado na sustentabilidade e justiça social, vinha, de resto, seguindo de perto o que foi sucedendo nos Estados Unidos da América desde o Civil Rights Act de 1964 até 2025. Desde os anos 60, do século passado, que os EUA vinham apostando, não apenas na igualdade e não discriminação em termos formais, mas também nas referidas medidas de ação positiva (afirmative actions) em benefício das mulheres, afro-americanos, veteranos de guerra e outras tantas minorias, designadamente comunidades indígenas e pessoas com deficiência.
As referidas affirmative actions vinham corporizando as políticas federais e empresariais denominadas por “DEI – Diversidade, Equidade e Inclusão” (Diversity, Equity and Inclusion). Tudo isto parece ter desabado com a nova Administração Trump, que aprovou duas ordens executivas exclusivamente centradas na eliminação das políticas de DEI.
Em 20 de janeiro de 2025, foi aprovada a Ordem Executiva (OE) n.º 14151, intitulada, “Ending Radical And Wasteful Government DEI Programs And Preferencing”. Nesta OE, eliminam-se todos os programas de DEI que vinham sendo implementados nas agências federais, sob a acusação de que tais programas promovem uma “discriminação forçada, ilegal e imoral”.
Em 21 de janeiro de 2025, surge a OE n.º14173, intitulada, “Ending Illegal Discrimination and Restoring Merit Based Opportunity”. Neste caso, o foco são as grandes empresas, instituições financeiras, indústria farmacêutica, companhias aéreas e instituições de ensino, acusadas de utilizarem “preferências perigosas, aviltantes e imorais baseadas na raça e no sexo sob o disfarce da chamada diversidade, equidade e inclusão".
A OE incita o setor privado a terminar com todas as políticas de DEI e ordena as agências federais a tomar as medidas necessárias para garantir o cumprimento da mesma. Diz-se, no essencial, que as empresas privadas que não puserem termo a tais políticas de DEI devem perder todos os fundos e subvenções estatais, bem como o acesso a contratos administrativos.
O que se passa é claro e historicamente relevante: os EUA puseram termo ao ideal de igualdade de oportunidades, decretando o fim de todas as affirmative actions, quer no seCtor público, quer no privado. Mantêm a ideia de igualdade formal e não discriminação, mas proscrevem qualquer medida de ação positiva em favor de minorias étnicas ou de género. As grandes empresas privadas e as instituições de ensino, como sucede com Harvard, são visadas e “acossadas”.
É nesse contexto que se coloca a questão: e a Europa, como fica?
Seguirá a União Europeia esta nova tendência, ou, pelo contrário, manterá a linha que vinha seguindo até então? A resposta não é clara e suponho que ninguém conseguirá ao certo prever o futuro, que depende em larga medida das lideranças políticas em cada um dos Estados-membros. Admito, em qualquer caso, que a situação possa evoluir no seguinte sentido:
a) Relativamente a temas que têm que ver com a proteção de direitos fundamentais – proteção de dados pessoais, da privacidade e do denunciante – creio que a Europa não vai andar para trás; pode desacelerar o seu ímpeto legislativo, não aprovando novas medidas, mas não andará para trás relativamente ao que já está em vigor;
b) Quanto a matéria de igualdade, o mais provável é que a Europa também mantenha tudo quanto já existe e foi aprovado relativamente à igualdade e não discriminação em sentido formal. Todas as diretivas e regulamentos que impedem a discriminação em função do género, da raça ou da orientação sexual deverão ser para manter e não serão certamente revogadas. O mesmo em relação às diretivas sobre igualdade e transparência salarial, tanto mais que, recorda-se, as referidas ordens executivas estado-unidenses afirmam que mantêm o desiderato de proibição de discriminações; o que revogam, são as affirmative actions relativas a programas de DEI;
c) Maiores dúvidas existem quanto ao que a Europa irá fazer em relação a medidas de ação positiva que beneficiam mulheres e minorias. Ou seja, será que a Europa saberá afirmar a sua independência, autonomia e os seus valores e manter o desígnio de justiça social e de igualdade de oportunidades que vinha promovendo? Ou, pelo contrário, acabará também por seguir a tendência do outro lado do Atlântico e revogar estas políticas de igualdade, em nome de desideratos de competitividade? Infelizmente, ninguém sabe ao certo o que vai suceder.
Julga-se que a Europa deveria seguir o seu próprio trajeto nesta matéria. Seja por uma questão de soberania, seja porque estamos a falar de valores e da cultura jurídica europeia, seja porque os mesmos estão inscritos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e no Pilar Europeu dos Direitos Sociais. Ou seja, deveria preservar o essencial em matéria de proteção da dignidade das pessoas e deixar as empresas e o sector privado desenvolverem livremente as suas políticas de responsabilidade social, sem qualquer ameaça de retaliação.
Todavia, entre o que deveria fazer e o que fazer vai uma longa distância, que só as lideranças (?) europeias podem percorrer. Resta saber se tais lideranças saberão estar à altura do momento ou se também soçobram perante o novo “hard power” dos EUA.