O nosso convidado sentiu o sucesso de vermelho, antes de viver a glória vestido de azul. Foi arma secreta num Europeu e jogou num meio campo de olhos fechados. Ainda desconhecido partilhou balneário com o também desconhecido Fernando Aguiar. Nunca foi chamado para um governo, mas sempre teve uma pasta. Excêntrico ou elegante? Costinha.
zerozero: Com estas dicas, descobria quem era este jogador?
Costinha: É difícil, acho que vai ser difícil. Há aqui alguns adjetivos que são capazes de fazer tocar algumas campainhas.
zz: A parte governamental?
C: É a parte mais difícil. Mas estou a brincar, quando se fala de futebol e vão buscar um cargo político, normalmente vem tudo parar a mim e ao nome que o meu amigo Thierry Henry me colocou.
zz: E excêntrico ou elegante?
C: Depende do ponto de vista das pessoas. No início fazia-me alguma confusão toda a atenção que davam, mas depois deixou de fazer sentido estar a preocupar-me com esse tipo de situações. Até digo mais, quando me apontavam o dedo por eu andar de quadrados e riscas, chegámos a 2022 e 2023 e apareceram os quadrados e as riscas. Ou seja, eu já andava na moda. Diria que não é o que tu vestes, o que tu conduzes ou o que tu calças que demonstra o teu caráter.
zz: A ficha no zerozero diz-nos que o seu último jogo foi no dia 2 de setembro de 2007. Um Atalanta 2-0 Parma. É verdade?
C: É verdade, sim. Tinha acabado de chegar a Itália, vindo do Atlético de Madrid. Para mim, foi um jogo muito importante porque o meu sonho desde miúdo era jogar no campeonato italiano. Por causa do Maradona do Napoli, dos holandeses do Milan, dos alemães do Internazionale e do próprio Parma do Nevio Scala, que tinha uma equipa espetacular. Tive algumas oportunidades enquanto representei o FC Porto, mas nunca houve negociação por parte do FC Porto e eu também nunca fui bater à porta do presidente a dizer que queria sair, pois estava num clube que adoro. As coisas não andaram, até que naquele ano a Atalanta bateu à porta e senti que seria a última oportunidade que poderia ter para jogar em Itália.
zz: E como foi?
C: O Fernando Couto estava no banco do Parma. As coisas correram bem, mas depois veio o calvário de não jogar e apenas receber para não jogar. Essa situação deixou-me um bocado triste porque não era assim que queria terminar. Mas depois já não sentia prazer em treinar. Não poderia ir para os campeonatos que tinha em carteira, como o Japão ou os Estados Unidos da América, pois iria enganar essas pessoas.
Costinha 12 títulos oficiais |
zz: Esteve em Bergamo mais dois anos?
C: Sim.
zz: Esteve até 2009.
C: Isso. Depois a filha do proprietário do clube, que tinha tido um AVC e acabou por falecer, chamou-me ao gabinete, com o atual diretor desportivo, e disse-me que tinham tido muita pena com tudo o que me tinha acontecido, mas que eu poderia decidir o que fazer. Ou terminava o contrato ali ou iria até ao fim de junho, que seria o fim do meu contrato. Pagaram tudo até ao fim. Saí de Bergamo nessa altura e foi quando tive a oportunidade de entrar no Sporting como diretor desportivo.
zz: Ainda voltando ao dia do último jogo. Fez o último jogo com 33 anos. Com certeza não pensava terminar a carreira ali...
C: Não, claro que não. Eu tinha concretizado o sonho de chegar a Itália e sabia que, apesar de ter 33 anos, se jogasse bem iria chegar à Juventus, ao Milan, ao Internazionale...
zz: Em Itália apostam muito no jogador experiente.
C: Eu fiz muita força para sair do Atlético de Madrid, mesmo tendo mais dois anos de contrato. O proprietário dos colchoneros queria que eu terminasse lá a carreira, para depois assumir uma função no clube. Talvez fosse um ato cómodo, mas fui para Itália com a felicidade de atingir o calcio dos grandes jogadores dos anos 80 e 90. As coisas começaram a correr bem, até que o presidente teve um AVC e passaram a comandar o clube duas pessoas que me fizeram a vida muito difícil. Queriam que eu baixasse o salário para metade ou então não jogava. Não fiz e eles foram-me afastando. O próprio Luigi del Neri fez de tudo para eu jogar.
zz: Joga este jogo, mas não se lesionou?
C: Não, foi depois contra uma equipa belga, numa partida amigável, na pausa das seleções. Eu quase não fiz a pré-temporada e depois senti uma dor. Para ver como o futebol tem coisas inacreditáveis. Mesmo com estes episódios todos, quando o José Mourinho chegou ao Inter de Milão, um dia a falar com ele ao telemóvel, diz-me que não queria o Olivier Dacourt e que iam tentar uma troca direta com a Atalanta e eu iria para o Inter de Milão. Ele relembrou-me que tinha lá o Javier Zanetti o Esteban Cambiasso. Eu disse logo que isso não seria problema para mim, pois gostava da concorrência. Para mim, mudar naquela altura, voltar a trabalhar com um treinador que me iria dar a oportunidade de poder treinar e tentar conquistar um lugar na equipa fez-me ficar muito contente. Mas esse contentamento desvaneceu-se, pois a Atalanta não quis trocar. Eles andavam a vender a ideia que eu estava sempre lesionado, não queria jogar e só queria cobrar o dinheiro. Iria ser muito chato eu ir para o Inter de Milão e começar a jogar.
zz: Como se vive essa angústia, aos 33 ou 34 anos?
