A COVID-19 travou por completo o turismo de massas, ao ponto de cidades que antes estavam inundadas de visitantes, como Veneza ou Lisboa, terem ficado com as ruas quase desertas. Este livro, apesar de ter sido publicado pela primeira vez em 2019 (nos Países Baixos), não corre o risco de tornar-se obsoleto na crítica que faz ao turismo?
Infelizmente, não se tornará obsoleto, e por muitas razões. É claro que este turismo de massas parou de uma forma que não se imaginava, por causa da pandemia. Existe um documentário, da autoria do realizador veneziano Andre Segre, com imagens de Veneza durante a pandemia, e são imagens de uma beleza de tirar o fôlego: foi maravilhoso ver Veneza assim tão vazia. Mas, ao mesmo tempo, temos uma forte consciência, enquanto espectadores, do quão trágico tudo aquilo é, porque não há forma alguma de Veneza sobreviver sem os turistas. A pandemia mostrou-nos, em primeiro lugar, o quão vulneráveis estamos perante a monocultura do turismo. Em segundo lugar, mostrou que o verdadeiro problema de Veneza não é a ausência de turistas, o problema reside na ausência de qualquer outra alternativa ao turismo. Neste ano e meio que passou, seria de esperar que tivéssemos aprendido algumas lições – até porque há outros problemas, como as alterações climáticas, para o qual temos de dar resposta –, só que, infelizmente, todos os sinais apontam na direção de que nada aprendemos.
Em Itália, os políticos e aqueles que criam as políticas do país estão a tentar que o turismo de massas volte o mais rapidamente possível. É considerado demasiado importante para a economia do país.
Revela falta de visão, de fantasia, quando a única coisa em que conseguimos pensar, como forma de ganhar a vida, consiste em vender os nossos passados
Em Portugal, a tendência aponta para que se queira fazer exatamente o mesmo e pelo mesmo motivo. Esta aparente incapacidade de colocar em marcha outras e novas alternativas para o futuro é um problema que afeta o resto da Europa?
Essa é a grande questão que o meu romance levanta. O caso de Veneza é, claramente, um exemplo extremo, mas a mesma tendência é visível um pouco por toda a Europa, incluindo Lisboa. O que tento questionar em Grand Hotel Europa é se Veneza figura como um símbolo para o resto da Europa: ou seja, o que se passa com Veneza será o destino do Velho Continente?
Revela falta de visão, de fantasia, quando a única coisa em que conseguimos pensar, como forma de ganhar a vida, consiste em vender os nossos passados. Neste momento, quando já estamos a conseguir rastejar para fora da crise pandémica, sinto-me extremamente desiludido e desapontado por notar que a única coisa em que conseguimos pensar é em voltar à mesma situação de antes. No último ano e meio, em que quase tudo esteve parado, não surgiram novas visões ou ideias.
É muito importante compreender que o turismo de massas não é, de forma alguma, um fenómeno inócuo, apesar de os políticos dizerem o contrário. É um fenómeno que causa grandes danos, pois arruína as infraestruturas sociais, relega as populações para uma existência servil em que quase só podem ser empregados de mesa ou servir ao balcão. Há muitas consequências do turismo de massas que não são tidas em consideração.
As populações de algumas cidades europeias, como Amesterdão e Barcelona, parecem ter chegado a um ponto de exaustão e começaram a mobilizar-se para exigir que se coloque um freio ao turismo de massas. Isso é possível?
Em termos práticos, é extremamente difícil travar este tipo de turismo, ou reduzi-lo a um nível que possamos considerar razoável, se os governos não estiverem dispostos a intervir no mercado livre. Se quisermos que algo mude, verdadeiramente, só assim parece ser possível. A lógica do mercado livre trará sempre mais turistas, e, consequentemente, mais estruturas e negócios destinados a eles. Será preciso dizer ao dono de uma casa que, a partir de agora, não a pode alugar mais a turistas, ou que em determinada rua não haverá mais cafés ou bares. A pequena livraria local tem de se manter onde está, mesmo que o arrendatário possa ganhar dez vezes mais alugando o local a uma loja de recordações para turistas. Só que tudo isto é muito difícil de aplicar. Em cidades como Veneza, Amesterdão e Barcelona existe o sentimento de que alguma coisa tem de ser feita, mas, como já disse, na prática é muito difícil fazer algo.
Os governos podem atuar ao nível das permissões: rejeitando pedidos para que se construam mais hotéis, prevenindo que determinados tipos de lojas possam instalar-se em determinadas áreas, protegendo outras e evitar que desapareçam. Há muitos instrumentos legais que existem e podem ser usados. Mas tudo isto entra em choque com a ideia de livre empreendedorismo, e, contra isso, é difícil regatear.
