A cena é esta: Tiago Gouveia, Tomás Araújo e António Silva, nas bancadas da Arena de Munique, com camisolas do PSG. O tablóide grita. O povo abana a cabeça. Os sensatos encolhem os ombros. “Um não-assunto.”, “A silly season a chegar ao futebol.”, “O Correio da Manhã procura polémica em tudo.” E, afinal, talvez não fosse assim tão grave. Era a noite do grande amigo João Neves, há até uma certa candura no gesto. Os três mosqueteiros com o seu d’Artagnan, enfrentando uma quadrilha de italianos. Capa e pluma igual; bigode e tudo. Um excerto de Dumas, se Dumas, pai, escrevesse sobre laterais-direitos. Fraternité, dir-se-ia. Fraternidade.
Mas o futebol não é sensato. Muito menos o Correio da Manhã. E talvez, por andar aí a bater os montes e vales e sarjetas deste esplêndido Portugal, o diário esteja, afinal, sintonizado com o instinto, o estômago, o fígado do país. O povo bate, e o jornal bate com ele. Por isso sabe que aqui há pecado. Que há assunto.
Eis o problema: uma camisola não é uma camisola.
No futebol, caro leitor, a camisola é mais do que a segunda pele, é a anatomia do adepto: as riscas são vasos circulatórios, a cor é o sangue imobilizado nas fibras de poliéster, e o emblema, claro, o emblema é o coração. Ao vesti-la, ficamos com as entranhas expostas, numa espécie de raio-x emocional e a cores.
A ideia não é nova. Creio que foi o Ricardo Araújo Pereira quem a disse primeiro: no futebol, hoje, torce-se por roupa. Tinha razão. Os jogadores vão e vêm como carga num porto. As tácticas servem para justificar o salário dos seus intérpretes. O que fica, o que arde, são as camisolas.
A teoria não invalida os, cada vez mais raros, jogadores-símbolo. Mas mesmo nesses, o que importa é o que vem depois do hífen. A paixão futebolística alimenta-se de signos, sinais, da vexilologia e da heráldica. E é quando um homem deixa de ser apenas um homem, passando a fazer parte desse apaixonante grimório, que atinge a perfeição. Deixa de ser atleta, passa a ser ícone. A carne envelhece. A ideia não.
O Santa Clara, por exemplo, armou-se em Juventus (um clube odioso) e foi mexer onde não se mexe. Alterou o emblema. Ficou liso, genérico, sem alma, sem história. Ficou como ficam todas as coisas quando nos esquecemos do nome dos nossos avós. Com ar de logótipo de empresa de transportes. Foi uma ideia trágica. Não por aquilo em que se tornou, mas por aquilo que deixou de ser.
A mudança é uma doença. Uma febre da alma. Camões morreu disso. De ver como a vertigem da novidade corrói o espírito humano. A mudança é a meretriz de Babel, que se vende pelo efémero. A nós, que choramos como o bardo, resta Sião. A saudade. O sangue antigo. A memória espiritual. Um clube que muda de cara perde o rosto. E quando perde o rosto, perde os filhos.
O tema é seríssimo. No Benfica, por exemplo, numa das últimas Assembleias de Revisão de Estatutos, passou-se um dia inteiro a discutir camisolas e emblemas.
— As garras da águia não podem agarrar o pneu! Têm de agarrar a fita! Aplausos.
— E o segundo equipamento é branco. Sempre branco! Vivas, urras.
— Evidente! E não há emblemas monocromáticos. Ninguém brinca com o emblema! “Benfica, Benfica, Benfica”, etc.
Por isso, ao ler que Rui Costa ficou aborrecido “mais com o impacto da foto nas redes sociais do que com o facto de terem camisolas do PSG”, pergunto-me se, acaso, não esteve no Pavilhão Borges Coutinho nesse dia. Ele, tão benfiquista quanto nós, parece não perceber que, quando tudo nos é tirado, sobra apenas a roupa que trazemos vestida. Neste caso, roupa vermelha.
Mas o nosso Presidente está mais preocupado com questões de percepção do que com minudências de identidade. É aquela distância emocional que o jogador de futebol aprende a cultivar, tão estranha ao adepto que sonha jogar sempre, e só, no seu clube. Que sonha morrer envolvido pelo equipamento que ama. Que se reconhece na fidelidade pré-Bosman, ou em figuras fora do prazo, como Totti. Mas Rui Costa traz essa frieza entranhada. A mesma que o levou, em tempos, a queixar-se de que o Benfica lhe estaria a cortar as pernas por não o deixar partir para Barcelona.
Enfim, talvez o problema seja nosso. Da nossa estupidez.
Alguém embrulhou, algures, a seguinte frase: “Criticar isto por achar que é uma falta de respeito ao Benfica é ver a vida pelo ângulo errado.” Suspirei. E pensei: esta gente não percebe nada. Que a paixão pelo futebol é, precisamente, isso: ver as coisas pelo ângulo errado. O ângulo que nos faz ver uma camisola como se fosse armadura, paramento, mortalha. Que nos faz ver, enfim, as coisas como elas são.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.