Em apalpação contínua, experimenta-se aqui e testa-se acolá, Rui Borges quis ter o aprumo de Daniel Bragança e o seu pé esquerdo atrás do avançado e como terceiro médio. Perdia em finta, no rasgo em movimento, o que ganhava na aptidão do canhoto da franja adolescente para colar a bola ao pé, procurar tabelas e combinar. Com Trincão deixado à direita, embora mantendo a sua queda para descair para o centro, o Sporting tentou inicialmente esventrar o Nacional por dentro. Acumulou homens no miolo, forçou passes ao meio, tentou tabelas curtas, ligações entre sujeitos às vezes nem a dois metros um do outro. Insistiu onde os madeirenses mais se fechavam.

Faltou largura, gente a farejar as linhas laterais que fizesse a linha defensiva de cinco jogadores do Nacional preocupar-se com ameaças que pudessem vir de fora em vez de saberem por onde o adversário haveria de tentar furar. Morita desatava nós no meio-campo, mas longe da área. Bragança sofria por entre tantos corpos. A melena loira de Hjulmand ajudava mais na reação à perda, a pressionar sem bola, do que desbloqueava imbróglios com ela. Trincão mantinha a desinspiração recente e Gyökeres, a jogar quando 95% dos futebolistas estariam parados, segundo o seu treinador, sofria estranhamente com as faíscas do confronto físico com o central Ulisses.

A compostura defensiva do Nacional, elogiável na coesão do seu 5-4-1, tinha o outro gume de encurtar demasiado a equipa. Nas bolas que recuperava, ter os jogadores tão juntos em 30 metros do campo fazia deles antílopes na pradaria, aptos a serem logo pressionados pelos leões. Eram incapazes de terem jogadores a correr para Luís Esteves ou Bruno Costa, os talentosos trazidos da Madeira, os servirem. Os visitantes defendiam, os anfitriões atacavam, as balizas bocejavam de aborrecimento.

Porque o Sporting era um muito cheio de quase nada, Em 45 minutos teve um livre cruzado para a área onde Hjulmand desviou e Inácio cabeceou a bola às mãos do guarda-redes, antes de construir uma jogada vistosa para Geovany Quenda meter uma bola tensa entre os defesas e a baliza, numa zona onde apareceu ninguém da sua equipa. Controlador sem ser criativo, dominador porém desinspirado a conspirar com os poucos espaços, o Sporting entediava ao ponto de ter estado a uma unha de me fazer maçar-vos com a Odisseia de Homero (devido ao Ulisses fazia a Gyökeres) ou a desencantar algum paralelismo na biografia de Louis Braille, o inventor do alfabeto no qual os jogadores da casa tinha o seu nome estampado na camisola.

JOSE SENA GOULÃO

Mas alguém cravou uma dentada no marasmo.

Vergado à intermitência desde a ida de Ruben Amorim para Manchester, o talento de Francisco Trincão precisou de um momento só dele, desligado dos demais, deixado à sua sapiência, para dar um safanão na partida. A uns 30 metros da baliza, chegou-lhe a bola sem vivalma por perto. Ajeitou-a como quis, ousou rematar dali mesmo. Saiu um balázio seco, dos que fazem o guarda-redes parecer minúsculo perante um tiro que entra no ângulo superior. Jogadores do Sporting levaram as mãos à cabeça, ele sorriu, feliz certamente, aliviado quiçá também. Nem que só por uns breves instantes, devolvia-se à exibição flagrante das suas aptidões inatas, de um jeito a que poucos outros chegam de momento em Portugal.

Dos descontos surgiu o golo, segundos volvidos quase apareceu outro: como que curado da ausência de soluções, o Sporting lançou Gyökeres na área e, de pé esquerdo, o sueco sacou de Lucas França uma parada salvadora. O talento, às vezes, dá ares de milagreiro.

A sapatada à bruta que Trincão deu no jogo arrancou ao Nacional as suas premissas cautelosas, essas ficaram no balneário. Os madeirenses tiveram que sair da toca, avançaram as suas fileiras, viu-se o treinador Tiago Margarido a incentivar os jogadores a pressionarem na metade do Sporting. Tinham que ousar. Bruno Costa e Luís Esteves tentavam tocar na bola uns metros adiante, o lateral Gustavo Garcia já acompanhava os ataques que em Joel Tagueu, avançado saído do banco, ganhavam uma referência que tentasse segurar a bola lá à frente.

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Mudando os madeirenses de postura, o encontro perdeu uma toada constante, trocando-a por um ritmo mais à boleia de transições, sem grandes ataques continuados. No turbilhão dos repelões, o inesperado Fresneda surgiu na área a desviar um cruzamento do errático Maxi Araújo, jogador com tendência para desperdiçar espaços que o próprio gera. Geny Catamo também rematou, mas de longe e de trivela, sem o mesmo perigo. Houve um jogadas do quase, geradas sem grande engenho e desvanecidas na mesma carência de acerto. Num par delas, Gyökeres desesperou por o último passe não lhe ser dado em condições.

Se a descrição padece de entusiasmo, condizente é com uma segunda parte que foi sangue do mesmo sangue da primeira. Um Nacional a querer aventurar-se, mas ainda curto, despido de produto final, não remataria uma vez à baliza em 90 minutos - as luvas de Rui Silva apenas sentiram a bola ao agarrarem dois cruzamentos. À desinspiração coletiva para colar jogadas, o Sporting acrescentou um abrandamento de ritmo, fosse por querer serenar o controlo ou pelo cansaço de uma equipa muito rodada e com jogadores na corda bamba entre o regresso de lesões e a escapada a recaídas. O inconsolado Morita pareceu ser substituído devido ao reavivar de uma mazela recente.

E eu aprontava-me para vos contar como o senhor Braille, tinha ele três anos, se pôs a brincar com ferramentas na loja de arreios do pai e uma caiu-lhe no olho direito, cegando-o. Parte da culpa involuntária esteve nas cavalgaduras, ele ficou cego no lugar onde se construíam peças para montar cavalos e quando Trincão, por fim, teve descanso para as suas pernas, as que já tinham as meias em baixo, deu um abraço prolongado a quem entrou para o seu lugar. Foi João Simões, o mais recente produto de Alcochete, adolescente aparecido mais para ser um tapa-lesões que aproveitou para se montar em algum talento, talvez por osmose, nem que fosse uma ligeira pitada, do jogador que lhe deu lugar.

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Seria o jovem da Academia, em esforço e às últimas, a chegar à área para rematar um cruzamento de Geny Catamo e imediatamente levar as mãos aos olhos. As lágrimas, se em enxurrada, também cegam. Por momentos a emoção de João Simões desaguou olhos abaixo, ele a correr que nem doido pelo relvado com uma equipa a abraçá-lo. Um jogo cinzento, empapado em desinspiração, era salvo por dois momentos áureos que destoaram gritantemente de tudo o resto.

Ganhou a emoção, ganhou o Sporting, ganhou o líder do campeonato três pontos que aumentam para seis a vantagem sobre o Benfica.