Usamos diariamente o telemóvel, um objeto que seguramos na vertical, e que não foi desenhado inicialmente para ser uma câmara fotográfica ou de filmar. Mas atualmente é com ele que encaixamos o mundo de forma a caber nas plataformas e redes sociais. Instagram, TikTok e Snapchat são alguns dos exemplos das redes que disparam “o mundo ao contrário”.
“Os detalhes de uma paisagem sempre foram vistos na horizontal. Isso vê-se nas pinturas das cavernas. A pintura e depois a fotografia foram herdando este formato”, revela Lorena Travassos, professora de Comunicação Visual na Universidade Nova de Lisboa.
Há um motivo para termos começado a representar a realidade de forma horizontal, e “tem principalmente que ver com a forma como os nossos olhos veem”, continua: “Nós somos seres que andamos e precisamos de olhar para a frente, as aves têm outra forma de ver, por exemplo.”
A fotografia, criada em França em 1826, começou por ser um reflexo de luz através de uma lente, então redonda. Por uma questão económica – para aproveitar a película ao máximo – estendeu-se aos cantos, ficando retangular. Hoje, o objeto com que mais fotografamos e com que consumimos também imagens é, sem dúvida, o telemóvel.
Portanto, usarmos o telefone para fotografar, mais do que uma escolha consciente, é um “reflexo claro de uma necessidade tecnológica”, afirma Nélio Conceição, investigador de Filosofia na área de Estética, no Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa. “Este dispositivo é feito para ser manuseado, portátil, posto no bolso. É mais fácil tirar uma fotografia segurando-o verticalmente. Há uma alteração do gesto de fotografar”, explica.
Algumas fontes apontam para que mais de 92% das fotografias sejam captadas por smartphones, apenas 7% com câmaras de fotografar e as restantes com tablets. Estes números podem ajudar a explicar a alteração do paradigma de produção e consumo de imagens.
Amaya Sumpsi, realizadora de documentários e coordenadora no Núcleo Antropologia Visual e Arte (NAVE) do ISCTE, confirma esta alteração e conta ao SAPO o seu “assombro” ao ver o resultado de um trabalho dos alunos de Antropologia e Imagem: “Eram cerca de 55 alunos e lançámos o desafio de fazer um filme com o telemóvel. Fiquei muito surpreendida quando vi que mais de 80% dos alunos fizeram intuitivamente o trabalho em formato vertical”.
Mas, para quem trabalha com o mercado comercial, esta alteração tem sido sentida já há mais tempo. Quem o explica é Ricardo Figueiredo diretor da ZOF, produtora de filmes maioritariamente institucionais e publicitários. Este realizador conta que, quando começou a filmar no formato vertical, em 2014/15, lhe diziam que era um formato errado, contudo, a chegada das stories ao Instagram em 2016 e a criação do TikTok no mesmo ano vieram alterar o paradigma e mostrar-lhe que o erro era afinal um primeiro passo na tendência mundial.
A partir daí, tudo mudou. “Literalmente, mudou 90 graus”, diz Ricardo entre risos. A verdade é que, atualmente, quem encomenda um trabalho comercial à ZOF pede entregas em ambos os formatos, “é um standard já, horizontal para o YouTube e vertical para TikTok e reels de Instagram”, explica o empresário.
Também Tiago David, editor de conteúdos do SAPO MAG e influenciador digital, afirma: “Como os conteúdos de Instagram e TikTok são na vertical, gravo sempre nesse formato”. Explica que isto contraria tudo o que aprendeu sobre imagem na licenciatura de Ciências de Comunicação, mas que “a verdade é que uma fotografia na horizontal perde destaque no feed do Instagram; um vídeo no TikTok na horizontal não vai ocupar o ecrã, vai parecer mais amador e a plataforma não lhe vai dar tanto destaque”, explica, reafirmando: “Produzir na vertical é quase uma regra base para quem cria conteúdos para as redes sociais.”
