“Calpúrnia, no seu sono, clamou três vezes: ‘César, estão a matar-te!’” Assim regista Shakespeare, na tragédia que eternizou não apenas um homem, mas o nascimento de um paradigma. Júlio César não é uma simples figura da história romana; é, acima de tudo, uma metáfora política duradoura: a do poder que se absolutiza sob o pretexto da ordem, da autoridade que se afirma como inevitabilidade histórica. O seu nome tornou-se título — César, imperador — e a sua morte, um ritual fundador: a transfiguração da res publica em teatro de obediência e destino. Como nos tempos de Roma, o poder absoluto precisa de multidão, mística… e um Senado que se deixe domar.

César não caiu por fraqueza nem só por falência moral, mas por ter incarnado com tal intensidade o Estado que já não era possível distingui-lo da própria máquina que o devia conter. Não foi o traidor da República, mas o seu superador; o catalisador do que, há muito, o povo pressentia: que a República, exausta, desejava um senhor. Quando o político se torna soberano em sentido teológico — quando já não governa, mas encarna —, não há Constituição que o refreie.

Eis o contexto simbólico que ressurge com inquietante nitidez na América do presente. Os cartazes não mentem. Na última edição da CPAC — a grande convenção da direita conservadora dos Estado Unidos, entre 19 e 22 de fevereiro de 2025, nos arredores de Washington — o rosto de Donald Trump aparecia amalgamado com o de Júlio César, numa representação visual de um kitsch deliberadamente barroco. Porém, o que à superfície se poderia ler como mero artifício gráfico ou provocação estética revela-se, numa leitura mais atenta, como alegoria política minuciosamente orquestrada: o retrato de um projeto de poder que não procura a legitimação nas instituições, mas numa espécie de mandato messiânico, refratário à mediação democrática.

Trump já não quer ser apenas um ator da história política americana; é o seu novo eixo simbólico. Reconduzido ao poder nas eleições de novembro de 2024 e empossado no início de 2025, o 47.º Presidente dos Estados Unidos não regressa como simples vencedor eleitoral, mas como figura de culto — a emanação visível de uma fé política que se confunde com a sua identidade. O seu regresso não é o da normalidade constitucional, mas o da exceção glorificada.

Como César, que atravessou o Rubicão afirmando que a vontade do comandante era já a medida do Estado, Trump ergue-se não só como agente, mas como figura mítica: simultaneamente encarnado e instrumental, redentor e bode expiatório. Os que o erguem ao trono simbólico de uma América “restaurada” não veem nele um Presidente entre outros, mas um eleito, um imperador informal, cuja legitimidade não deriva da lei, mas da transcendência. A República, como Roma outrora, vê-se confrontada com a sedução do poder que promete salvação através da submissão.

A dúvida, contudo, permanece: será ele o verdadeiro artífice desta marcha sobre os alicerces da democracia liberal, ou apenas o rosto elevado por um movimento que o ultrapassa, como César o foi por uma Roma já cansada da República? Responder implica olhar para o edifício que se ergue em torno de Trump, e não apenas para a sua figura. A nova direita americana já não é o velho Partido Republicano de Reagan ou dos Bush. É um movimento orgânico, com base social, estratégia ideológica e um projeto de transformação estrutural do regime. E, nesse projeto, Trump serve um propósito: dar rosto e carisma a uma cruzada que vai muito além da sua pessoa.

No centro desta cruzada está a exaltação da família tradicional como célula essencial da ordem social. A família, segundo esta nova doutrina, não é apenas uma unidade de afeto e reprodução: é o eixo moral e político a partir do qual se deve construir a sociedade. Mas essa exaltação é apenas a face visível de uma ofensiva mais vasta e sistemática. A cruzada é dirigida contra tudo o que seja woke, contra toda a esquerda, o socialismo, o comunismo, o globalismo, o multiculturalismo, as lutas por igualdade racial e de género, e qualquer expressão cultural, social ou política que não pareça genuinamente americana — ou seja, americana, cristã, conservadora e patriarcal. Trata-se de um movimento que não tolera ambiguidade: ou se pertence ao “nós” regenerador, ou se está do lado da decadência.

É mais do que uma ideologia: é um culto. Um culto que fornece uma visão total do mundo, onde a política, a religião, a moral e a história convergem numa narrativa de redenção nacional. O seu objetivo último é recentrar o mundo na América, não apenas enquanto superpotência, mas enquanto eixo moral e espiritual da civilização ocidental. Todos os “desvios” — feminismo, diversidade sexual, autodeterminação de género, liberdade reprodutiva — são percebidos como sintomas de uma decadência civilizacional que é preciso reverter. A política transforma-se, assim, num campo de purificação moral. E é aí que entram os três pilares a abater: a universidade, a comunicação social e o sistema judicial.

