Portugal trabalhou e foi bem sucedido a conseguir formar a geração mais bem preparada de sempre. Mas o país não estava preparado para a receber com a ambição desejada. O êxodo de talento jovem deixou o país mais pobre e agravou a crise demográfica, pondo mesmo em causa a prosperidade que se ambiciona para Portugal. Que caminho tem o país de tomar e como pode preparar-se para voltar a atrair a geração mais bem preparada de sempre e recuperar o futuro?
Daniel Traça, professor de Economia, ex-dean da Nova SBE que revolucionou o ensino naquela escola, tornando-a numa das mais cotadas a nível europeu e mesmo mundial, e que agora lidera a ESADE, em Barcelona, assumindo o cargo de diretor de uma das mais importantes escolas europeias de negócios, desenhou um mapa para o país recuperar a ambição e a sua hipótese de futuro.
Ao SAPO, Daniel Traça antecipa o epílogo de Ambição. Preparar Portugal Para a Geração Mais Bem Preparada, o livro escrito com Paulo Ferreira, e que hoje é lançado, pelas 18.30, na Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, com o antigo vice-primeiro-ministro Paulo Portas a fazer a apresentação.
EPÍLOGO: Ambição. Preparar Portugal Para a Geração Mais Bem Preparada.
"O projeto deste livro foi inspirado pelo fenómeno de emigração qualificada que o país tem vivido. Se para a opinião pública e para os media este fenómeno ganhou relevância mais recentemente, ele era bastante evidente desde há alguns anos para mim, como parte da equipa de direção da Nova SBE. A diferença salarial que os graduados da Nova SBE que partiam para uma carreira internacional conseguiam face aos seus colegas que ficavam em Portugal era vertiginosa.
No entanto, também é bastante claro para mim que o fenómeno se agravou nos últimos anos. A preocupação estendeu-se aos pais com mais posses, que questionam se os seus filhos devem fazer a sua licenciatura em Portugal correndo o risco de comprometer o seu futuro. Muitos decidem que não, apesar da dor de os verem partir tão jovens. Não pode haver prova mais clara da falta de confiança no futuro do país.
A minha formação como economista levou-me a procurar a explicação deste brain drain português, na incapacidade de a economia nacional oferecer oportunidades aos jovens graduados, da Nova SBE e das outras universidades do país. Essa investigação resultou neste livro. Ao longo do processo de recolha de dados e de redação, a minha preocupação com a evolução que a economia de Portugal teve ao longo das duas primeiras décadas do século xxi foi-se agravando.
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Foram 20 anos paradoxais. Por um lado, o país demonstrou uma capacidade superlativa na educação da sua juventude, nomeadamente no acesso e conclusão do ensino superior, recuperando o seu atraso para a média europeia. Isto, apesar das dificuldades sentidas no período do programa de ajustamento.
Por outro lado, a economia portuguesa mostrou-se incapaz de criar oportunidades para tirar partido desta criação de talento. Ao contrário do que prevê a teoria económica, a evidência empírica histórica, e os acontecimentos noutras economias europeias nestas duas décadas, a economia portuguesa cresceu de forma pírrica, os salários aumentaram apenas pelo efeito do aumento do salário mínimo, a produtividade nas empresas evoluiu pouco, a percentagem do emprego nos setores sofisticados caiu e a qualidade institucional do setor público diminuiu. Paradoxos que permitem qualificar de desaire o século XXI da nossa economia.
As causas próximas deste desaire estão relacionadas com o desempenho do setor empresarial e a queda de qualidade institucional do setor público. Se agregarmos a performance empresarial em aspetos como a internacionalização, a dimensão das empresas, a inovação, a qualidade da gestão e o investimento nestas cinco dimensões, as unidades portuguesas deixam para trás apenas as
italianas e as gregas. Dito isto, o país tem também para contar histórias de sucesso internacional de empresas e setores, como o calçado, que demonstram que é possível fazer diferente. O drama é que estas histórias de sucesso são escassas e replicam-se pouco.
No setor público, os números apontam a responsabilidade para uma queda da despesa, mas sobretudo para uma fraca capacidade de transformar gastos na administração pública em qualidade institucional, quando comparado com os congéneres europeus.
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Mais relevantes são as causas profundas. Aqui, é difícil fazer afirmações com rigor científico porque a investigação é insuficiente, pelo que as hipóteses levantadas nos capítulos deste livro devem ser entendidas com uma grande humildade intelectual.
Do lado das empresas, os dados existentes permitem suspeitar da elevadíssima fiscalidade sobre as empresas, mas também de fatores associados ao próprio empresariado. A idade dos quadros gestores nas empresas portuguesas está a aumentar depressa, e as características culturais dessa geração, documentadas por estudos académicos internacionais, põem-na como uma das mais avessas à incerteza da mudança, menos orientada para o longo prazo e com menor proximidade e mobilidade hierárquica, entre os congéneres ocidentais. Estes fatores geram uma incapacidade de aumentar a produtividade e criar oportunidades de progressão para os mais jovens, mas também uma cultura de empresa muito vertical e estática, pouco motivadora para a gerações mais jovens.