C: Eu cheguei a uma altura em que senti que tinha de ir cumprir o meu contrato. Tinha uma grande estabilidade familiar ao meu lado que não me deixava que fosse alvo de mais brincadeiras. Eu sempre tive muita facilidade em lidar com as adversidades e nunca fiquei a lamentar-me. Comecei logo a pensar no que poderia ser. Comecei a perceber como funcionava o mercado e as equipas. Fui pesquisando a forma de trabalhar de algumas equipas e alguns diretores desportivos, pois ambicionava ser diretor desportivo.
zz: Já estava a preparar o futuro.
C: Sim. Foi precoce porque não estava totalmente pronto, mas não fui um debutant. Vinha do futebol e tinha essa facilidade em entender o futebol. Sempre fui uma pessoa séria e as pessoas não falavam comigo a pensar que eu as fosse enganar. Sempre fui uma pessoa mais do nós do que do eu. Isso deu-me tranquilidade em relação ao que estava a ver como o meu futuro. Por isso, nunca quis ir para os Estados Unidos da América ou Japão, apesar da cultura desses locais me fascinar. Mas eu já não tinha prazer em treinar e sei que as pessoas depositavam em mim grandes expectativas, até por tudo que ganhei.
zz: Seria poético terminar no Oriente, isto quando começou no Oriental...
C: Verdade. Era algo engraçado.
zz: O primeiro registo que temos seu no zerozero é em 1987/88, Sub-15. Foi aí que começou?
c: Foi antes, com 12 anos.
zz: Como foi parar ao futebol?
C: Com uma mentira. Sempre quis jogador de futebol, mas os meus pais não queriam. O meu pai tinha sido jogador nos anos 60, mas teve uma lesão grave e não queria que eu tivesse algo semelhante. Naturalmente, fez com que eu optasse pelos estudos, mas eu era rebelde e sempre quis jogador de futebol. Estudei num colégio de freiras e elas tentaram demover-me da ideia de ser jogador de futebol, mas só para contrariar assinava os testes com o nome de Diego Maradona.
zz: E elas sabiam quem era?
C: Depois começaram a saber porque eu levava o recorte do jornal, os cromos...
zz: E então, como foi a ida para o futebol?
C: Eu frequentava a zona de Chelas e, na década de 80, o conhecimento sobre os malefícios da droga era zero por parte dos pais, nem tinham tempo. E houve ali um período em que a minha tia, que sempre quis que eu fosse jogador de futebol, alertou o meu pai: Francisco, é melhor o teu filho sair da escola e ir para o treino, sair do treino e voltar para casa. Nesse interregno dele sair da escola e voltar para casa, ele vai andar aqui na rua. Os amigos dele são aqueles que são e podes correr o risco dele se desviar.
zz: Belo argumento.
C: Houve ainda outro que deixou o meu pai muito contente, que foi quando um trouxe um teste de matemática positivo, que era algo muito raro lá em casa. Não era uma disciplina que me cativava. Ele disse que se tivesse positiva a matemática, poderia ir para o futebol. O teste veio com 30%, mas eu coloquei 80...
zz: Muito esperto.
C: Ele disse-me que eu ia treinar ao Sporting, mas eu alertei que não era assim que as coisas funcionavam e que primeiro iria ao Oriental, pois estavam lá os meus amigos todos. E lá fui eu, com 12 anos.
zz: Como foi?
C: Era um treino de captação. Estavam muitas crianças. Eram quase todos avançados e médios. Eu também jogava nessa posição, mas ele perguntou quem era lateral esquerdo. Como vi que ninguém levantou o braço, eu levantei. Ele perguntou-me se eu jogava a lateral esquerdo e eu disse que jogava com o pé direito, mas gostava de jogar a lateral esquerdo. Só fiquei eu e mais outro jogador.
zz: No meio de tantos?
C: Sim. Toda a gente queria jogar a avançado, mas o plantel já estava feito e só havia duas vagas. Foi a forma que encontrei de ganhar o meu espaço. Nunca joguei a lateral esquerdo naquele clube. Dali passei para central e de central para médio, para o local onde eu gostava de jogar.
zz: Desde sempre com essa persistência. Fez o caminho todo no Oriental, até chegar a sénior. Começou na 2ª Divisão B.
C: Era duro.
zz: Fosse no norte, no centro ou no sul.
C: No norte os campos eram mais pesados.
zz: Na zona Sul havia muita criatividade. De resto, o Costinha saltou para o campeão francês sem ter jogado na 1ª Divisão em Portugal. Como fez esta evolução da carreira?
C: Começou tudo no Oriental, quando subimos da 3ª Divisão para a 2ª Divisão B. Chegámos a janeiro e o treinador queria me dispensar do Oriental para o Operário. Ia jogar na distrital de Lisboa, mas eu não aceitei. Eu disse que queria lutar pela minha oportunidade para ganhar experiência. Ele nunca me deu uma oportunidade, mas o foi embora e entrou o José Moniz.
zz: E mudou tudo.
C: Eu por vezes dou esta lição ao meu filho, que também é jogador. É preciso perceber que, mesmo não estando a jogar, nunca podes parar de treinar para não ficares prejudicado. Curiosamente, faço o meu primeiro jogo como sénior pelo Oriental, contra o Sintrense, a lateral esquerdo. Um jogador lesionou-se ou ficou castigado, já não me recordo, e eu fui jogar a lateral esquerdo. A direção do Oriental levou as mãos à cabeça. Se perdêssemos ficávamos numa posição muito frágil na tabela classificativa, mas não perdemos e nunca mais saí da equipa.
zz: E só foi esse a lateral esquerdo?
C: Sim. No jogo seguinte joguei a lateral direito e depois joguei no meio. Esse treinador, o José Moniz, fez o resto da época e foi embora. Veio o Manuel Pedro Gomes. Fui sempre titular a meio campo. No ano seguinte o mister José Moniz convidou-me para ir para o Portosantense. Eu gostei tanto da forma de trabalhar dele que iria mudar da 2ª Divisão B para a 3ª Divisão, só por causa dele.
zz: Mas nunca esteve no Portosantense.