“As próprias marcas estão conscientes disso, porque capta mais a atenção do consumidor”, contextualiza o fotojornalista Enric Vives-Rubio. E Ricardo Figueiredo completa: “O TikTok tem muito alcance, pois chega a pessoas que não são seguidores. Isto é muito importante para quem trabalha com marketing digital, para as marcas é essencial.”
A paisagem e o retrato: uma imagem também se lê
Chamamos paisagem às imagens capturadas na horizontal e retrato às de formato vertical, devido sobretudo à forma mais verticalizada do nosso corpo em contraste com as linhas da paisagem. “Se for na horizontal a pessoa é cortada, o formato retrato usa-se mais para caras e para a própria pessoa. Até vemos isso no formato selfie e na sua importância – hoje os telemóveis já têm câmaras à frente para tal”, adianta Lorena Travassos, relembrando que nas redes sociais há muitas pessoas a falar, a dançar e que, por isso, o corpo ganha relevância.
“A selfie fala mais de nós próprios e hoje já não se conta tanto a história do lugar, da paisagem, mas sim de si próprio no lugar. Já não basta ir a Paris e fotografar a Torre Eiffel, as pessoas querem o seu retrato com a Torre Eiffel”, continua a professora.
“É como se a tecnologia tornasse mais importante a questão da representação de si próprio”, acrescenta o investigador Nélio Conceição.
Mas não é só o objeto retratado que está em causa. A forma ou o ritmo com que passamos os olhos na imagem também importa. “Acho que as imagens que têm movimento direita-esquerda ou esquerda-direita, que nos levem a sair da imagem, são naturalmente ao baixo. É a forma que nós vemos”. Quem explica é o fotógrafo, uma vez que na linguagem jornalística as fotos horizontais são chamadas “ao baixo” em oposição às “ao alto”. Nestas últimas, “vemos mais altura, mais céu, se temos normalmente um movimento cima-baixo ou baixo-cima”, continua Enric: “Por exemplo, se for fotografar os atletas que fazem os saltos para a piscina, é mais certo que fotografe ao alto. Tudo é relativo, mas os movimentos pedem determinadas coisas.”
Mesmo o ritmo com que se lê as imagens, pode estar muito mais enquadrado do que pensamos. Para Lorena Travassos, “a fotografia horizontal é mais contemplativa”. Amaya Sumpsi fala na leitura “mais instantânea de uma imagem vertical”. E não é por acaso que Instagram é um nome composto por câmara instantânea com telegrama.
Exercícios mentais de quem enquadra a dobrar
Antes de fotografar, há uma série de pormenores a pensar. “Os retratos ocupam mais o espaço da imagem, se fizer um retrato na horizontal, é necessário preencher o espaço com outras coisas que não o rosto”, detalha o fotojornalista Enric Vives-Rubio.
Este é um exemplo de um dos exercícios mentais que faz alguém habituado a captar e construir imagens. “Filmar em vertical é esquecer tudo o que se aprendeu e começar de novo. Ter um plano geral que mostra mais para cima do que para os lados... é preciso muito para chegar às fórmulas certas”, conta o realizador.
Com esta nova exigência de variedade de formatos, Ricardo Figueiredo encontrou novas formas de responder: “Já filmamos com a câmara na vertical, há acessórios que a rodam. Os drones também o fazem. E depois o segredo é filmar com mais tamanho de frame – se filmar em 8k posso zoomar sem perder qualidade. Ou seja, posso reenquadrar o plano. Filmo ao mesmo tempo para ambos os formatos”.
Fala com fluidez deste processo que parece já estar calibrado, mas realça que enquadrar o mundo das duas formas ao mesmo tempo “tem a sua dificuldade”. Para isso, o realizador usa as linhas brancas no visor que o ajudam a montar o plano tanto para vertical como horizontal, para perceber se o plano resulta das duas formas.
Imagens com outros mundos mas novas expectativas
A partir do momento em que uma maioria tem uma câmara ao dispor, fotografar e filmar deixou de ser uma atividade só para os profissionais ou para algumas classes.
