
Apercebeu-se do buraco onde o Boavista-SAD estava a cair, ou a magnitude do dano apanhou-o desprevenido?
A dimensão financeira do problema era, de certa forma, conhecida de todos, mas até ao último instante foi havendo promessas de que – como noutras ocasiões – os problemas fossem sendo resolvidos sem comprometer a participação da equipa da SAD nos campeonatos profissionais. Por mais de uma vez tive contactos com o senhor Gerard Lopez, até antes de ser eleito e, inclusive, cheguei a apresentar cenários que viabilizariam a solução, mas em especial quando me apercebi de que algo de profundamente errado poderia vir a suceder. Enviei mensagens, liguei-lhe, mostrou muito interesse em falar comigo mas verdadeiramente nunca o fez. E até lhe digo mais, cheguei a falar com o Oliver Kahn que, à data, equacionava a compra do Bordéus ao senhor Gerard Lopez e que me confidenciou que iria desistir da negociação. Ou seja, diria que o realmente que me apanhou desprevenido foi o facto de a SAD não ter conseguido licenciamento para a Liga 2, porque alegadamente as verbas necessárias não chegaram a tempo. Várias vezes alertei os dirigentes da SAD para este perigo, mas pelo que entendi também eles não puderam fazer nada para resolver o problema.
Os clubes têm os cuidados devidos quando aceitam investidores maioritários, ou deviam estar protegidos por um escrutínio legal mais rigoroso, como sucede, por exemplo, em Inglaterra?
Não posso falar pelos outros clubes, e não estive na entrada de Gerard Lopez no Boavista. Objetivamente, o número de sucessivos problemas a que vamos assistindo em Portugal leva-me a concluir que muito provavelmente a resposta é não. Em desespero, os clubes têm aberto as portas a maus investidores, muitas vezes encostando as pessoas à parede com uma argumentação do tipo “é isto ou é o fim”. E bem sabemos que em desespero, não há escrutínio. Este não é problema exclusivo do desporto, note-se. Quem está com a corda ao pescoço aceita qualquer ajuda. Todos os que acompanham o futebol em Portugal sabem que poucos projetos de entrada de investidores foram estruturados com sentido estratégico. Muitas vezes a tática é salve-se quem puder…
A separação clube-SAD, com equipas e identidades diferentes (um pouco como o Belenenses em que a SAD deixou de poder usar o nome e os símbolos do clube), é inevitável?
Esta SAD colapsou, se vai morrer depende dela e não de nós. Mas o Boavista é eterno e resistirá enquanto um sócio por ele lutar. Felizmente, somos não um, nem 100. Há milhares de Boavisteiros empenhados em manter viva esta história iniciada em 1903. Nos campeonatos distritais, sem receitas, sem ativos, e com um passivo gigantesco, não vejo viabilidade na SAD. Fiz, eu e esta Direção, tudo o que estava ao meu alcance para evitar este desfecho mas, aqui chegados, parece-me claro que uma SAD que não respeita a história e responsabilidade social do Boavista, não nos representa. A SAD não cumpre o protocolo assumido para utilizar o Estádio do Bessa e o nosso emblema ao peito. Como manter uma relação assim?
É comportável que o Boavista jogue no estádio do Bessa, com todos os custos associados, numa divisão distrital?
O Estádio do Bessa é a nossa casa, é a casa dos Boavisteiros, e é na nossa casa que todos gostariam de ver o Boavista jogar. Como é sabido, há restrições impostas pela Proteção Civil, a que se junta o elevado custo da manutenção. Em todo o caso, o nosso foco está hoje na defesa do superior interesse da sobrevivência do Boavista, e do próprio estádio, e tudo faremos, a cada instante, para encontrar soluções para as dificuldades. Este é um desafio a que teremos de procurar dar resposta. Estamos a estudar formas de potenciar o estádio, a sua rentabilização tendo em vista a sua sustentabilidade, aproveitando para preparar o estádio para o futuro do Boavista. Compete-nos, a todos, procurar soluções e parceiros empenhados em resolver cada um dos desafios. Esse será apenas um deles…
Teme que haja uma divisão entre os sócios (tal aconteceu no Belenenses, numa fase inicial) se houver, nas competições da AF Porto, em escalões diferentes, um Boavista e um, admitamos, Boa-SAD?
Não há nem haverá qualquer divisão entre sócios! Quem ama o Boavista reconhece o seu clube em qualquer parte do Mundo. Nos últimos dias tenho recebido centenas de mensagens e de telefonemas e, embora tente, dificilmente consigo responder a todas. Umas de otimismo, outras de incentivo, outras de preocupação, mas todas com uma mensagem comum: que o amor ao Boavista não é negociável. Falou de um Boa-SAD, e até estranhei, porque não sendo eu um grande consumidor de redes sociais, contam-me que há já quem chame a Boavista SAD de BSAD 2, numa referência a outro caso bem conhecido do futebol português. Sabemos que este é tempo de luto e que nem todos ultrapassam o luto da mesma forma, nem ao mesmo tempo, mas sabemos que os verdadeiros boavisteiros estarão nos jogos que a nossa equipa disputará nas divisões distritais.
O Boavista tem uma massa adepta fiel e vasta (ficou em sexto lugar nas assistências da I Liga de 2024/25). É esse o principal ativo do clube para enfrentar a ‘via sacra’ que se adivinha?