Os turistas chegam a determinados sítios com a ideia de que têm o direito a estar aí, de que esses lugares são para eles. Não chegam com a ideia de que vão aprender alguma coisa, através de uma troca cultural com a população local.
O que está a suceder a cidades como Veneza ou Paris, transformadas em enormes museus a céu aberto, é algo realmente novo? No livro Morte em Veneza do Nobel da Literatura Thomas Mann, lançado em 1912, a trama decorre numa Veneza pejada de turistas abastados – aristocratas, famílias da alta burguesia, intelectuais e nomes famosos da cultura europeia –, sendo que as autoridades tentam esconder um surto de cólera que surgiu na cidade, receando uma debandada de todas estas pessoas. A grande diferença, em relação à Belle Époque (final do século XIX e início do de XX) parece ser a de que o turismo se democratizou e deixou de ser acessível a uma elite. Não concorda?
É verdade que Veneza é um destino turístico há muito tempo. Mas repare num pormenor: um dos motivos pelo qual se vai hoje a Veneza é o de, igualmente, seguir os passos desses turistas de antigamente, dessa gente famosa. Os turistas atuais querem ir, por exemplo, ao bar que Ernest Hemingway frequentava em Veneza.
Seja como for, existe uma enorme diferença entre esse velho estilo de turismo e aquilo que agora sucede. O atual turismo de massas é um fenómeno global. Os 20 milhões de turistas que chegam a Veneza todos os anos [exceção feita durante a pandemia] vêm, em grande parte, de fora da Europa. Grande parte deles são chineses, e o seu número deverá continuar a crescer. Uma das consequências deste turismo de massas foi a depopulação da cidade. No século XIV, Veneza tinha à volta de 200 mil habitantes, neste momento só restam perto de 50 mil. Quase todos os habitantes locais estão a abandonar a cidade. Quando o Thomas Mann esteve em Veneza, ainda aí viviam muitas pessoas, mas nas décadas de 1970 e 1980 tudo começou a mudar e a cidade esvaziou-se.
Ligado a este turismo de massas está o surgimento de alojamentos do estilo Airbnb, assim como a compra de casas por investidores [na especulação de as vender, depois de as restaurar, a um preço maior], o que levou a que fosse mais difícil aos locais viver em Veneza. No entanto, esta democratização do turismo só foi mesmo possível com o surgimento dos voos low cost, através de companhias aéreas como a Ryanair e a Easyjet.
Apesar de todos os problemas que refere, a possibilidade de tantas pessoas poderem conhecer melhor os seus vizinhos europeus não ajuda a formar uma identidade cultural comum, a ideia de que fazemos parte de uma enorme e vasta família europeia, herdeiros de um vasto e diferente passado cultural?
O turismo de massas, tal como hoje existe, é uma experiência incrivelmente superficial, para a maior parte das pessoas. Não acredito que os turistas neerlandeses, alemães ou ingleses que vão ao Algarve estejam interessados na cultura portuguesa. Em Veneza é a mesma coisa: os monumentos estão lá e, se estivermos interessados, podemos visitar museus maravilhosos, mas, no fim, não vamos conhecer nenhum veneziano, não teremos um intercâmbio cultural capaz de nos enriquecer.
Lamentavelmente, tudo isto tem semelhanças com as velhas ideias de colonialismo. Os turistas chegam a determinados sítios com a ideia de que têm o direito a estar aí, de que esses lugares são para eles. Não chegam com a ideia de que vão aprender alguma coisa, através de uma troca cultural com a população local.
O projeto europeu, a ideia de unificar a Europa, parece-me ser a única resposta que temos para um outro futuro
O escritor austríaco Stefan Zweig, pouco antes de se suicidar em 1942 (em plena Segunda Guerra Mundial), escreveu um livro de memórias, O Mundo de Ontem, onde dá conta de uma Europa que, a nível cultural e civilizacional, definhou desde o início da Primeira Guerra Mundial. É uma obra cheia de nostalgia em relação a um suposto período de ouro, onde se nota a perda de esperança em relação ao futuro do continente. O autor, basicamente, sente que se tornou num objeto do passado, alguém que está desajustado da nova realidade turbulenta em que a Europa então mergulhou. No livro que o Ilja escreveu existe um sítio, o chamado Grand Hotel Europa, em que as personagens aí hospedadas transmitem o mesmo sentimento: vivem fora do seu tempo, estão presas ao passado e à nostalgia, com o hotel a funcionar como refúgio para elas.
Sim, as pessoas que vivem no Grand Hotel Europa são assim. Aliás, todas as personagens do romance estão, de uma ou outra forma, muito presas ao passado... com a excepção de Abdul, um refugiado, para quem o passado é um sítio muito feio. O livro que escrevi fala sobre como o passado parece ser a única coisa que marca presença no continente europeu.