O tema da fiscalidade está relacionado com o fraco crescimento económico, que limita as receitas fiscais, mas, sobretudo, com a fraca eficiência do setor público que consome uma despesa pública muito elevada (ainda que ligeiramente menor do que antes da crise) para financiar as necessidades do Estado social. Financiá--la sem fazer explodir a dívida implica impostos elevados.
Assim, do lado do Estado, a causa fundamental desta falta de eficiência, que vivi pessoalmente durante os anos em que exerci responsabilidades de gestão na Nova SBE, tem que ver com o contexto da gestão do setor público em Portugal. É um contexto que desvaloriza o reconhecimento do mérito e protege a mediocridade, por um lado; e que premeia o cumprimento de regras e regulamentos em detrimento dos resultados, violando a discrição necessária a uma gestão competente. Este contexto gera no Estado uma cultura de inovar pouco para não correr riscos, com consequências nefastas para a qualidade institucional, prejudicando a qualidade dos serviços públicos aos cidadãos. Mas que também prejudica a economia. Por um lado, uma menor eficiência do Estado aumenta os custos e exige uma fiscalidade que mina as empresas. Por outro, ao gerar uma qualidade institucional deficiente, prejudica o ambiente de negócios que é crítico para as empresas. O mau funcionamento da justiça é um exemplo deste fenómeno para os cidadãos e as empresas.
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Ao longo dos capítulos deste livro, preocupei-me em apresentar evidência empírica de fontes reconhecidas que suportam estas conclusões e a narrativa subjacente. O diagnóstico difícil a que cheguei não deve ser visto como um exercício de masoquismo ou de autoflagelo. Estas são características que atormentam a cultura nacional, mas produzem pouca mudança. Mas é importante para reconhecermos que há que mudar, e por onde deve começar a mudança, com base nos dados e na evidência empírica.
Nesse sentido, preocupei-me também em apresentar pistas para a mudança, inspiradas, obviamente, pelas causas fundamentais que sugeri como as mais relevantes, mas também pela minha experiência na Nova SBE e em trabalho académico. Talvez a conclusão mais importante seja que não basta mudar o Estado, como preconizam as empresas, ou mudar as empresas, como defende o setor público e a classe política. A mudança necessária é transversal, de elevada magnitude, urgente e tão acelerada quanto possível.
As pistas para essa mudança nas empresas passam por uma transição geracional acelerada, por uma maior capacidade para colaborar, por uma consolidação por aquisições e fusões, possivelmente acelerada pela ação de fundos de investimento e private equity, e por uma vontade de transcender a cultura e os nossos instintos primários. Tudo isto se resume numa palavra: ambição.
Mais ambição para crescer, para internacionalizar, para ter impacto, para deixar uma marca relevante, para fazer a diferença. E, como facilitador dessa ambição, uma disponibilidade para arriscar e para o desconforto da mudança.
A minha experiência na Nova SBE demonstrou-me que a ambição é fundamental para chegar longe – querer chegar a Marte para atingir pelo menos a Lua. Mas também que a ambição, quando alinhada com um propósito maior e com significado, é imprescindível para motivar e para inspirar. Não há melhor motivador do que a vontade de fazer a diferença, e a oportunidade e fazê-la com equipas com as quais nos identificamos. Por outro lado, essa ambição com propósito, é crítica para gerar a resiliência necessária para ultrapassar as dificuldades que inevitavelmente surgem e a criatividade para encontrar as soluções para vencer essas dificuldades.
Por outro lado, a mudança tem também de chegar ao setor público. Não apenas aumentando os seus números e as suas qualificações, investindo os milhões do PRR em programas de formação, como é prática corrente, mas sobretudo alterando o modelo de gestão deste setor, com mais foco nos resultados e menos foco na microgestão regulamentar dos processos. Há também que criar mais espaço para premiar e reconhecer o mérito e atrair o talento em alternativa à proteção da mediocridade e da segurança laboral.
Fundamentalmente, é preciso dar mais liberdade aos gestores públicos para tomar decisões e motivar as suas equipas, e avaliá-los e reconhecê-los pelos resultados que obtêm, mesmo que isso signifique alguns abusos e desperdício.
Por último, a mudança no Estado e nas empresas poderá abrir espaço para mudar também a relação entre ambos. O reconhecimento recente do papel da articulação entre políticas públicas e a transformação das empresas e setores, sobretudo no contexto de transformação tecnológica e de resposta aos desafios da sustentabilidade climática e da rivalidade geoestratégica, deve potenciar uma colaboração que pode acelerar exponencialmente a transformação da economia portuguesa."