C: Pois não. Estava de férias e ele liga-me a dizer que já não ia para Porto Santo, mas iria para o Machico, que iria disputar a 2ª Divisão B. Fui para o Machico, foi a primeira vez que saí de casa dos meus pais. Lembro-me do meu pai ir falar com o professor Moniz, até lhe deu ordens de me puxar as orelhas, se fosse caso disso.
zz: E como foi a experiência de estar longe dos pais.
C: Eu também queria sair de casa, não porque queria ver-me livre dos meus pais, mas sim porque queria ver se tinha capacidade para viver sozinho. Eu sabia que tinha de resolver os meus problemas. Foi espetacular.
zz: Tinha 21 anos.
C: É uma ilha que eu adoro do coração e os madeirenses vão estar sempre no meu coração pela forma como me receberam. Os 21 anos daquela altura são agora os 17 ou 18.
zz: E é uma ilha diferente daquela que existe agora.
C: Exato. Eu no ano seguinte fui para o Nacional e nem sabia que o Funchal existia. Eu mal saía do Machico. Do Machico ao Funchal era uma hora de viagem e agora são 15 minutos, graças ao Alberto João Jardim, que fez ali um trabalho notável. As coisas correram muito bem. Ficámos em 2ª lugar, o meu nome começou a ser muito badalado, saía nos jornais. Foi uma fase de grande vaidade e as coisas correram bem, até que saí para o Leça. Ia jogar na 1ª Liga, fiz a pré-época com o mister Rodolfo Reis, até que ele me chama e diz que não chegaram à acordo com os direitos de formação. O Jorge Mendes disse que se chegava à frente com os direitos de formação, mas o clube não quis.
zz: E como ficou resolvida a situação?
C: Eu fiquei à espera de outro clube. Poderia ter sido a U. Leiria, do Sr. Bartolomeu, que também me queria lá, mas eu já sabia que ia ser a mesma coisa. No meio de tudo isto, o professor Moniz liga-me a dizer que ia treinar o Nacional da Madeira, que tinha descido de divisão, da 2ª Liga para a 2ª Divisão B.
zz: Novamente o mesmo treinador.
C: Ele diz-me que estava a formar uma equipa para subir de divisão e eu nem pensei duas vezes. Fui para o Funchal. Parecia que estava num país diferente. Fomos campeões da zona Sul. Foi nesse período em que estou no Nacional que tivemos um olheiro do Valencia a ver os jogos e quer me contratar para o Valencia.
zz: Chegou a perceber o porquê de haver um olheiro do Valencia a ver um jogo do Nacional da Madeira, na 2ª Divisão Zona Sul?
C: O Jorge Mendes tinha muita confiança em mim. Ele já me seguia desde os juniores do Oriental, pois um dos melhores amigos do Jorge Mendes tinha sido meu treinador nesse período e falou-lhe muitas vezes de mim. Tanto o chateou que o Jorge Mendes veio ver-me e depois convenceu um olheiro do Valencia a vir ver-me. Eu fui a Valencia ainda com o campeonato a decorrer, eu e o Rui Miguel, o avançado, e assino um contrato de cinco anos com o Valencia do Valdano. O grande problema é que o Valdano veio falar comigo, tal como todos os treinadores devem fazer. Disse que sabia quem eu era e que já me tinha visto jogar, mas que para a liga espanhola, no imediato, precisava de um jogador mais forte para o meio campo.
zz: Um balde de água fria.
C: Certo. Eu assinaria pelo Valencia, mas ia jogar para o Villarreal. O Villarreal estava na 2ª Divisão B e eu não quis ir, pois também tinha muitas equipas da 1ª Divisão em Portugal interessadas em mim. Disse ao Jorge Mendes que tínhamos de rescindir o contrato. O senhor Paco Roig, o presidente do Valencia, não queria porque dizia que o Valdano teria de jogar com os jogadores que ele contratasse, mas eu sabia que quem fazia a equipa era o treinador.
zz: E como ficou resolvido?
C: O Jorge Mendes conseguiu a desvinculação para depois ir para o Monaco.
zz: E como surgiu o Monaco?
C: O Monaco queria o Paulinho Santos, se bem me recordo, mas o Paulinho não estava interessado e o Jorge Mendes falhou-lhes de mim e fez muita força. Eles questionaram, afinal de contas eu vinha da 2ª Divisão...
zz: Como é que ele os consegue convencer?
C: É o Jorge... Se falares com ele, percebes. Ele tem uma força muito própria. Não se lembram do Lendoiro dizer que muitas vezes saía da oficina na Corunha e o Jorge Mendes estava a dormir dentro do carro à espera dele? O Jorge Mendes, quando tem algo na cabeça, luta muito por esse ideal. Foi assim que ele conseguiu. Eu fui à experiência ao Monaco, com um nome falso.
zz: Um nome falso?
C: Sim. Na altura, o FC Porto já me queria contratar, seguramente para me emprestar a algum clube da 1ª Liga, e para o FC Porto não saber fui com um nome falso ao Monaco. Tive sorte, pois como a época do Nacional tinha terminado mais tarde, ainda ia com andamento. Entre a sorte, também tive a felicidade de ter um grupo de homens que me ajudou muito.
zz: Quem eram os craques?
C: Sony Anderson, o Ali Benarbia, o John John Collins, o Fabien Barthez, o Franck Dumas... Era uma equipa que composta por jogadores feitos, que tinham acabado de ser campeões. O Thierry Henry era miúdo, o David Trezeguet mais novo que eu...
zz: Tigana a treinador...
C: Exato. No último dia de estágio, tinha uma lesão no adutor e acordei com uma dor forte. Não conseguia andar. O John Collins, que é o meu pai escocês, como costumo dizer, foi ao quarto, juntamente com o Ali Benarbia, a chamar-me para ir para o treino. Eu estava no quarto com o Martin Djetou, que me diz que vai descer e eu digo ao John Collins que não consigo, que estava cheio de dores: I have pain, i have pain... E o Benarbia vira-se para o John Collins e diz: Outro turista...
zz: Custou ouvir isso?