As universidades são vistas como fortalezas da ideologia liberal. É nelas que se ensina a questionar, a problematizar, a resistir, a formular questões e a ter voz e pensamento independente. São o espaço por excelência onde a individualidade se liberta da tradição familiar e do dogma religioso. Por isso, tornaram-se inimigas. O objetivo do movimento não é reformar o Ensino Superior: é desmantelá-lo enquanto espaço de pensamento autónomo. O caso recente da pressão política sobre a Universidade de Colúmbia é apenas a ponta do icebergue. O que se pretende é um ensino instrumental, submisso, alinhado com a nova narrativa patriótica e religiosa.

O segundo alvo é a comunicação social. Desde os primeiros dias da sua presidência, Trump e os seus seguidores investiram numa guerra aberta contra os “media tradicionais”, acusando-os de manipulação, mentira e traição ao povo. A ideia de uma imprensa livre, crítica e plural é vista como ameaça. E assim, o projeto passa por desacreditar, fragilizar e, sempre que possível, substituir os media independentes por uma constelação de canais, redes e vozes alinhadas com o novo poder. A liberdade de imprensa é convertida em obstáculo ao “programa legitimado nas urnas”.

O terceiro e mais perigoso ataque é ao sistema judicial. Para esta nova direita, se um Governo foi eleito, deve poder governar sem entraves. A lógica dos checks and balances — esse equilíbrio delicado entre poderes — é vista como capricho tecnocrático que limita a vontade popular. Os tribunais são acusados de bloquear reformas, proteger elites e contrariar o mandato do povo. E, por isso, devem ser domesticados. A nomeação de juízes ideologicamente alinhados, a pressão sobre tribunais e a tentativa de transformar o Supremo Tribunal num instrumento político são sintomas dessa estratégia. O que se desenha é um sistema onde a legitimidade eleitoral apaga o Estado de Direito.

Mas o projeto é mais fundo. J.D. Vance, agora vice-presidente de Trump, não é um figurante. É o teórico da casa. Autor de “Lamento de Uma América em Ruínas” e convertido ao catolicismo tradicionalista, representa o elo entre o populismo e o pensamento reacionário estruturado. Ele e outros — como Josh Hawley, Marjorie Taylor Greene, ou figuras como Tucker Carlson — articulam uma visão onde a América deve voltar a ser hierárquica, moralmente homogénea, hostil à diversidade e desconfiada da democracia liberal. O seu modelo inspira-se em visões teológicas da política, como as de Patrick Deneen ou Adrian Vermeule, e sonha com uma nova Roma moral, onde os imperadores governem com espada e Bíblia.

E Trump? É o imperador ou o títere? A resposta talvez esteja na ambiguidade que o próprio cultiva. Por um lado, é um animal político com instinto de sobrevivência, capacidade de manipular massas e talento para o espetáculo. Por outro, é evidente que a máquina que se construiu em seu redor tem vida própria. O trumpismo pode sobreviver-lhe. O projeto que hoje avança não depende apenas da sua presença física, mas da cultura de ressentimento, desconfiança e nostalgia que ele ajudou a semear. Se Trump cair, haverá outro César à espera do púlpito.

Fica por analisar, no entanto, a peça-chave: a economia. Porque é na economia que o projeto ganha tração. A ideia central é simples, brutal e maquiavélica: os Estados Unidos só poderão voltar a ser uma potência industrial se conseguirem baratear as matérias-primas e acelerar a produção. Mas como quase todas as commodities são transacionadas em dólares, é preciso enfraquecer a moeda. E enfraquecer o dólar é minar o sistema monetário global. Ao fazer isso, Trump pretende tornar os Estados Unidos mais competitivos, mas à custa da inflação exportada, da quebra de confiança nos mercados e do empobrecimento dos seus aliados.

Os friendly countries, como a Europa, pagarão a fatura. O alvo real não são as tarifas: são os juros da dívida pública e os bond markets. A meta é forçar a queda das yields dos títulos do tesouro, empurrando a política monetária global para um novo ciclo. Tudo o resto — escândalos, tarifas, slogans, guerras culturais — é distração. O verdadeiro programa está escondido atrás da cortina de fumo.

Júlio César atravessou o Rubicão com as legiões. Trump atravessou o Partido Republicano e transformou-o numa legião e prepara-se para atravessar a América e o mundo. A questão que se coloca é se, como César, será traído pelos que o temem… ou consagrado pelos que acreditam que a democracia é apenas um ritual, não uma estrutura. Os idos de março já passaram. A história, no entanto, está longe de estar escrita.