Por dia, são captadas cinco mil milhões de fotografias, isto equivale a 57.246 imagens por cada segundo no mundo inteiro. Estima-se ainda que ao longo da história já foram tiradas 12.4 biliões de fotografias e que em 2030 este número possa chegar aos 28.6 biliões.
A democratização da fotografia é algo já com umas décadas. Enric Vives-Rubio relembra o aparecimento da Kodak e elogia esta era em que muitos têm o poder de criar uma imagem, mas alerta: “Não significa que toda a gente faça boas fotos. É como escrever, agora já quase todos sabemos escrever, mas não quer dizer que sejamos todos escritores.”
De facto, não significa que por vermos mais imagens exista mais cultura visual, mas temos acesso a mais realidades. “E isso é ótimo”, dispara o fotógrafo. “A fotografia sempre foi muito classista e continua a sê-lo. Normalmente, o fotógrafo era o homem branco ocidental. Agora, há outros paradigmas e isso também foi trazido pelos telemóveis. Podemos ver uma história feita por uma mulher indiana num bairro de lata pelos seus próprios olhos e não através dos olhos do outro.”
Já para Lorena Travassos, a produção de muitas imagens “pode gerar expetativas e o mundo pode dececionar-nos ou podemos perder a capacidade de contemplação, por estarmos à procura de experiências semelhantes e de imagens que já vimos antes”. Depois de vermos as magníficas imagens de Machu Pitchu como reagiremos se lá chegarmos e estiver tudo nublado? E se no dia em que viajamos para Paris, há obras e não conseguimos a tal selfie com a Torre Eiffel?
Modernidade Líquida: de peregrinos a turistas
Neste mundo cada vez mais frenético, as imagens são também o seu produto e reflexo. Já no final do século XX, o sociólogo Zygmunt Bauman tinha lançado o conceito de Modernidade Líquida para descrever a época em que vivemos. Desde a II Guerra Mundial, e mais visível a partir dos anos 1960, as relações humanas tornaram-se mais maleáveis e as economias globais, mais fluídas, mais líquidas. Resumindo, deixamos um período em que éramos peregrinos, em busca de um significado mais profundo da vida, para passarmos a turistas, com muitas experiências sociais, mas mais fugazes.
Desde então, com a revolução das tecnologias da informação, tudo parece ter crescido a um ritmo exponencial. “Hoje faz-se tudo de telemóvel na mão, é o ponto de partida para tudo e tomou conta da vida das pessoas. Nas redes sociais, os vídeos são de cinco segundos, as receitas em fast forward, tudo tem de ser rápido e instantâneo”, conta Ricardo Figueiredo. “Um dia é cheio de imagens, consome-se muito, talvez por isso seja necessária uma leitura mais rápida”, analisa o diretor da ZOF.
Um estudo recente indica que os jovens adultos portugueses usam o telemóvel em média 5h35 por dia. Deste tempo, 2h40 são consumidas em redes sociais, como Instagram, TikTok e semelhantes.
Mais do que os significados que os formatos possam refletir nos conteúdos, Tiago David acha que estes “dizem mais sobre a forma como consumimos informação, entretenimento, etc.” “Vivemos num ritmo muito acelerado. É difícil alguém rodar o smartphone para ver um vídeo na horizontal em ecrã completo. Isto implica esforço e no ritmo vertiginoso das redes ‘não há tempo’”, explica, fazendo notar que os “criadores de conteúdo seguem os padrões ditados pelos algoritmos”.
É a antropóloga Amaya Sumpsi que nos recorda o conceito da Modernidade Líquida, para acrescentar outra ideia: “Parece que estamos a perder referências de tudo”. “O lugar já não é algo estável, as famílias também podem não ser. O corpo é a nossa última âncora. O discurso das redes sociais é voltado para nós próprios, o corpo impõe-se e temos uma câmara virada para nós. Mesmo no cinema e no documentário, muitos dos temas são sobre nós próprios, há uma tendência de autorreflexividade”, revela.