C: Eu fiquei a matutar naquilo e pensei: Ninguém me chama turista. Levantei-me, fui à enfermaria, pedi um analgésico, treinei e no final do treino o Tigana vem me dizer que queria que eu jogasse a Supertaça e que assinasse por quatro anos.
zz: Imagino o sentimento.
C: Na altura tinha começado a namorar com a minha atual esposa e ela nem sabia que eu estava no Monaco. Eu tinha dito que tinha vindo ao Porto, portanto tive de vir a Lisboa apanhar as malas e contar tudo. Foi um choque. Aquele foi um momento muito importante também para nós. Não é fácil, mas ela tomou a decisão certa e eu também tomei a decisão certa, que foi a de convidá-la a vir comigo naquela aventura. E foi assim que começou a minha vida no Monaco.
zz: Morou logo no Monaco?
C: Tinha de morar no Monaco ou então tinha de pagar impostos. Para o clube também era muito mais vantajoso.
zz: Podemos dizer que teve um estágio, que foi morar na nossa Pérola do Atlântico, que é a Madeira, mas morar no Monaco, saltar da 2ª Divisão B para o campeão francês e passar a viver dentro daquele glamour, deve ter sido algo quase de sonho...
C: Sim e não. Sim porque sabia que ia para um sítio diferente e que as pessoas iam olhar e dizer algo. Não porque os meus pais podiam não ter muito dinheiro, mas souberam dar-me uma educação perfeita. Eles incutiram-me os princípios perfeitos. Não cheguei lá a pensar que era o Rei da Cocada Negra, sabia que o meu objetivo era jogar futebol e por isso pedi à minha mulher para ir comigo porque os desvios no Monaco eram muitos. A estrada estavam bem traçada, mas no caminho havia de tudo. Era um rapaz novo e as minhas hormonas pareciam umas pipocas. Percebi que tinha de ter estabilidade para prosseguir a minha carreira porque sabia que não estava totalmente preparado.
zz: É uma leitura inteligente.
C: Quando percebes que te falta algo para estar ao nível do clube, se te desvias, nunca mais vais lá chegar e essa oportunidade pode nunca mais aparecer. Eu acho que me preparei bem, estive seis meses sem jogar, sempre a treinar. Quando perdemos em Alvalade 3-0, para a Champions, percebi que o meu nível ainda não era o nível para jogar no campeão francês, mas isso obrigou-me a ir buscar a força que eu sabia que tinha, mas que precisava de colocar cá fora. Ao fim desses seis meses- lembro-me porque a minha avó faleceu nesse período-, vim a Lisboa e, quando voltei ao Monaco, joguei sempre.
zz: Que mudança.
C: Sim. Num ano passei de jogar contra a equipa do Olhanense, do Amora, para jogar contra o Manchester United, em Old Trafford, uns quartos-de-final da Liga dos Campeões. Passado mais uns meses, estava a jogar em Turim, contra a Juventus e a fazer golo. Eu só via aquilo na televisão. Se não te preparares para isso, se não entenderes que estás lá com um objetivo e te deixares levares pelos floreados do Monaco, acabas por não fazer uma temporada boa.
zz: É mesmo preciso preparação. Acredito que no primeiro ano de Oriental não pensaria que poderia ser profissional de futebol.
C: Vamos ser honestos: no primeiro ano de sénior do Oriental recebia 50 contos, no segundo ano recebia 100 contos... E eram tempos em que recebias agosto, setembro e outubro. De novembro até junho...
zz: Era quando caísse...
C: Ninguém consegue fazer vida do futebol assim. Eu vivia na casa do meus pais, imagina o que seria governar uma casa assim. Quando fui para a Madeira a situação mudou radicalmente. Os madeirenses pagavam muito mais e, além disso não pagava casa nem comida. Era tudo para o baú e isso preparou-me para o futuro, tal como a educação que tive em casa. Os princípios dos meus pais ajudaram-me a ser o profissional que fui.
zz: Pais do mais alto nível.
C: Humberto, eu com 19 anos tinha hora marcada para chegar a casa se saísse à noite e isso também te faz crescer.
zz: Verdade.
C: Por isso digo, depois do jogo em Alvalade senti que tinha de mudar alguma coisa. Felizmente, as coisas correram bem. Não é normal ser capitão do Monaco no segundo ano.
zz: Venceu uma Ligue 1, a Supertaça...
C: Essa logo no início. Entrei aos seis minutos. Era para jogar, mas quem jogou foi Diawara. Ele lesionou-se, entrei aos seis minutos e vencemos 5-2 ao Nice.
zz: Logo um dérbi.
C: Ficamos em terceiro lugar nesse ano, em 1998, logo atrás do Lens e do Metz. No ano a seguir fazemos uma boa campanha, mas o que mais me satisfez nesse período foi a forma como o treinador falava comigo.
zz: Então?
C: Repara, eu vinha da 2ª Divisão B, o conhecimento que eu tinha poderia ser curto porque não havia vídeos nem nada. No entanto, eu li muito e conhecia os jogadores. Certo dia, antes de um jogo, ele veio ter comigo e diz-me que o Jean-Pierre Papin não poderia tocar na bola. Quando ele falou do Papin os alarmes tocaram todos. Jean-Pierre Papin...
zz: Era uma avançado poderoso.
C: Era só um lenda do futebol francês. Eu sabia que se fechasse um bocadinho os olhos para coçar a pálpebra, ele já tinha fugido. Não foi fácil. Ele não fez nada, mas perdemos 1-0. Nessa altura, percebi que no futebol tu podes gostar de ser aplaudido, mas se viveres apenas na sombra das coisas boas que vão escrever sobre ti, esse castelo um dia cai. Tens de saber crescer com a tua auto-crítica.
zz: Fez um caminho inverso. Não era propriamente fácil uma equipa portuguesa contratar a alguém que estivesse num grande campeonato. Como aconteceu o seu ingresso no FC Porto?