A escrita deste livro está muito ligada ao facto de me ter mudado para Itália há 13 anos, e a minha mudança dos Países Baixos para cá teve muitos efeitos. Um deles foi o de que comecei a sentir-me menos neerlandês e mais italiano. Contudo, o efeito mais importante é que comecei a sentir-me mais europeu. Mas, depois, comecei a debater-me com a questão sobre o que significa sentir que se é europeu, o que é o sentimento de identidade europeia. No meu entender, quando começamos a pensar nessa pergunta não é preciso ir muito longe para perceber que isso tem a ver com a omnipresença do passado. O passado, no Velho Continente, está por todo o lado. Nós vivemos no meio do passado, vivemos entre monumentos gloriosos construídos há séculos.
Claro que todo este passado que nos rodeia faz parte da nossa riqueza, mas existe, igualmente, um senão. Quando passamos toda a vida rodeados de gloriosos monumentos do passado, cedo ou tarde torna-se tentador pensar que os melhores tempos ficaram para trás, que o passado é mais glorioso que o presente: isso é a nostalgia. Paradoxalmente, este sentimento nostálgico faz parte do que é a identidade europeia, está em nós. Os europeus sempre acreditaram que os melhores tempos ficaram para trás, que essa época está no passado. Os antigos gregos, que ajudaram a construir a civilização moderna com as suas ideias, já pensavam o mesmo, que a idade de ouro estava no passado, uma idade de ouro em que os deuses tinham pisado a mesma terra em que os humanos agora andam.
De vez em quando, alguém acaba por escrever um livro sobre o fim da cultura europeia. O Thomas Mann escreveu a Montanha Mágica [em 1924], e talvez o meu livro entre nessa categoria. Se formos a ver, a cada cem anos é possível escrever um livro sobre o [hipotético] fim da cultura europeia.
Todavia, e no caso da Europa, existem razões objetivas para se dizer que o passado foi melhor, pois foi o período em que as nações europeias governaram todos os oceanos e criaram vastos impérios nos cinco continentes. Esses tempos ficaram para trás e, não me interpretem mal, ainda bem que assim foi. Tudo isto significa que a Europa, enquanto continente, chegou a um ponto da história em que tem de se redefinir. A sua posição no mundo mudou. O projeto europeu, a ideia de unificar a Europa, parece-me ser a única resposta que temos para um outro futuro, e é com base nela que temos de redefinir o nosso posicionamento no mundo.
Em 1849, Victor Hugo, durante um congresso dedicado à paz, disse isto: “Virá um dia em que, tu França, tu Rússia, tu Itália, tu Inglaterra, tu Alemanha, todas vós, nações do continente, sem que se percam as vossas qualidades distintas, vos fundireis numa unidade superior e constituireis a fraternidade europeia”. A ideia de uma união de povos europeus brotou do meio intelectual, mas, atualmente, não parece que os políticos e burocratas, que tomaram para si essa bandeira, estão mais concentrados em criar um grande bloco onde não há barreiras ao mercado livre?
Tenho de concordar. É desapontante que a ideia de uma união seja vista, principalmente, em termos económicos, como se o objetivo fosse o de apenas criar uma zona de comércio livre. Todavia, e caso a ideia fosse uma verdadeira união das nações, há que frisar que a diversidade da Europa é igualmente uma das suas riquezas. Temos de preservar esta diversidade, não podemos ter como objetivo uma cultura europeia unificada e monolítica. Não creio que isso funcionasse.
Na verdade, não temos de criar uma cultura europeia, porque ela já existe. Mas, para a reforçar, precisamos de mais diálogo. Esse diálogo, a nível intelectual, já existe desde o Renascimento e podemos vê-lo quando, por exemplo, um português lê um livro de um neerlandês que vive em Itália. Coisa diferente, e bem mais complicada, é criar este sentimento de europeísmo, esse maior diálogo, junto das massas. Já refleti sobre o assunto, e parece que o único meio de criar um patriotismo europeu (no bom sentido) é criar uma seleção de futebol de jogadores europeus: isso faria com que todos os cidadãos europeus torcessem por ela [risos].
Para algumas pessoas, e isso reflete um pouco o espírito dos tempos atuais, é pior fazer parte da elite do que ser um pedófilo
Existe a ideia, junto de muitos europeus, de que o projeto da União Europeia está a ser construído à margem dos cidadãos, sem os consultar. Que consequências isto acarreta?
O projeto europeu é visto como uma coisa das elites, daí que encontre pouco apoio junto dos cidadãos comuns – aliás, para algumas pessoas, e isso reflete um pouco o espírito dos tempos atuais, é pior fazer parte da elite do que ser um pedófilo. Algo tem de ser feito em relação a estas perceções, mas não é uma tarefa fácil. Seja como for, o processo de unificação da europa será sempre muito lento, é algo que demora muito tempo, quanto mais não seja para que as pessoas percebam o que realmente significa: uma Europa unificada consegue resolver melhor os problemas de grande escala que existem.
