
O estudo trienal internacional “Ethics at Work”, realizado entre 2018 e 2024, em Portugal, revela que os trabalhadores portugueses se sentem cada vez mais pressionados a comprometer os padrões éticos da sua organização e têm uma visão negativa sobre a capacidade da organização se envolver efetivamente com as partes interessadas. No entanto, houve um aumento na perceção da existência de programas de ética, com mais trabalhadores a reportarem condutas impróprias, embora a retaliação após o reporte continue a ser uma preocupação significativa. O documento também destaca a importância de melhorar os mecanismos de denúncia e de reforçar a formação em ética para consolidar culturas organizacionais éticas.
A ética no trabalho constitui, cada vez mais, um pilar fundamental da sustentabilidade organizacional, sendo por isso crucial compreender, mas também comparar, a evolução das condutas éticas, quer a nível nacional quer internacional. O estudo trienal aqui apresentado integra um projeto longitudinal de diagnóstico da cultura ética nas organizações, procurando compreender as perceções, atitudes e comportamentos dos trabalhadores em relação à ética no seu local de trabalho, o Ethics at Work: 2024 international survey of employees[1]. Portugal esta incluído desde 2018, através Fórum de Ética[2] da Católica Porto Business School.
Principais Resultados de Portugal em 2024
Os trabalhadores portugueses estão entre os que mais afirmam ter-se sentido pressionados a comprometer os padrões de comportamento da sua organização e entre os que mais afirmam ter tido conhecimento de condutas incorretas no trabalho.
A opinião dos trabalhadores sobre o empenho do seu superior hierárquico em matéria de ética também piorou desde 2021. Além disso, em comparação com a média global, têm uma visão pior sobre a capacidade da sua organização de se envolver efetivamente com as partes interessadas internas e externas.
As boas notícias são sobre a existência de programas de ética. Os trabalhadores aumentaram a perceção de existência na sua organização de cada um dos quatro elementos constitutivos de um programa de ética: código de ética ou conduta; meio de comunicar confidencialmente a má conduta; mecanismo aconselhamento sobre condutas éticas; formação em ética.
Seis em cada dez colaboradores que tiveram conhecimento de uma má conduta falaram sobre o assunto à direção, a outra pessoa adequada, ou utilizaram qualquer outro mecanismo (56%). Este valor é mais elevado do que em 2021 (46%), mas inferior à percentagem de colaboradores, que a nível global, afirmam ter reportado o assunto (64%). Dos 16 países inquiridos, os trabalhadores em Portugal estão entre os menos propensos a falar depois de terem conhecimento de uma má conduta. De todos os que não comunicaram uma preocupação, quatro em cada dez referiram como principais razões a falta de convicção de que seriam tomadas medidas corretivas (41%) e o receio de pôr em risco o seu emprego (36%).
Evolução de 2018 a 2024
Culturas de Speaking Up: Pressões, Reporte e Retaliação, Programas de Ética
Um em cada cinco trabalhadores portugueses afirma sentir-se, consistentemente, pressionado a comprometer os princípios éticos da organização — um valor superior à média global (15%). Estamos, em 2024, entre os mais pressionados (22%) juntamente com Índia (36%), Japão (20%) e África do Sul (19%).
As principais formas de pressão identificadas incluem a necessidade de obedecer a ordens (38%) e a pressão associada à gestão do tempo (37%), valores acima da média global (ver Fig.1).
Os jovens e os trabalhadores do sector público e do sector social sentem-se mais expostos a estas pressões.
Reporte e Retaliação
O conhecimento de más condutas diminuiu 11 pontos percentuais (p.p.) desde 2018, sendo atualmente idêntico à média global, que aumentou 7 p.p. desde 2021.
O principal incumprimento em Portugal é o abuso de autoridade e tem vindo a aumentar, sendo em 2024 maior do que a média global. O assédio moral aumentou bastante, com um valor em 2024 idêntico ao global.
De referir ainda que em 2024 foi incluído, de forma autónoma, o assédio sexual, tendo-se registado ao valor de 11% e 20%, para Portugal e média global, respetivamente. Uma nota positiva para a declaração incorreta do número horas trabalhadas que tem vindo a baixar consistentemente em Portugal (ver Fig.2).
Verificou-se um aumento no número de trabalhadores portugueses que reportam preocupações éticas (+7 p.p.), embora Portugal continue abaixo da média global neste indicador.
A retaliação (após o reporte) aumentou significativamente (+9 p.p.) e é, em 2024, 5 p.p. maior que a média global (51% vs 46%). É, de facto, uma preocupação global, ainda mais sentida em Portugal pelos (mais) jovens (61%), comparando com os mais velhos (10%). Numa análise por sectores, verifica-se maior preocupação com a retaliação nos trabalhadores do sector público (63%), que comparam com metade dos trabalha dores do sector social (50%), seguidos de perto pelos trabalhadores do sector privado (46%).
As principais razões referidas para não reportar são acreditar que nada vai acontecer e medo. O aumento no receio de que nada irá acontecer aumentou em 9 p.p. desde 2018 e é 7 p.p. superior ao global. O medo aumentou de forma consistente, seja para evitar consequências no trabalho (12 p.p.), seja por não querer ser mal visto pela direção (11 p.p.) (ver Fig.3).