C: Tenho de dar crédito ao presidente Pinto da Costa. Isto acontece quando eu estou a terminar contrato com o Monaco. Como as coisas correram muito bem no Monaco, o olheiro do Valencia que me avaliou a primeira vez ganhou moral porque o jogador que ele tinha levado já era internacional e tinha sido campeão francês. Então o Valencia estava interessado, o Inter de Milão estava interessado e a mulher estava na fase das saudades de Portugal. Ela estava grávida e aparece o Benfica, na transição do João Vale e Azevedo, para o Vilarinho.
zz: O que pensou?
C: Naquela altura, o Benfica não tinha ponta por onde se pegasse. É um grande clube, com um poder em termos de adeptos gigante, mas não foi um clube que me soube cativar. O João Vieira Pinto tinha saído para o Sporting, tinha alguns amigos que estavam lá, como Luís Carlos, que tinha jogado comigo no Oriental...
zz: E foi aí que surgiu o FC Porto?
C: Sim. Numa conversa com o presidente Pinto da Costa ele começou a dizer-me que eu tinha o perfil para ser jogador do FC Porto. Qual a minha ideia sobre isso... Disse que eu iria ser jogador do FC Porto... Mandou um valor para cima da mesa, eu concordei com esse valor, ele estica-me a mão e diz: No FC Porto o aperto de mão é um contrato... Eu disse-lhe: Parece-me bem, o meu avô sempre me ensinou isso. Se perdes a palavra, perdes tudo.
zz: Um contrato selado assim.
C: Verdade. Apertámos a mão e ficou fechado. Passado uma semana, o Sporting fez-me uma proposta a oferecer o dobro. Toda a gente sabe que o Sporting foi o clube pelo qual torci quando era criança e poderia ser tentador faltar à minha palavra para ir para o Sporting. No entanto, eu não poderia faltar à minha palavra e acabei por vir para o Porto. Depois, a minha história no FC Porto fala por si.
zz: Foi a melhor decisão que poderia ter tomado?
C: Acho que escolhi bem...
zz: Esperava encontrar um FC Porto diferente daquele que encontrou?
C: O FC Porto não vinha de uma grande fase. Eram três anos sem ganhar, tinha sido o período de Sporting, Boavista e Sporting. Eu adoro o FC Porto e sou super bem recebido na cidade do Porto, mas quando assinei os adeptos também se questionavam quem era o Costinha. Ainda para mais estava na equipa o Carlos Paredes, que tinha feito uma grande temporada, estava o Paulinho Santos também. Não andaram aos pulos por minha causa. Eu tive de ir à procura do meu espaço e penso que isso agradou os adeptos do FC Porto.
zz: É preciso saber ler os adeptos.
C: Eu acho que conquistei os adeptos do FC Porto. O FC Porto estava novamente à procura de ter uma equipa. Havia bons jogadores, mas ainda não tinha encontrado uma equipa.
zz: E é o Mourinho que encontra essa equipa?
C: Acho que o mister José Mourinho tem uma cota parte muito grande nesse encontrar de equipa. Se aquela equipa continuasse a jogar, ia continuar a ganhar. Tínhamos uma cumplicidade enorme.
zz: Via-se isso em campo.
C: No outro dia estava a comentar com um amigo, o Dmitri Alenichev era suplente do FC Porto. Era um suplente muito utilizado, mas era suplente. Dentro do meio campo idealizado pelo mister José Mourinho ele não era o titular absoluto. Os titulares absolutos, perdoem-me a imodéstia, era eu, o Maniche e o Deco. Depois, lutava com o Pedro Mendes e o Dmitri Alenichev. E o Dmitri Alenichev era um craque...
zz: O que fez de diferente o José Mourinho?
C: Ele já conhecia o clube, tinha estado no FC Porto com o mister Bobby Robson e sabia o que o clube poderia fazer. Felizmente as coisas correram muito bem. Ele trouxe organização e honestidade. Não estou a dizer que os outros não era honestos, mas ele metia as cartas na mesa, na cara de todos os jogadores. Não havia forma de alguém dizer que ele tinha enganado. Ele fazia aquilo que pensava. Ele mudou a forma como se preparavam os jogos: à terça-feira já tínhamos informações sobre o adversário, fosse do jogador mais faltoso, fosse do jogador mais influente... Sabíamos como agir com o adversário.
zz: É verdade que, antes do jogo contra o Manchester United, da segunda-mão da Champions League, ele andou essa semana a trabalhar consigo e com o Maniche a forma de pressionar o Paul Scholes para ele não construir bem o ataque do Manchester?
C: Também. Em termos técnicos e táticos ele fez evoluir aquela era, não foi apenas o FC Porto. Ele dominou aquela era como ninguém. Lembro-me que tive um problema com ele, na altura do FC Porto, e percebi que ele tinha tido aquela pega comigo porque sabia que eu não iria deixar de treinar de forma séria.
zz: Foi para ser o exemplo para o grupo.
C: Sim, ele gostava de pegar nos mais fortes. Lembro-me de quando saiu o Manchester United ele ter dito: Top. Costa, tu não jogas o primeiro jogo em casa, mas vamos ganhar, com maior ou menor dificuldade vamos ganhar... 1-0, 2-0, 2-1... Depois, em Old Trafford tu estás e vamos conseguir ganhar lá, ou passar a eliminatória lá, porque dominas no jogo aéreo e em termos defensivos vamos ser muito mais coesos.
zz: É muita confiança.
C: Depois de ter dito aquilo foi-se embora. Era uma altura que só nos cumprimentávamos, ainda andávamos pegados. E aí percebi. Eu depois também perguntava as coisas, pois gostava de perceber o que andava a treinar. Até nessa abordagem era muito meticuloso.
zz: Então foi parar ao segundo poste naquele golo com que sentido, se não foi treinado?