O sentimento antielitista já é um problema para a Europa?
É possível vermos que está a crescer uma atitude adversa para com as elites, a qual se traduz num sentimento de antieuropeísmo, precisamente porque a Europa é vista como um projeto das elites. Portanto, quem está contra as elites acaba por estar contra a ideia de uma Europa unida, pois essa parece ser a melhor forma de as atingir.
Este tipo de movimentos e partidos, de extrema-direita e nacionalista, que temos visto surgir por todo o lado – em Itália temos o Matteo Salvini e a Giorgia Meloni, nos Países Baixos o Geert Wilders – são extremamente nostálgicos. São uma reação aos desafios da globalização, e a globalização pode ter muitas consequências que fazem sentir as pessoas inseguras, especialmente junto de quem tem um grau de escolaridade mais baixo: são pessoas que, de um dia para o outro, podem descobrir que os seus postos de trabalho estão condenados, porque na Índia ou na China sai mais barato aquilo que fazem. Este sentimento de insegurança está a ser mobilizado pelos partidos de extrema-direita.
Mas as soluções que estes movimentos apresentam são falsas soluções. Consistem, essencialmente, em puxar os ponteiros do relógio para trás, para um tempo em que o atual fenómeno de globalização não existia. Para resolverem os problemas querem voltar até ao tempo em que os problemas ainda não tinham surgido. Compreende-se que essa perspetiva possa ser aliciante, só que ela não é de forma alguma possível.
As soluções que a extrema-direita nacionalista apresenta são falsas soluções. Querem puxar os ponteiros do relógio para trás
O Ilja, durante todo estes anos em que viveu em Itália, nunca sentiu que era ou podia ser visto como um turista?
A lição mais importante do meu livro é a de que acreditamos que os turistas são sempre os outros; nós nunca somos turistas. É um dos meus paradoxos preferidos sobre o turismo.
A minha vinda para Génova, e já passaram 13 anos, aconteceu quase por coincidência, não era algo que tinha planeado. Foi uma jornada. Acabei por me apaixonar por esta cidade de aspeto medieval e pensei ficar por cá durante alguns meses, para ganhar novas ideias e talvez inspiração para um novo livro. Contudo, o tempo foi passando e passando. Sempre me senti à vontade no sul da Europa. Quando era estudante ia muitas vezes à Grécia, entretanto também já fui a Portugal e Espanha. Estar perto do Mediterrâneo é como estar em casa, para mim.
Está em contraciclo, porque a tendência, para quem vive no sul, está em pensar que no norte da Europa é que se está melhor, para viver e trabalhar.
Ouço isso tantas vezes, em Itália. Quando alguém descobre que sou dos Países Baixos, surge logo um coro de vozes a dizer que os Países Baixos são um país maravilhoso, que tudo é muito mais organizado e melhor do que em Itália… e por aí fora. São nesses momentos que me sinto compelido a defender a Itália dos próprios italianos. Contudo, tenho a perfeita noção de que estou numa posição privilegiada. A globalização e a Internet foram muito convenientes para mim, pois consigo enviar o que escrevo para os Países Baixos, sejam livros ou artigos para um jornal. Creio que me sentiria muito menos entusiasmado em relação a Itália se tivesse mesmo de trabalhar cá, se tivesse de fazer parte do sistema económico italiano. Aí seria tudo muito mais difícil e muito menos divertido. Não tenho de fazer dinheiro em Itália, só estou aqui para gastar o meu dinheiro: e poder gastar dinheiro em Itália é perfeito. É um dos melhores países do mundo para poder fazer isso [risos].
Está muito na moda dizer que as utopias estão mortas. Talvez seja um sintoma do período histórico em que vivemos. Mesmo assim, faço-lhe a pergunta: qual é a sua utopia para a Europa?
A melhor forma de responder a essa pergunta é voltar a 1945 e fazer a mesma questão. Se alguém dissesse, nesse ano, que iriam existir 70 anos de paz no continente, algo que nunca antes tinha acontecido na história europeia, isso seria visto como uma utopia: os intelectuais daquela época iriam afirmar que era algo pouco racional de se dizer. No entanto, foi precisamente isso que conseguimos. Ou seja, é muito importante que percebamos que já estamos a viver numa espécie de utopia, o que torna ainda mais valioso o atual projeto europeu, quanto mais não seja por causa de todas estas décadas de paz. Em vez de pensarmos que é tudo uma porcaria, temos de entender que estamos em pleno processo de construção de uma utopia.