O Boavista existe pelos sócios e para os sócios. Os sócios não são apenas o principal ativo, são o sangue que corre nas veias da pantera. São a alma que faz a pantera querer ser sempre dominadora. Numa altura em que tanta gente fala do futebol negócio, e quando vemos como o negócio, por ser desregulado e selvagem, atirou com o Boavista para os distritais, prefiro nem falar de ativos… E como diz é importante reforçar que o Boavista era na última época a 6ª maior assistência da I Liga, já de si tão despida de público e difícil de vender pelas bancadas vazias, pelo que facilmente se percebe também a tragédia que daqui decorre para o futebol português. Se a isso aliarmos o peso histórico e social do clube, será um doloroso até-já para todos. Essa via-sacra que refere será dura, mas será também uma oportunidade, e o tempo para o Boavista se reorganizar, criando condições de sustentabilidade. Com coragem, unidos, vamos mostrar que o Boavista é eterno e que os boavisteiros estarão cá sempre pelo clube. Quando a camisola axadrezada entrar em campo e marcar o primeiro golo da temporada, quando conseguir a primeira vitória e quando, no final da época, celebrarmos a subida de divisão, estou certo de que lá estaremos todos, sem divisões.
Num primeiro momento, haverá entre os sócios do Boavista quem ajude o clube a formar uma equipa que comece, degrau a degrau, a subir a escada que há de levá-lo ao lugar que é historicamente seu?
Desde 1903 que os sócios do Boavista estão presentes. Nem imagina a quantidade de telefonemas e de mensagens que recebi na última semana, de gente a oferecer-se para ajudar. Nos últimos dias, dezenas de antigos jogadores, alguns velhas glórias do clube, telefonaram-me e mandaram-me mensagens a dizer “presidente, o Boavista conta comigo”. E todos sabemos que se há coisa que não falta são jogadores que, no contexto das divisões distritais do Porto, sonham em vestir esta camisola, em sentir o carinho desta massa associativa mesmo nas divisões distritais. Além de jogadores, fui contactado por antigos dirigentes, sócios anónimos. Sei, até, que muitos dos que foram meus opositores no ato eleitoral, estarão do lado do Boavista nesta caminhada. Porque o Boavista não sou eu, nem é meu. O Boavista é de todos e vai regressar ao lugar que historicamente é seu.
Admite falar com o presidente do Belenenses para se inteirar de forma mais pormenorizada da experiência que foi a ‘refundação’ do clube do Restelo?
Como interessado pelo desporto, e como advogado também, segui com interesse esse processo de separação do Belenenses da BSAD. É um processo muito diferente do nosso, embora tenha em comum algo que muito me preocupa e que, acredito, tem de ser colocado na agenda política: não é possível continuarmos a permitir que clubes históricos sejam forçados a constituir SAD, se depois lhes forem vedados mecanismos de proteção. Os negócios são feitos de boa-fé e quando um clube aceita perder a maioria do capital social, acredita que o investidor vai cumprir as promessas feitas e respeitar a sua história. Como é possível que não existam mecanismos de supervisão que o garantam? Boavista e Belenenses, mas também muitos outros, são vítimas desta falta de supervisão e da coragem política de dizer basta a investidores que não cumprem as regras do jogo. Acredito que dois clubes com o peso social e histórico que o país reconhece, têm uma palavra a dizer. Já troquei algumas mensagens com o presidente do Belenenses sobre estes assuntos e estou certo de que nos iremos encontrar a breve trecho, a meu pedido, até porque as rivalidades saudáveis que dão vida ao desporto não sobreviveriam se estivesse em causa a existência das instituições que lhes estão subjacentes. Aliás, não só com o Belenenses, mas com vários outros clubes cujos presidentes me têm confidenciado que as relações com as suas SAD estão a deteriorar-se, e que temem vir a entrar no processo em que o Boavista se vê agora envolvido.
Como explica o facto de a cidade do Porto apenas ter, ao dia de hoje, um clube no futebol profissional?
Em Portugal há uma polarização totalmente exagerada em torno de três clubes e uma tendência para ignorar o que se passa à volta. As cidades são espelhos do país e os bairros espelhos das cidades. Até nas páginas dos jornais, e nos sites, se verifica esta desproporcionalidade. A lógica, entendo, é a da oferta e a da procura. Se clube A tem mais adeptos, então tem mais espaço nas páginas. Se clube B tem menos espaço, então vai, também, ter menos adeptos. Junta-se a esta dinâmica erros de gestão passados, bolas que batem em postes e não entram, e chega-se a este cenário. A questão que refere é em todo o caso uma situação que deve dar que pensar às várias instâncias desportivas e também à Câmara Municipal do Porto que deve, neste xadrez, ser parte da solução, e na qual tanto a Associação de Futebol do Porto como a Federação Portuguesa de Futebol devem refletir com proatividade. Mas isto não pode ser visto com fatalismo. Ter ao dia de hoje apenas um clube no futebol profissional não é o mesmo que dizer que o futebol morreu no Porto. No Boavista não morreu! Estamos vivos e vamos voltar à Liga. Esperem por nós, que viremos com a força de sempre!
Cada clube nunca é mais do que os seus sócios e adeptos, e nessa medida, a sobrevivência do Boavista não há de estar em causa. O que é que o presidente do Boavista tem, neste momento, para dizer à nação axadrezada?
Continuem a vir. Regressem. Tragam um amigo. Acreditem. O Boavista é eterno e com o apoio de todos vai voltar ao seu lugar. Sábado temos uma AG para falar sobre o futuro. Venham todos, pois vamos ter uma das conversas mais importantes da nossa história, vamos discutir as soluções que temos, ouvir propostas. Vamos construir o futuro de um Boavista à Boavista.