C: Quem ia bater o livre era o Ricardo Fernandes, pois tinha um pé esquerdo fantástico. Mas, entretanto, o Benni McCarthy pegou na bola e diz que quer bater o livre. Julgo que o Bicho, Jorge Costa, já tinha saído nesse jogo. Na barreira tinha de estar eu e o Bicho, para fazer pressão e a barreira desviar-se. Mas olho para a barreira, vejo o Pedro Emanuel e penso que outro colega vai para lá, pois o jogo estava a terminar e era preciso arriscar. Olho para a área e vejo o Maniche com o John O'Shea, que tinha cerca de 1,86m. Eu estou com o Wes Brown, que era mais ou menos da minha altura. Pensei que o melhor seria trocar, pois o O'Shea era mais alto que eu, mas eu era forte no jogo aéreo e ele era mais corpulento, poderia ter mais dificuldade. Pensei que se a bola caísse na área, poderia passar para alguém. Converso com o Maniche, trocámos de posição.
zz: Depois foi a história.
C: Sim. Se reparar, ainda hoje nos jogos, sempre que vai haver um cruzamento, o normal é os jogadores olharem para a bola e não para os jogadores que estão a marcar. Os jogadores esquecem-se sempre que a bola só entra se o guarda-redes estiver distraído, ou se alguém tocar a bola para dentro da baliza. Se tu estiveres a marcar esse jogador, a probabilidade dele fazer golo é mais reduzida. Agora, se tiveres a olhar só para a bola, se ela passar por cima de ti, já perdeste esse timing: foi isso que aconteceu. Ele olhou para a bola, eu fiz o movimento e arranquei. Quando vi a bola sair, arranquei para a zona e, quando vi o Tim Howard colocar a bola para a frente, limitei-me a empurrar para dentro da baliza.
zz: Eu acho que o Manchester United não viu aquele golo no Euro 2000.
C: Provavelmente não.
zz: Não sendo igual, há algum de semelhante.
C: E nem sequer era para estar na área. Mas o Paulo Bento disse-me: Miúdo, tu jogas bem de cabeça, vai lá para a área. Eu fui, o Luís Figo bateu, antecipei-me ao Bogdan Stelea e faço o golo.
zz: Fez dois golos por Portugal.
C: Sim, esse foi o primeiro.
zz: Qual foi a conquista mais saborosa: a Champions League ou a Taça UEFA?
C: Celebrámos mais a Taça UEFA, vivemos a UEFA de uma maneira diferente, mas é óbvio que a Champions é a Champions. Ainda hoje vou a qualquer país do Mundo e aquelas pessoas que me reconhecem dizem: Champions League Winner. Lembro-me de ir passar férias às ilhas Maurícias, em 2005, estar sentado com a minha esposa no Resort e chegar um rapaz perto de mim e dizer que estava muito desapontado comigo. Disse-me aquilo do nada e foi-se embora.
zz: Ficou a questionar?
C: Claro. Eu disse logo à minha mulher que não íamos comer a comida que ele trouxesse. Mas depois percebi. Ele tinha feito uma aposta grande para o Manchester United ganhar ao FC Porto e com o meu golo, ele tinha perdido o dinheiro. Depois de ouvir aquilo, deixei lá com ele o dinheiro que tinha trocado para a moeda local e é uma pessoa que ainda hoje me manda postais. A Liga dos Campeões chega onde as outras competições não chegam e, com o passar dos anos, percebes que aquilo que o FC Porto fez é algo único. Mais nenhuma equipa conseguiu depois de nós.
zz: Mesmo.
C: Eu gostava de ver mais equipas portuguesas a vencerem a Champions League. Tudo isso tem a ver com o projeto que tu preparas para o teu clube. Naquela equipa, tínhamos o Paulo Ferreira, que tinha vindo do Vitória de Setúbal, o Nuno Valente da União de Leiria, o Maniche estava sem treinar no Benfica, o Derlei também tinha vindo do Leiria, o Carlos Alberto tinha muita qualidade, mas era um jovem, o Benni McCarthy não era titularíssimo no Celta de Vigo...
zz: Mas depois de ganharem a Taça UEFA sentiram que eram imbatíveis?
C: Posso dizer-te que nos sentíamos imbatíveis, mas sabíamos que na Liga dos Campeões iríamos ter melhores equipas. Apesar disso, a nossa ambição era ganhar na mesma. Uma das coisas que me fez sair do Monaco foi não sentir fome de vencer e no FC Porto existe em grandes doses. És obrigado a vencer. Sim ou sim. Muitas vezes íamos no autocarro para os jogos a apostar por quanto íamos ganhar. A confiança vivia connosco. Em dois anos tivemos pouca derrotas. Perdoem-me a imodéstia, mas sentíamo-nos tão motivados, para onde íamos era para triturar.
zz: Quando viu que a final seria contra o Monaco também deve ter mexido com os sentimentos.
C: Sim. Mas em campo, quando o árbitro apitou... Não havia hipótese nenhuma.
zz: Podia lá estar o seu filho.
C: Sim, se tivesse de levar um cachaço também levava. Mas recordo-me de, quando terminou, ter festejado com os adeptos do FC Porto, mas depois ter ido junto dos adeptos do Monaco. Desse lado, havia muitos adeptos que eu conhecia... Ainda me estou a arrepiar só de recordar esse momento. O Monaco foi o primeiro clube profissional onde joguei. Foi o clube que me fez chegar à seleção nacional e seria um ingratidão muito grande da minha parte não sentir nada pelo sofrimento daquela gente, mesmo estando a viver a maior felicidade desportiva. Foram anos fantásticos, mas tinha ali amigos no Monaco. Alguém tinha de perder, ainda bem que foram eles.
zz: Está a dizer que foram os seus melhores anos... Trouxe-nos a camisola da final do Euro 2004: ainda tem pesadelos com esse jogo?
