
O terceiro Enzo da história do Benfica carrega o apelido mais difícil de pronunciar: Barrenechea. O primeiro chamava-se Pérez, chegou em 2011 como extremo-direito proveniente dos argentinos dos Estudiantes de la Plata. Não convenceu à primeira, regressou à casa-mãe por empréstimo antes de voltar a Lisboa no fim do mesmo para ser convertido por Jorge Jesus em médio-centro. Tornou-se outro jogador, expressando-se como nunca conseguira até aí e saiu para o Valência por 25 milhões, depois de ter custado 2,5. Voltou depois ao River Plate, com o carisma de sempre, e aos 39 anos parece querer continuar a resistir ao final da carreira.
O segundo também apresentava um sobrenome comum: Fernández. Curiosamente, formado nos Millonarios de Buenos Aires, não resistiu um único mercado. Chegou em 2022 antes do previsto, precisamente antes do fecho da janela de transferências de verão em Portugal, devido à eliminação precoce e inesperada do River na Libertadores. Brilhou com a camisola encarnada na Liga dos Campeões, ganhou a titularidade na seleção argentina já durante o Campeonato do Mundo e foi fundamental na conquista planetária de Messi e companhia. Foi vendido para o Chelsea por 121 milhões de euros, o que, graças a mais-valias, garantiu um bolo de 44 milhões aos sul-americanos.
Agora, as águias asseguram, por empréstimo, Barrenechea, também argentino, de 23 anos, com opção de compra que se pode tornar obrigatória mediante o cumprimento de objetivos. Se Pérez na altura era mais um 8 do que um 6 e se Fernández tem também ele uma dimensão de último terço, embora pouco vista na Luz: na Argentina, jogava num meio-campo a três, no Chelsea também é o preferido de Maresca para elemento mais adiantado do habitual tridente a meio-campo, Barrenechea é dos três aquele que tem menos baliza, o que levanta outras questões, sobretudo na futura composição do meio-campo encarnado. Mas já lá iremos.
Resiliência na vida e em campo
Formado no Newell’s Old Boys, a história de vida de Barrenechea está marcada pela superação. Nascido em Villa María, na província de Córdoba, cresceu em seio de família humilde, enfrentando dificuldades financeiras e o drama de ver o pai preso quando era ainda criança. A mãe acumulou vários trabalhos para garantir o sustento e o exemplo terá moldado o seu caráter em campo.
A mudança dos Leprosos para a Europa deu-se em 2019, quando assinou pelos suíços do Sion, a troco de 3,1 milhões de euros. Um ano depois, foi contratado pela Juventus, que o integrou na equipa sub-23 antes de o promover à equipa principal, onde se estreou oficialmente frente ao PSG, na Liga dos Campeões, em novembro de 2022. Entrou aos 88 minutos em Turim para o lugar de Juan Cuadrado e a Vecchia Signora perdeu por 2-1. Para trás, ficara longa paragem de nove meses (abril de 2021 a fevereiro de 2022) por uma rotura parcial do ligamento cruzado anterior de um joelho.
Nessa época ainda somou minutos na Serie A, mas foi o empréstimo ao Frosinone, em 2023/24, que lhe permitiu ganhar notoriedade. No recém-promovido, foi titular indiscutível, muitas vezes como médio-âncora, o 6, e terminou a época com uma média de 8,2 recuperações de bola por jogo e 4,4 duelos defensivos ganhos por partida, números que atestam a sua eficácia no momento defensivo (dados: Target Scouting).
Com a saída de Douglas Luiz do Aston Villa para a Juventus já em 2024, Unai Emery e o diretor desportivo Monchi viran nele um potencial substituto para o craque brasileiro, até aí o grande motor da equipa. Contratou-o por 8 milhões de euros. Porém, em Birmingham não encontrou espaço imediato e foi novamente cedido, desta vez ao Valência. Em Espanha, completou 30 jogos na La Liga, marcou um golo e fez duas assistências. As métricas ofensivas incluíram um xG (expected goals) de 1,3 e um xAG (expected assisted goals) de 0,9, valores que demonstram uma contribuição menor no último terço e uma função preferencialmente defensiva (dados: fbref.com). Além disso, segundo o mesmo relatório estatístico, registou 3480 metros em passes progressivos, confirmando a capacidade de ligar setores com critério.
Inteligência, foco e alguma ‘falta de chegada’
Há duas ou três características do perfil de Barrenechea que encaixam de imediato nas lacunas do plantel do Benfica: a resistência à pressão com a bola nos pés, a visão periférica e a capacidade de transformar de imediato uma ação defensiva numa transição ofensiva. É um jogador com um QI futebolístico elevado, aliado a um foco constante. Um upgrade em relação a Florentino Luís no momento com bola e talvez também a Manu sem esta, porque com 1,86 metros e perfil físico robusto, é agressivo nos duelos, recupera a bola com facilidade graças também às longas pernas (ainda que não seja veloz) e mostra-se competente na ocupação de espaços.
É um 6 puro, mas que pode funcionar igualmente como médio-centro em contextos mais físicos, dada a facilidade com que impõe presença em zonas de pressão e recupera a bola – embora, isso possa denunciar um Benfica menos ofensivo (ou de maior expetativa e menos dominador) do que o estatuto do clube requer. Em termos táticos, distingue-se pela forma como protege a linha defensiva e pelo sentido posicional que limita a progressão dos adversários, algo que se evidenciou tanto em Itália como na La Liga espanhola.
No Valência, foi peça-chave do meio-campo de Carlos Corberán, ao ponto de os adeptos terem pedido o seu regresso em definitivo. Enzo, quédate!, ouviu-se no Mestalla no final da temporada. O Aston Villa ainda ponderou reintegrá-lo, todavia, o interesse Benfica, do Valência e de outros emblemas convenceu os de Birmingham a deixar sair o argentino por praticamente o dobro do que comprou, caso a opção se torne obrigatória. A solução permite aos encarnados acautelar a possível saída de Florentino Luís, ainda que, com Manu ainda a meses do regresso à competição após grave lesão e um Leandro Barreiro não posicional o suficiente para arcar com a responsabilidade, possa depois faltar redundância no plantel às ordens de Lage.
Se Barrenechea tem ótima técnica, bom primeiro toque e receção, e completa muitos passes progressivos, quais são as suas principais lacunas? Falta-lhe chegada e uma maior desenvoltura no ataque posicional. É excelente para reciclar a posse, mas não encontra quase sempre o passe de rotura no último terço, além de praticamente não pisar na área contrária a não ser nos esquemas táticos, ou seja, nas bolas paradas. Daí que seja naturalmente muito mais 6 do que 8. E que precise ao seu lado de um 8, que não Fredrik Aursnes – cuja pior posição é precisamente aquela para a qual foi contratado –, devido às dificuldades do norueguês sob pressão. Um 8 mais incisivo (o que também tiraria Kokçu, se tivesse ficado, da equação, muito provavelmente).
O Benfica assegura, assim, um médio de inteligência tática, robustez física e maturidade competitiva, que pode oferecer garantias imediatas. No entanto, para um clube habituado a dominar e não apenas a controlar, Barrenechea não pode ser solução única: precisa de companhia que pense à mesma velocidade e acrescente golo e desequilíbrios.