O passado panorâmico e o presente a querer-se inovador
Antes desta época, repleta de imagens mais estreitas e encaixadas num telemóvel, e ainda antes da fotografia, existiam os panoramas – populares no final do séc. XIX. Tratavam-se de paisagens e de imagens sobre o quotidiano, primeiro pinturas e depois fotografias, e eram expostas num formato grande e panorâmico, explica Nélio Conceição. O investigador traz este exemplo para explicar que a ideia nesta época era “de abrir a imagem, as suas leituras e a sua relação com o quotidiano, ou seja, explorar a abertura de horizontes para ter uma visão mais complexa do que está à sua volta”.
“Uma imagem vertical, que corta horizontes, e é muito focada na pessoa, em si próprio, dá-nos um quotidiano muito estreito, e em alguns sentidos até claustrofóbico, que podemos interpretar como uma perda de horizonte”, continua.
Mas mais do que as metáforas, o investigador foca-se no tema da tecnologia e reforça o seu poder nos tempos em que vivemos. “Mesmo se pensarmos no jargão tecnológico que é usado – a inovação e a obsolescência –, há uma tensão constante para se inovar, e para isso há coisas que têm de se perder e de deixar de funcionar, faz parte da economia da tecnologia”, compõe.
E esta tecnologia está hoje na mão de todos nós e “tem tanta força porque tem que ver com os nossos gestos mais pequenos, mas que se entranham, com o gesto háptico e ótico”.
Nélio Conceição relembra ainda o facto de os aparelhos com que fotografamos não terem sido criados com essa funcionalidade, afinal o propósito inicial era fazer telefonemas. E realça: “O facto de a nossa perceção se alterar fotograficamente em função de mecanismos que têm outras intenções é reflexo do poder que a tecnologia tem para influenciar aspetos da nossa vida quotidiana. Normalmente, isto acontece sem nos apercebemos e assimilamos de forma acrítica.”
E no futuro? Para que lado nos vamos virar?
Mais imagens verticais são então reflexo da tecnologia ou esta adaptou-se ao que queremos ver? E estaremos a mudar a forma de ver o mundo? Enric Vives-Rubio simplifica: “temos os olhos um ao lado do outro e não um em cima e outro em baixo”, portanto “o natural é o ser humano ver na horizontal, precisamos de controlar o espaço mais na horizontal do que na vertical, e isso vai continuar a ser assim”. O fotógrafo afirma que não se preocupa com o que perdermos ao olhar o mundo ao alto, mas sim o que vamos perder por não olhar ao baixo – “e vamos perder muitas imagens por uma escravatura de o aparelho ser ao alto”.
Para Ricardo Figueiredo, “o vertical está para ficar”. E atualiza-nos: “Há televisões que já viram e mesmo monitores de computador que já fazem os 90º. Quando editamos os vídeos verticais já editamos assim.”
Do rolo ao digital, dos drones à Go Pro, muitas já foram as tecnologias que influenciaram a nossa forma de produzir e consumir imagens. Amaya Sumpsi lembra ainda as panorâmicas, o 4:3 (mais quadrado) e como se foi adaptando a cada nova tendência, mas afirma que não se consegue imaginar a fazer documentários na vertical.
Já Tiago David, habituado ao formato vertical, avisa que não é dogmático e que partilha um vídeo na horizontal se achar que resulta melhor. Para ele, o futuro passará pela aposta no vertical, mas os vídeos de maior duração continuarão a ser partilhados no YouTube. “Acho que há essa divisão natural: conteúdos de curta duração na vertical e conteúdos de maior duração na horizontal (e que podem ser vistos fora do smartphone).”
Que o futuro é uma incógnita já sabemos, mas os avanços da tecnologia podem vir a ditar a forma como enquadramos o mundo. Todos parecem concordar que existe uma relação muito estreita entre a tecnologia e a forma como vemos o mundo, e Nélio Conceição exemplifica: “Imaginemos que, daqui a uns anos, temos um aparelho em formato óculos com que fotografamos e consumimos imagens – volta tudo a ser horizontal. A tecnologia é uma grande máquina que avança...”