
A chamada de atenção é repetida pela Denária Portugal, associação sem fins lucrativos que defende o direito ao pagamento em numerário e que nesta semana enviou um pedido de reunião urgente a todos os partidos com representação parlamentar, de forma a colocar na agenda política duas preocupações centrais: o crescente desaparecimento de caixas automáticos (em particular nas zonas rurais e mais isoladas) e a multiplicação de casos em que estabelecimentos comerciais recusam o pagamento em numerário.
"No contexto da situação vivida no apagão, ficou claro que há um sentimento claro de maior segurança quando a população dispõe de numerário e o pode usar sem restrições versus a incerteza que ocorre quando isso não se verifica", explicou ainda Mário Frota, mandatário da associação, destacando que o apagão energético que deixou às escuras a Península Ibérica no dia 28 de abril é boa prova da vulnerabilidade de uma sociedade exclusivamente dependente do digital.
Em entrevista ao SAPO, Mário Frota vinca que o dinheiro em espécie é não apenas "um símbolo nacional" mas um "direito fundamental dos cidadãos e serviço de interesse geral" e defende que "tem de estar acessível e protegido".
O que é que o apagão nos mostrou sobre a dependência que temos de dinheiro virtual, de plataformas e de cartões?
Mostrou o óbvio, para que vimos alertando desde sempre as populações: que em caso de disrupção de sistemas, do colapso das redes elétricas e da quebras das comunicações eletrónicas, o cartão não compra nem pão nem atum nem salsichas e outros víveres nem lanternas nem papel higiénico… E se os ciberataques passarem a ser o pão nosso de cada dia as crises ampliar-se-ão com as nefastas consequências daí advenientes. Não se ignore que Espanha, pela sua nomenclatura, continua a não afastar a hipótese de um ciberataque na génese do fenómeno que a todos nos afetou…
E o que devia ser assegurado para não estarmos tão vulneráveis?
Que haja, ao menos coerência, de banda dos cidadãos. Fala-se da imprescindibilidade do dinheiro em espécie, mas nem sempre se predispõem a precaver-se contra situações de crise; em circunstâncias tais, é indispensável que as pessoas se munam de uma reserva estratégica, ao menos, proporcional aos dispêndios de uma quinzena e que se assegure um quantum em dinheiro em espécie para fazer face às instantes necessidades do quotidiano.
É essa mensagem que vão levar aos grupos parlamentares? E já tiveram resposta de algum?
O que se pretende carrear aos grupos parlamentares é a necessidade de se considerar deveras, sem tibiezas, sem reservas nem tergiversações, que o dinheiro em espécie (o numerário) é um símbolo da soberania nacional; é um direito fundamental dos cidadãos e é um serviço de interesse geral. E que, em tal enquadramento, importa diligenciar por que se constitua um Serviço Nacional do Numerário, qual serviço público essencial, que zele por que se assegure a circulação do dinheiro em espécie sem que tal padeça de soluções de continuidade.
Um Serviço Nacional do Numerário?
O Parlamento terá de considerar o dinheiro em espécie como uma infraestrutura crítica nacional, em linha com as diretrizes a que se sujeitam a segurança e a resiliência dos serviços públicos essenciais de que o Estado é, perante os cidadãos, esteio e garante. Trata-se, com efeito, de um tema relevante no domínio da segurança nacional e como garantia de direitos fundamentais em que os cidadãos se acham investidos. O dinheiro em espécie tem de estar acessível e protegido a todo o transe. Tem de estar disponível em todo o território nacional, impondo-se o reforço da deficiente infraestrutura dos Caixas Automáticos de Distribuição de Numerário (ATM), em particular nas zonas rurais mais deprimidas ou com uma fraca densidade de implantação de instituições de crédito. Urge que o Estado chame a si a realização de campanhas de consciencialização dos cidadãos em torno da relevância do dinheiro em espécie, como reserva estratégica nacional e no quadro das reservas patrimoniais pessoais, a título de prevenção contra surpresas como as que vêm ocorrendo ultimamente com os efeitos perniciosos que se conhecem.
