Foi à ficção científica que o governo dos Estados Unidos da América (EUA) foi buscar o nome ‘Operação Velocidade Warp’, com o qual batizou o seu programa de desenvolvimento, testes e distribuição da futura vacina contra a Covid-19. Quem conhece as séries de televisão Star Trek: O Caminho das Estrelas sabe que as naves espaciais deste mundo futurista conseguem atingir a velocidade ‘warp’, ou seja, viajam a uma velocidade superior à da luz, só que, segundo as atuais leis da física, tal não parece possível. Vamos ao que interessa. A investigação científica, a do mundo real, tem o seu próprio ritmo – e ele pode ser lento –, pois criar uma vacina para um novo vírus implica muita investigação e testes que revelem a sua real eficácia e segurança. Daí que, e ao contrário do que possa afirmar o presidente dos EUA, é ficção julgar que uma vacina estará disponível, para inoculação em massa, antes das eleições presidenciais de 3 de Novembro.
Quem o garante é Alex Azar, o próprio Secretário de Saúde do presidente Donald Trump: espera-se que cem mil doses da vacina possam estar prontas no final do ano, mas só talvez em março de 2021 existam doses suficientes para inocular todos os que vivem em terras do Tio Sam. Mesmo assim, subsistem receios de que haja aqui um otimismo desmesurado e perigoso, com vários cientistas e especialistas em doenças infeciosas a temer que a vacina seja distribuída antes de adequadamente testada. As farmacêuticas envolvidas já asseguraram, em setembro, que os testes clínicos não serão influenciados por pressões políticas e, tampouco, porão em causa a segurança e eficácia da vacina.
Mas se quisermos um exemplo do que são más decisões, políticas e científicas, quando se trata de desenvolver e distribuir, o quanto antes, uma vacina nova, não é preciso mudar de país. Basta recuar no tempo. Déjà vu?
O receio de uma nova epidemia de gripe suína nos EUA levou, em 1976, a um ambicioso e custoso programa de vacinação, destinado a inocular todos os cidadãos norte-americanos em poucas semanas, o qual degenerou em “fracasso” e “fiasco”, como resumiu então o jornal The New York Times. A tão propalada epidemia nunca chegou a dar sinais de si, e, pior ainda, os efeitos secundários registados em algumas das pessoas vacinadas, algo normal de acontecer aquando de uma inoculação em massa, tiveram um eco mediático, com muito exagero à mistura, que deixaram sequelas na opinião pública.
Um dos piores erros foi pressão política por parte do presidente republicano Gerald Ford, para ter uma vacina em tempo recorde, aliada ao pouco conhecimento científico que existia sobre a nova estirpe de gripe, assim como o excesso de confiança. Um tiro no pé que acabou por minar a confiança na medicina preventiva e nas vacinas, nos anos vindouros.
A história, para marcamos um início, começou a desenrolar-se em Fevereiro de 1976, numa base de treino militar situada em Fort Dix, no estado da Nova Jérsia. Foram aí detetados, em mais de 200 soldados, uma variante desconhecida da gripe suína, tendo-se presumido que a transmissão ocorreu entre humanos, pois nenhum dos infetados esteve em contacto com porcos. Já agora, convém explicar que a gripe suína tem origem numa estirpe do vírus Influenza A que seja endémica a porcos, daí que seja conhecida por vírus influenza suíno. Tendo em conta que, com o passar do tempo, vão sempre surgindo novas estirpes, algumas com potencial para se espalhar mais rapidamente e com maior eficiência de pessoa para pessoa, o exército e o Governo dos Estados Unidos da América entraram em modo de alerta.
O gabinete do presidente Gerald Ford sentiu o peso de ter de fazer decisões urgentes, até porque, descobriu-se, as pessoas com menos de 50 anos não tinham anticorpos para esta nova gripe suína. Vieram logo à memória o pânico e o número avultado de mortos provocados pelas últimas três grandes pandemias de Influenza A: a gripe espanhola (do subtipo H1N1) de 1918, que se pensa ter tido origem nos campos de batalha da I Guerra Mundial e foi responsável por 50 milhões a 100 milhões de falecimentos, em todo o mundo; a gripe asiática (H2N2) de 1957 que emergiu no Leste da Ásia, responsável a nível global por 1,1 milhões de vítimas fatais; e a gripe de Hong Kong (H3N2) de 1968, responsável por um milhão de mortos no planeta. Só nos EUA, e segundo o Centro para o Controlo e Prevenção de Doenças do país, cada uma foi responsável por 675 mil, 116 mil e 100 mil mortos, respetivamente.
