
Carlos Kaiser nasceu em 1963, passou pela formação de Botafogo e Flamengo e, entre 1979 e 1992, jogou nas equipas séniores de ambos, assim como no Puebla, no Vasco da Gama, no América, no Fluminense, no Independiente, no Bangu, no El Paso Sixshooters e no Gazélec Ajaccio.
Há, porém, um erro nesta formulação. Porque, na verdade, Carlos Henrique Raposo, nome verdadeiro, nunca jogou em nenhum destes clubes. Em 13 anos de carreira, através de vários esquemas e mentiras, fez aquilo que mais desejava: ser futebolista... sem jogar futebol.
A alcunha Kaiser remonta a Der Kaiser, Franz Beckenbauer, estrela do futebol alemão com quem tinha parecenças físicas. A isso ajudava que tivesse talento suficiente para chegar, pelo menos, às camadas jovens do Botafogo e, depois do Flamengo.
Aos 16 anos, rumou ao Puebla, do México, antes de regressar ao Botafogo e, depois, de novo ao Flamengo. E a desculpa era sempre a mesma: depois de brilhar nos treinos físicos de pré-época que fazia sozinho, para recuperar a forma (os problemas de Kaiser não eram a nível físico, mas era a nível técnico que se mostrava muito inferior aos outros), na altura dos treinos coletivos fingia uma lesão muscular. A partir daí, tornava-se num «especialista de moral» do plantel, ajudando os jogadores.
Era no plano do carisma que Kaiser brilhava. «Se o deixasses abrir a boca, já estava feito. Encantava-te. Não conseguias evitar», explica Bebeto, internacional brasileiro de quem Carlos Kaiser se tornou amigo. Tal como de Carlos Alberto, Renato Gaúcho ou, por exemplo, vários jornalistas e dirigentes: os segundos tratavam de o contratar e os primeiros escreviam histórias falsas. Sempre que era preciso, o dom da palavra safava o (suposto) médio-ofensivo, que conseguia enganar tudo e todos.
Também importa destacar que muitas destas histórias só foram possíveis devido à mistura perfeita entre a facilidade de ludibriar e o desenvolvimento tecnológico e social que se vivia na altura. Além de não haver, nos anos 80, capacidades por parte dos clubes para diagnosticarem, com toda a certeza, se havia ou não uma lesão muscular, alguns fatores, como não falar inglês, foram sendo explorados por Kaiser, que usava um telefone falso para, perante a ignorância de todos, simular propostas do estrangeiro, para poder dizer que queria continuar no clube em que estava.
No Botafogo, porém, um médico falava inglês e, por isso, foi descoberto. No Gazèlec Ajaccio, a equipa organizou uma sessão de treinos aberta na apresentação, mas, para não ter demostrar a falta de dotes técnicos, bateu as bolas para as bancadas. Ainda simulou que era Carlos... Enrique, jogador do Independiente que conquistou as finais da Taça Libertadores e da Taça Intercontinental em 1984 e que teria chegado à Argentina pelas mãos de um amigo de Burruchaga, campeão do Mundo em 1986.
Nada baterá, porém, o susto da única vez em que esteve perto de se estrear. No Bangu, do Rio de Janeiro, Castor de Andrade era o presidente. Era, também, um magnata do jogo ilegal e uma pessoa com quem toda a gente sabia que não se devia meter. Excepto Kaiser, que assinou pelo Bangu e, logo de início, lá simulou nova lesão muscular. Só que Andrade queria que «o novo rei do Bangu», como o apelidou logo à chegada, estivesse na ficha de jogo. Então, havia ordens para Kaiser estar no banco no jogo seguinte. Mesmo com garantias de que não jogaria, o Bangu começou muito mal o jogo e o treinador, ordenado pelo presidente, enviou o jogador para aquecimento.
Como é que Kaiser se safou? Segundo consta, ouviu um adepto na bancada a defini-lo como «maricas de cabelo grande». Um pretexto perfeito para se atirar às bancadas, o que levou a que visse o cartão vermelho. Foi, de seguida, chamado ao gabinete de Castor de Andrade e, aí sim, estava no seu campo preferido: o da conversa. «Deus levou os meus dois pais mas deixou-me outro, que estavam a acusar de ser um vigarista. Então fiquei perdido e atirei-me a eles. Mas não se preocupe: o meu contrato acaba daqui a uma semana e vou-me embora», disse, alegando estar a defender a honra do presidente. Resultado? Renovação por mais seis meses.
Uma história que deu um filme
Em 2018 foi lançado o documentário «Kaiser! O maior futebolista a nunca jogar futebol». Nesse documentário, o antigo futebolista conta que nunca quis jogar futebol, mas queria ser futebolista. «Eu queria estar com os outros jogadores. Queria ter a vida de futebolista sem ter de jogar», explica o brasileiro, que ainda deixa uma 'farpa' aos clubes: «Há tanto tempo que enganam os jogadores. Já fazia falta alguém como eu.» No mesmo documentário, Kaiser conta que gostava de participar em festas e ainda remata: «O meu vício é o sexo.»
Aos 10 anos, Carlos Kaiser já sustentava a família e fartou-se do desporto-rei. Para contornar isso, simulou lesões, histórias e qualidades que, durante 13 anos, lhe permitiram tornar-se num dos jogadores mais famosos de sempre. Aliás: num dos futebolistas mais famosos de sempre. Porque para se ser jogador é preciso... jogar.