O receio de que nada irá acontecer após a denúncia, evidencia um aumento do desânimo e da falta de confiança no sistema. Apesar de estar a diminuir consistentemente em Portugal, “sentir que era algo que não me dizia respeito” foi o motivo assinalado por 17% dos trabalhadores portugueses que tomaram a decisão de não reportar incumprimentos que chegaram ao seu conhecimento.
Programas de Ética
Portugal registou melhorias significativas, relativamente a 2021, nos quatro elementos estruturantes do programa de ética, sobretudo no canal de denúncia (+16 p.p.), na formação (+15 p.p.) e no aconselhamento (+13 p.p.).
Os maiores aumentos desde 2018 foram registados em relação a um meio de comunicar confidencialmente a má conduta (35%, 43%, 51%) e à formação sobre normas de conduta ética (43%, 50%, 58%), ambos com o nível mais elevado alguma vez registado para Portugal neste inquérito. No entanto, a percentagem de trabalhadores que conhecem esses quatro principais pilares de um programa de ética é inferior à da média global (ver Fig.4).
Estas melhorias nos programas de ética formais estão certamente relacionadas, pelo menos em parte, com recentes imposições legais, europeias e nacionais, designadamente com a Lei 93/2021 sobre proteção de denunciantes que transpôs uma diretiva europeia. A Lei 73/2017 que reforça a necessidade de prevenção do assédio no trabalho, também poderá ter aumentado a consciencialização desta prática e ter sido, por isso, a origem do aumento de observação de assédio, quer moral, quer sexual. Importará agora compreender se se trata “apenas” de programas de cumprimento normativo (comummente designados por programas de compliance) ou se são, efetivamente, programas de ética, concebidos e implementados nas organizações por convicção.
Culturas (mais) éticas: a cultura organizacional e o papel da liderança e da gestão
A perceção de cultura organizacional pode ser aferida, neste estudo, pela aceitabilidade de práticas eticamente questionáveis, pessoais ou no âmbito do negócio e pela perceção de honestidade nas operações diárias na organização.
Os trabalhadores portugueses continuam a ser os menos propensos a considerar aceitáveis cada uma das oito práticas pessoais eticamente questionáveis, que são, em 2024, em média menores do que a média global (12% vs. 20%). De salientar, no entanto, que a tolerância a estas práticas eticamente questionáveis tem vindo a aumentar, sobretudo entre os mais jovens (ver Fig.7).
De facto, verifica-se que a idade muda (muito) a perceção de aceitabilidade destas práticas questionáveis: atualmente, os (mais) jovens são mais permissivos, ou seja, são (muito) mais propensos a considerá-las aceitáveis (ver Fig.7)
A perceção de cultura organizacional também pode ser aferida por práticas de negócio. Os trabalhadores portugueses também continuam a ser os menos propensos a considerar aceitáveis cada uma das cinco práticas de negócio eticamente questionáveis (listadas abaixo), ainda que essa aceitabilidade tenha vindo a aumentar. É, em 2024, menor do que a média global (31% vs. 35%) (ver Fig.7).
A perceção da honestidade nas organizações portuguesas encontra-se em declínio (85%, 84% 81%) e abaixo da média global (84%). Das três faixas etárias analisadas, verifica-se que os menos jovens sinalizam com maior intensidade (cerca 10 p.p.) a perceção honestidade: 18-34 anos (75%), 35-54 anos (85%); 55 ou mais anos (84%). Esta perceção de honestidade é mais baixa no sector social (71%) em comparação como a dos sectores privado (82%) e público (81%).
O papel da liderança e da gestão
O comportamento das chefias tem vindo a melhorar, ao longo dos anos analisados, mas ainda está aquém da média global. Preocupante é a verificação do aumento de recompensas para quem apresenta bons resultados, mesmo tendo adotado práticas eticamente questionáveis (29%, 30%, 35%), embora o valor de 2024 seja 3 p.p. abaixo da média global (38%) (ver Fig.8).
A atuação responsável na cadeia de valor e a atuação conforme as políticas declaradas de sustentabilidade melhoraram na pandemia, mas registaram, em 2024, retrocesso para valores (muito) abaixo da média global (ver Fig.9).
A forma como as organizações se envolvem com os trabalhadores em matéria de ética, também pode dizer muito sobre o papel da liderança e da gestão. Por exemplo, apenas cerca de metade dos trabalhadores afirma discutir questões sobre ética (sobre o certo e o errado) nas reuniões de equipas (54% vs 62%). Ainda mais inferior do que a média global, é a perceção de justiça nas tomadas de decisão nas organizações (54% vs 67%). Destaca-se ainda que (apenas) três em quatro pessoas sabem o que se espera delas sobre comportamento ético, embora com um valor mais próximo da média global (74% vs 77%).
Igualmente importante é a aplicação de medidas disciplinares e de responsabilização quando se quebram normas de atuação ética da organização, dois indicadores que têm melhorado, mas ainda abaixo da média global (ver Fig.10).