Não deixem matar as galinhas
Para aumentar ainda mais a pressão, os responsáveis pela saúde pública avisaram que existia uma só oportunidade de obter uma vacina antes do final de 1976, pelo que tudo dependeria da capacidade de tomar decisões e agir num piscar de olhos. Tudo porque a indústria farmacêutica tinha acabado de produzir as vacinas para a gripe comum sazonal, a que se juntava a proximidade da época de abate das galinhas por uma outra indústria, a avícola. E o que têm as galinhas e os galos a ver com o caso? Na década de 1970, a vacina contra o vírus da gripe ainda era criada em ovos fertilizados de galinha, pelo que o abate destes animais atrasaria em vários meses a produção de uma vacina contra uma pandemia que se julgava eminente.
O cheque, no valor de 137 milhões de dólares (ao câmbio de hoje), foi passado pela Casa Branca com o objetivo de ter uma vacina pronta até ao outono – estávamos em março de 1976. “O seu objetivo era o de imunizar todos os homens, mulheres e crianças nos EUA, pelo que era o maior e mais ambicioso programa de imunização alguma fez realizado nos Estados Unidos”, escreveu Pascal Imperato, responsável por liderar este programa de vacinação na cidade Nova Iorque, num artigo publicado em 2015.
A receita para tudo correr mal foi bem resumida pelo jornalista Richard Fisher, da BBC: “Em retrospetiva, é fácil ver que os medos daquela época eram infundados. A estirpe da gripe suína detetada em Fort Dix não era perigosa, e não haveria pandemia. Mais tarde, os investigadores descobriram que estirpes benignas da gripe suína já circulavam na população dos Estados Unidos, muito antes de esta ser identificada na base militar. E os cientistas que temiam outra gripe espanhola não sabiam que a gripe de 1918 era aviária, não suína. Os investigadores daquela altura também sofriam de uma espécie de efeito de recência [a tendência para assumir que eventos futuros vão assemelhar-se, em muito, aos de experiência recente]: com base na [sua] experiência das décadas de 1950 e 60, presumiram que as grandes pandemias de influenza aconteciam em ciclos de 11 anos, quando na verdade são mais irregulares”.
Indemnizar as vítimas de efeitos secundários, quem pagou?
O “fiasco” de 1976 tem mais um capítulo que pode ter reforçado, nos EUA, alguma da desconfiança que existe para com a indústria farmacêutica. Há quem também suspeite que pode ter servido de dínamo ao movimento anti-vacinas.
Em junho, as farmacêuticas que estavam a desenvolver e a testar a vacina pararam tudo o que estavam a fazer, após lhes ter sido negado um Seguro de Responsabilidade Civil – em que o segurador cobria o risco de estas empresas terem de indemnizar terceiros, devido a efeitos secundários da vacina. O próprio Congresso dos EUA recusou o pedido das farmacêuticas para serem ressarcidas, caso fossem obrigadas a indemnizar quem desenvolvesse problemas de saúde devido à inoculação.
Não obstante, e um mês depois, as farmacêuticas acabaram por voltar ao trabalho, após a Casa Branca ter conseguido que o Congresso passasse legislação a garantir o pagamento, pelo Estado, de qualquer indemnização decretada pelos tribunais. Estas decisões aumentaram a perceção, negativa, de que o programa de vacinação estava politizado e que algo de mau poderia estar a ser escondido da opinião pública. O sentimento de desconfiança ganhava, assim, raízes.
David Sencer, que à época era o diretor do Centro para o Controlo e Prevenção de Doenças, recordou, trinta anos depois, como tudo começou a descambar: “Embora o ultimato dos fabricantes [de vacinas] refletisse a tendência para o aumento de litígios [em tribunal] na sociedade americana, a sua mensagem subliminar não intencional, [mas] inconfundível, retumbava que 'Há algo de errado com esta vacina'. […] Esta falsa perceção, justificável ou não, assegurou que todos casos de saúde, coincidentes, que ocorressem após a vacina contra a gripe suína fossem escrutinados e atribuídos à vacina”.