C: Não. Não tenho. É um jogo que custou muito a dirigir, queríamos muito vencer, mas, tirando a seleção de 2016, que outra seleção chegou a uma final por Portugal?
zz: Só essa.
C: Desde que me recordo, e a primeira grande seleção portuguesa que eu vi foi a de 1984, Portugal teve sempre grandes gerações. Dizer que esta é melhor do que a outra não é algo que eu concorde. Em 1984, por exemplo, o saudoso Manuel Fernandes não foi. Os avançados de Portugal foram Nené, Gomes e Jordão. Portugal sempre teve boas gerações, mas não teve a longevidade condizente com a sua qualidade porque as outras gerações eram muito fortes. Em 2000, quando viram Inglaterra, Roménia e Alemanha - e a Roménia tinha ficado à nossa frente na fase de qualificação - toda a gente pensava que Portugal não iria passar a fase de grupos e passou em primeiro lugar, com três vitórias.
zz: Mesmo.
C: Só aconteceu por culpa da qualidade e da capacidade dos jogadores portugueses e de quem os dirige. É porque em 2004 não tinha de ser. Jogámos bem, mas tivemos dois jogos maus: o primeiro e o último, infelizmente. É verdade que a participação não foi tão boa, tendo em conta os jogadores que tínhamos, mas, quatro anos antes, tínhamos ido à meia-final do Europeu, em 2004 fomos à final e em 2006 fomos à meia-final do Mundial.
zz: É um registo notável.
C: Eu fico feliz porque na minha geração conseguimos estar nos momentos das decisões e isso deixa-me orgulhoso, sobretudo pela elevação que se conseguiu dar ao país. Depois, só pode ganhar um e não podemos menosprezar quem está do outro lado.
zz: Como foi parar à Rússia? Arrepende-se da ida para lá?
C: Um bocadinho, sim. Eu vou parar à Rússia porque o proprietário do clube ia comprar o Parma... Voltamos ao Calcio.
zz: Exato.
C: O tratado realizado era: ia para a Rússia um ou dois anos, para ajudar o Dínamo de Moscovo, e depois ia para Itália. Era o que eu pensava que ia acontecer, mas não aconteceu. Nessa altura, achei que o meu percurso na Rússia tinha chegado ao fim, pois o proprietário tinha deixado o clube. Financeiramente poderia ser um contrato bom, mas eu gostava e gosto mais de futebol do que o lado financeiro. Fui para lá numa fase difícil, depois disso o campeonato teve uma evolução grande, com a ida de grandes jogadores para lá. Ainda assim, foi a oportunidade de ver uma nova realidade, uma nova cultura. Era mais fácil ter dito ao Jorge Mendes que queria ir diretamente para Itália do que passar pela Rússia primeiro.
zz: Mas houve algum momento chave para escolher o Dínamo?
C: Sim. O proprietário do clube soube cativar-me. Veio várias vezes ao Porto, jantou comigo várias vezes, apresentou-me o projeto que tinha para o clube. Mas ele não conseguiu colocar em prática as suas ideias e por isso decidiu sair. E eu também resolvi a minha situação, saindo de lá para o Atlético de Madrid.
zz: Foi bom estar em Madrid.
C: Foi muito bom, adorei o Atlético. Acho que é um clube especial, com uma afición inacreditável, E que o Miguel Ángel estava a preparar para o que veio a ser com o Diego Simeone. O que pesou, depois, na minha saída de Madrid foi o facto de aparecer uma equipa italiana e eu saber que poderia ser a minha última oportunidade. Também apareceu o Besiktas, mas o Atlético Madrid disse logo que não e eu também não forcei, apesar da proposta que eles apresentaram ser enorme. Mas quando veio uma proposta de Itália as pernas já tremeram um bocadinho.
zz: Mas como foi jogar no Atlético?
C: Foi um período estranho. Eu tinha estado seis meses na Rússia sem jogar, vou ao Mundial, de repente salto para o Atlético Madrid e sentia que o corpo não estava bem. Até que comecei a jogar no Atlético Madrid e como pensei que tinha estatuto, pensei que poderia ficar de fora um ou dois jogos, para o meu corpo se ambientar ao ritmo, mas não foi assim. Sei que a responsabilidade foi minha. FUi assimilando as coisas e passei a jogar quase sempre, mas já não era um titular absoluto, pois dei essa oportunidade a outro jogador e ele aproveitou.
zz: Sempre foi um dos jogadores muito carismático e com espírito de capitão. Sei que num dos últimos jogos no FC Porto, em que não jogou, ficou chateado com o Quaresma e foi tentar dar uma bronca no balneário, no final do jogo.
C: Foi mesmo ao Ricardo Quaresma, não foi à equipa. Ainda brinco com ele por causa dessa situação. Na altura, ele não percebeu porque estava a dar a dura, mas depois entendeu. Eu fiz aquilo gostando dele, mas sentia que era importante para o chamar a atenção e para o grupo ficar mais forte. Nesse jogo, o Quaresma irritou-me particularmente. No jogo a seguir íamos defrontar o Marítimo, na Madeira, e ir lá era sempre difícil. Penso que tínhamos cerca de quatro pontos de avanço sobre o Benfica e sabia que, ganhando esse jogo em atraso, por causa da Taça Intercontinental, poderíamos aumentar a vantagem para o Benfica. O Ricardo Quaresma estava enervado porque queria jogar sempre e o Víctor Fernández só o colocou na segunda parte. Nesse período fez de tudo para ver um amarelo, pois assim não ia à Madeira e tinha de cumprir castigo, por acumulação de amarelos.
zz: Deve ter ficado bem chateado.
C: Teve azar, pois teve de ir à Madeira na mesma e depois daquela situação, eu fui dar-lhe uma bronca no balneário.
zz: Foi nessa bronca que deu um pontapé no caixote do lixo?