Em conclusão, o estudo revela progressos e fragilidades no panorama da ética organizacional em Portugal. Há sinais positivos, nomeadamente a melhoria dos programas formais de ética e o crescimento da pré-disposição para reportar condutas impróprias. No entanto, permanecem desafios críticos: a retaliação após reporte é preocupante, sobretudo entre os jovens; a perceção de impunidade compromete a confiança nos processos de gestão; as lideranças, apesar de algum progresso, ainda não inspiram completamente as suas equipas; a ética parece estar instrumentalizada, mais por exigência legal do que por convicção genuína.
Recomendações
Para consolidar culturas organizacionais éticas, propomos dois tipos de recomendações: para culturas de Speak Up e para culturas (mais) éticas.
Recomendações para culturas de Speak Up
– Melhorar os mecanismos de Speak Up: reforçar e divulgar o canal de aconselhamento e o(s) canal de denúncia(s), em conformidade com Lei 93/2021 sobre denunciantes e Lei 73/2017 sobre o Assédio.
– Provar que acontece alguma coisa: partilhar (interna e externamente) relatórios sobre o desempenho do canal de denúncias (participação de irregularidades) e do sistema de gestão da ética da organização.
– Demostrar compromisso com a Não-Retaliação: implementar e divulgar políticas institucionais de não–retaliação, a par da criação de espaços de reflexão, sensibilização e formação regulares, ou seja, de “espaços de partilha seguros”.
Recomendações para culturas (mais) éticas
– Destacar o papel da liderança e da gestão: selecionar e desenvolver líderes com preparação (formal) para o governo e a gestão da ética e reforçar a sensibilização e formação em ética, obrigatória e regular, em todos níveis e áreas.
– Responsabilizar pelas violações da ética: incluir a ética nos processos de recrutamento e avaliação e promover reflexão regular sobre problemas éticos e racionalizações de comportamentos desviantes.
– Integrar a ética na gestão quotidiana: estimular a reflexão regular sobre problemas éticos e a racionalizações de comportamentos desviantes; integrar de forma sistemática a ética na comunicação – formal e informal, interna e externa – partilhando regularmente indicadores de desempenho ético.
Em suma, o reforço da ética nas organizações exige compromisso institucional duradouro, lideranças conscientes, e um ambiente que valorize a reflexão ética e a incorporação de valores éticos como um ativo central. A construção de uma cultura ética não se faz apenas com normas ou códigos, mas com ações coerentes, escuta ativa e responsabilização real.
A confiança dos trabalhadores nas suas organizações depende da capacidade destas de assegurar que a ética não é apenas uma formalidade, mas uma prática viva e transversal ao seu quotidiano. E depende também do reconhecimento, generalizado, de que a ética é passível de ser gerida.
Para apoiar a gestão da ética é, entre outros, indispensável a implementação de diagnósticos de clima ético regulares, não só para se fazer análise longitudinal na organização, mas também, e preferencialmente, para comparações nacionais e internacionais, através de indicadores dos três pilares de cultura organizacional ética3 – a) valores éticos, b) programa de ética[3] c) liderança ética – que se sobrepõem, se relacionam e se reforçam mutuamente. Este estudo tem também esse objetivo: ser um benchmarking (inter)nacional para as organizações.
[1] A recolha de dados decorreu em abril de 2024, com uma amostra de mais de 12.000 trabalhadores adultos, distribuídos por 16 países com cerca de 750 respostas por país, entre os quais Portugal. Combina uma abordagem quantitativa com análise comparativa históri-ca, considerando dados desde 2012 (nalguns países, como França, Alemanha, Reino Unido), 2018, incluindo Portugal, e novos partici-pantes em 2024, como Brasil, Índia e Japão. As questões abordam quatro eixos: cultura organizacional; Speak Up / falar abertamente; programa de ética; incorporação da ética através de um ambiente de suporte.
[2] O Fórum de Ética é um espaço de encontro que tem como objetivo promover a ética empresarial, através da troca de experiências, da reflexão conjunta e da criação e partilha de conhecimento.
[3] Schwartz, M. S., 2013. Developing and sustaining an ethical corpo-rate culture: The core elements
Artigo escrito por Helena Gonçalves e publicado originalmente na Revista InforBanca.
Desde 2015, coordena o Fórum de Ética da Católica Porto Business School, que é desde 2018 Nacional Partner do estudo internacional trienal “Ethics at Work: survey of employees” do IBE (Instituto of Business Ethics). No GEGEA (Centro de Estudos de Gestão e Economia Aplicada), coordena os trabalhos realizados no âmbito da ética organizacional.
De 2005 a 2010, foi membro das Comissões Técnicas emissoras das normas NP 4460 Ética nas organizações, NP 4469 Sistema de Gestão da Responsabilidade Social e ISO 26000 Linhas de orientação da responsabilidade social.
Doutorada em Gestão e Licenciada em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Master “Responsabilidade Social Corporativa, Contabilidad Y Auditoría Social, Universidade de Barcelona, Master en Dirección General de Empresas e Pós-Graduação em Gestão de Recursos Humanos.