Que garantias devia o Estado dar aos cidadãos?
As que se compaginem, afinal, com a essência própria de um elemento intrínseco da soberania nacional (conquanto ínsita na Zona Euro) e com a tutela de um direito fundamental de que ao Estado cumpre garantir a necessária salvaguarda. Mormente intervindo sempre e onde que, em situações de aparente normalidade, a recusa do dinheiro em espécie ocorra com violação grave dos direitos dos vulneráveis e hipervulneráveis (pessoas portadoras de deficiências, idosos, crianças e adolescentes para os gastos correntes consentâneos com a sua capacidade natural, como o previne o Código Civil).
Mas o dinheiro a trocar de mãos não é menos seguro para consumidores e comerciantes?
Não o foi deveras, salvaguardadas as devidas proporções, quando o dinheiro de plástico, os cartões virtuais, ainda se passeavam de bibe e biberão. E não percamos de vista a criminalidade exponencial que ora se regista com o dinheiro virtual, a níveis tais que deixa a léguas a que se centra no papel-moeda com curso legal, ainda assim com um rastro assinalável de circulação, a crer no que veicula o Banco de Portugal e os inquéritos às populações de que se têm feito eco instituições públicas e privadas.
Não suscita mais questões de transparência?
Todas as cautelas no que tange a transparência se acham já plasmadas nas leis com uma notoriedade assinalável. Quer no que tange a montantes quer nas excepções draconianas que se consagram. Há, por exemplo, restrições legais ao pagamento com numerário, como decorre da Lei n.º 92/2017, de 22 de agosto: “É proibido pagar ou receber em numerário em transações de qualquer natureza que envolvam montantes iguais ou superiores a 3.000 €, ou o seu equivalente em moeda estrangeira. Quando o pagamento for realizado por pessoas singulares não residentes em território português, e desde que não atuem na qualidade de empresários ou comerciantes, o limite ascende a 10.000 €.” “É proibido ainda o pagamento em numerário de impostos cujo montante exceda 500 €.” Para além de outros dispositivos que têm como causa fundante a obliteração da transparência e a circulação de notas e moedas de modo legítimo e sem comprometimento.
Podem os pagamentos em dinheiro ser recusados? Há algumas lojas e cadeias em que isso acontece...
A resposta é de todo negativa. A Recomendação 2010/191/UE, de 22 de março de 2010, da Comissão Europeia, com caráter interpretativo do Regulamento que introduziu o euro na Zona Euro, define claramente que "os comerciantes não podem recusar pagamentos em numerário, a menos que as partes [os próprios e os consumidores] tenham acordado entre si a adoção de outros meios de pagamento". Define ainda que "A afixação de letreiros ou cartazes a indicar que o comerciante recusa pagamentos em numerário, ou pagamentos em certas denominações de notas, não é por si só suficiente nem vinculante para os consumidores. Para que colha, terá o comerciante de invocar fundadamente uma razão legítima para o efeito às entidades que superintendam nos sistemas de pagamento. Entidades públicas que prestem serviços essenciais aos cidadãos não poderão aplicar restrições ou recusar em absoluto pagamentos em numerário sem razão válida, devidamente fundada e sancionada por quem de direito…”
O que deve fazer-se quando é recusado o pagamento em dinheiro?
Os cidadãos a quem tal suceda devem de imediato exigir o livro de reclamações e, se for o caso, chamar a autoridade policial ou a força de segurança para o levantamento do correspondente auto de notícia. E dar do facto parte à Denária para os necessários procedimentos complementares. A Denária dispõe de dois canais para que os meios processuais se desencadeiem: o Banco de Portugal, garante da moeda com curso legal, que agirá de harmonia com os ditames legais e o Ministério Público, sempre que em causa se achem condições gerais absolutamente proibidas, para a instauração da ação inibitória tendente à supressão de tais cláusulas abusivas integradas em contratos singulares.