Outubro de 1976 e nenhum sinal de pandemia. Mesmo assim, o programa de vacinação seguiu por adiante. Foi então que o inferno chegou à terra, pelo menos a crer nos relatos que chegavam da imprensa. Nessa semana, e na cidade de Pittsburgh, três pessoas morreram de ataque cardíaco, inexplicavelmente e após terem sido vacinadas, reportaram os jornais. Mais tarde, o tabloide New York Post fazia o seu relato do que tinha sucedido numa “clínica da morte” (palavras do jornalista) do estado da Pensilvânia: “Uma das pessoas idosas, Julia Bucci, de 75 anos, estremeceu com a agulha hipodérmica no seu braço, deu alguns passos débeis e caiu morta no chão do posto de saúde. Mesmo à frente dos olhos de todos”.
Um caso de sensacionalismo mediático, pois, tal como salienta o jornalista Richard Fisher, “as histórias, como acabou por se descobrir, eram falsas e enganadoras”. Uma bola de neve, pois “embora não houvesse nenhuma evidência causal ligando estas mortes à vacina”, muitas pessoas decidiram alegar que tinham desenvolvido problemas de saúde, “culpando falsamente a inoculação”, o que levou “nove estados a encerrar os seus programas”.
O problema é que, eventualmente, acabaram por surgir verdadeiros casos de efeitos secundários, algo expectável quando se vacinam milhões. Dezenas de pessoas desenvolveram a síndrome de Guillain-Barré, uma reação autoimune do organismo humano que afeta os nervos periféricos do corpo, e que pode surgir, embora raramente, após uma imunização.
Face a tudo isto, o programa de vacinação, inevitavelmente, acabou suspenso em dezembro de 1976, após a vacinação de 20% da população. A pandemia de gripe suína, essa, nunca chegou. Entretanto, e dado que o Governo responsabilizou-se pelo pagamento de eventuais indemnizações por efeitos secundários, surgiram diversos pedidos de compensação da parte de quem tinha a síndrome de Guillain-Barré. Em suma, quem pagou toda a conta deste empreendimento foram os cofres do erário público.
A culpa não morre solteira. Uma lição para quem quer uma vacina à la minute
Tal como frisa Richard Fisher, há quem aponte que o grande erro estratégico esteve no anúncio, prematuro, do programa de vacinação em massa. Por ter sido feito tão cedo, acorrentou a administração do presidente Ford a um compromisso político que não a deixou, mais tarde, adaptar-se às novas evidências científicas e tomar diferentes decisões.
Segundo as memórias de David Sencer, o presidente Gerald Ford e outros decisores políticos foram repetidamente informados de que uma pandemia era possível, mas sem que se esclarecesse sobre qual a probabilidade de efetivamente acontecer, nem mesmo quando essa probabilidade foi descendo com o passar dos meses.
O passado serve de aviso ao futuro, portanto: “Quando presidentes e primeiro-ministros fazem promessas ousadas ao público, como a Operação Velocidade Warp, transformam um processo científico numa promessa política”, frisa Fisher. Além do mais, acrescenta, para um cientista a palavra “possível” pode querer dizer que a probabilidade de acontecer é de um num milhão, enquanto para um político é uma luz verde para agir de imediato.
Não foi só o excesso de confiança nos modelos teóricos de então, que continham assunções erradas e se baseavam em evidências escassas, que levaram os cientistas envolvidos a também sujar-se no lodaçal que foi o programa de vacinação de 1976. Tal como indica Harvey Fineberg, antigo presidente do Instituto de Medicina de Washington, num artigo de 2008, eles não foram tão neutrais quanto deveriam ser: muitos defendiam a inoculação em massa porque ela ia ao encontro de uma “agenda prévia”. Essa agenda incluía o desejo de cientistas em provar as suas próprias convicções científicas, entre elas a ideia de que a “prevenção de doenças através da vacinação era um aperfeiçoamento, alcançável, da condição humana”; aumentar a reputação das instituições para os quais trabalhavam; ou, ainda, promover alguns modelos de prevenção da saúde pública – como as parcerias público-privadas.