C: Foi. Eu tinha umas botas da Sendra, bicudas, dei um pontapé no caixote do lixo e furei o caixote, tendo o pé ficado preso lá dentro. Eu queria tirar o pé e não conseguia tirar o pé. Só tinha vontade de me rir. Olhava para eles e sentia a mesma coisa. O Giourkas Seitaridis diz que só tinha vontade de rir, mas olhava para o Bicho, Jorge Costa, e pensava que não poderia rir.
zz: Que episódio.
C: As coisas acabaram por correr bem, o Ricardo Quaresma depois veio falar comigo e percebeu que o papel dele era muito importante.
zz: A relação de Mourinho convosco sempre foi muito forte: ainda é assim?
C: Sim. É um treinador que se preocupa e gosta de falar com os seus ex-jogadores. E podem ver que há imensos jogadores que o vão visitar, eu próprio já o fiz. Já o fui visitar em todos os países onde ele está. Ele também gosta de receber e preocupa-se com os seus jogadores. Vocês não têm noção, mas ele tem o cuidado de saber como está a vida dos seus ex-atletas.
zz: O Cândido Costa já partilhou uma história sobre a forma como o Mourinho o ajudou com um prémio de jogo, na altura em que nasceu o primeiro filho.
C: Houve um ano que todos os jogadores que tinham objetivos no contrato cumpriram. Ele sabia que o bem-estar da equipa ia trazer benefícios.
zz: Tal como houve um dia em que foi a Madrid e ele ficou triste porque o Costinha não abriu o envelope com os convites que ele tinha deixado na bilheteira.
C: Verdade. Essa história é muito engraçada. Eu ia ver vários jogos da Champions League a Madrid, quando ele estava no Real. Um jogo contra o Lyon, que ele dizia que eu tinha ido ver por causa do Claude Puel - para picar comigo dizia que eu o considerava um pai -, mas disse que tinha deixado os bilhetes para mim nas relações públicas. Eu fui para o jogo com o Jorge Mendes e ele disse que ia dar os bilhetes do Mourinho a alguém e que eu iria para o camarote dele. Assim fizemos. Quando acabou, fui para a zona mais privada do estádio, onde o Mourinho viria ter connosco. Ele a dizer que o meu pai o queria enganar e eu a dizer que não. Ele estava sempre a fazer perguntas e eu estava a perceber que ele me queria dizer alguma coisa, mas não sabia o que era.
zz: E como perguntou?
C: Diretamente. Ele vira-se e diz: Então, gostaste do bilhete? Eu digo que tinha ido para o camarote do Jorge Mendes e que ele tinha dado a uns amigos dele. É quando ele diz que tinha feito o desenho do golo do Manchester United x Porto na traseira do bilhete e que eu não tinha visto. Algum felizardo ficou com esse desenho do Mourinho... Qualquer dia ainda vamos ver esse desenho no Ebay.
zz: Foi uma carreira feliz?
C: Foi super feliz. Mudava duas ou três coisas, pois queria ter-me despedido a jogar, mas considero que foi uma carreira feliz. Fui internacional pelo meu país, ganhei os três troféus mais importantes de clubes, a UEFA, a Champions e a Intercontinental- ainda para mais com um clube que não é das big 5, mas que tem uma ambição tremenda. Pelo meio conheci grandes jogadores. Poderia ter ido mais cedo para Madrid, não para o Atlético, mas sim para o Real Madrid. No entanto, o FC Porto não aceitou a minha transferência, juntamente com o Ricardo Carvalho. Eu tenho de estar feliz com aquilo que fiz.
zz: Quem merece o maior agradecimento?
C: Eu, em primeiro lugar. Pareço o Snoop Dog, mas é verdade. Nunca fui atrás das pessoas que diziam que eu não ia conseguir, o meu pai inclusive. Eu ouvia muitos não vais conseguir. Eu, o Jorge Mendes... Ele tem que ter um destaque muito grande, pois foi buscar um miúdo ao Oriental e andou com o miúdo do Oriental até conseguir colocá-lo num grande clube europeu. Eu sei que ele falava com vários clubes e tem lugar na minha galeria. Depois, tenho de destacar a minha esposa, não por cliché, mas porque ela foi inexcedível. Eu saio do Monaco, a Carla fica com o miúdo e teve de tratar de tudo. Saio para Espanha e ela teve de tratar de tudo. Saio para Itália e ela teve de tratar de tudo... Venho mais cedo seis meses de Itália e ela fica lá sozinha. No espaço em que me quis afirmar como profissional de futebol, fui pai e ela foi mãe e pai porque a minha ferramenta de trabalho é o meu corpo e ela esteve sempre presente. Dava apoio e aquilo que eu não poderia dar, pois tinha de conseguir descansar para render em campo. Eu tinha sempre a preocupação de, como pai de família, trazer algo para casa. E eu não são uma pessoa fácil de conviver nestes aspetos, pois sou maníaco pelo trabalho. Ela foi muito importante. Em termos de treinadores, diria quase todos, mas José Mourinho está no topo da pirâmide, depois o Jean Tigana porque apostou num miúdo, o Claude Puel porque apostou em mim para capitão, depois da saída do Tigana... O mister Luiz Felipe Scolari pela confiança que me deu, o mister Humberto Coelho porque foi quem me abriu as portas da seleção.
zz: Só falta mesmo o teu 11.
C: O 11 com quem eu joguei... Vou colocar o Vítor Baía na baliza, à direita o Paulo Ferreira, os centrais são o Jorge Costa e o Ricardo Carvalho. À esquerda vai ser o Nuno Valente. No meio campo vai estar o Maniche, o Deco e o Marcelo Gallardo. Na frente, o Thierry Henry, o David Trezeguet, que foi um dos melhores avançados com quem joguei, e o Luís Figo na direita.