
'Camarada Cunhal' foi um "desafio" para Sérgio Graciano, que retrata neste filme "uma história com uma carga simbólica enorme". O realizador leva ao grande ecrã a fuga da prisão de Álvaro Cunhal em 1960.
Depois de 'Salgueiro Maia: O Implicado', de 2022, e 'Soares é Fixe', de 2024, Sérgio Graciano traz-nos agora um episódio da vida do político do Partido Comunista Português (PCP), que conseguiu fugir da Fortaleza de Peniche - juntamente com outros militantes - com a ajuda de um agente da PIDE. Esta longa-metragem é inspirada no livro 'Álvaro Cunhal: Retrato Pessoal e Íntimo', de Adelino Cunha.
O filme, diz, é "uma boa porta de entrada" para quem quiser saber mais sobre a vida de Álvaro Cunhal, que é interpretado pelo ator Romeu Vala. No entanto, destaca, "mais do que ensinar factos, o importante aqui é despertar curiosidade e emocionar".
Ainda em entrevista ao Notícias ao Minuto, Sérgio Graciano partilhou a "vontade de explorar outras figuras". "Gosto de contar histórias com densidade humana, e a política tem disso."
Questionado sobre o atual cenário político em Portugal, o realizador não deixou de afirmar que "lembrar uma figura como o Cunhal, lembrar o que custou resistir ao fascismo, é necessário".
'Camarada Cunhal' chega ao cinema no dia 24 de abril, na véspera do 25 de Abril, e no ano em que se assinalam os dez anos da morte de Álvaro Cunhal, em 2005.
Este filme foca-se na fuga de Álvaro Cunhal (e outros nove presos políticos) do Forte de Peniche - uma das prisões mais temidas do regime salazarista. Foi fácil o processo de construção desta narrativa?
Nada fácil. Foi um processo longo e cheio de exigências, porque quisemos ser o mais fiéis possível ao que realmente aconteceu. A fuga de Peniche é uma operação cheia de detalhes e de tensão, e tínhamos de contar isso sem cair num tom documental seco, mas também sem inventar. Houve muita investigação, muitos encontros com historiadores, leitura de testemunhos, e também um esforço grande de reconstituição — tanto dos ambientes como da época. O desafio maior foi conseguir equilibrar o rigor histórico com a força narrativa que um filme exige. Mas foi também muito gratificante. É uma história com uma carga simbólica enorme.
Claro que a vida dele dava para vários filmes, mas aqui interessava-me contar uma história concreta, com princípio, meio e fim, que fosse também simbólica
De toda a vida e lutas/conquistas de Álvaro Cunhal, optou por construir o filme apenas à volta deste episódio da fuga. Por que decidiu não dar mais contexto sobre o político? A história, por si só, deste episódio consegue definir Álvaro Cunhal?
Este episódio, por si só, já diz muito sobre quem era o Cunhal. Ele era um homem de convicções fortíssimas, com uma capacidade de sacrifício impressionante. A fuga de Peniche mostra isso tudo: a coragem, a estratégia, a confiança no coletivo. Claro que a vida dele dava para vários filmes, mas aqui interessava-me contar uma história concreta, com princípio, meio e fim, que fosse também simbólica. Acredito que, mesmo sem explicar tudo sobre o homem, conseguimos passar a essência do que ele representava.
Quem quiser aprofundar, há muito por onde ir, mas o filme é uma boa porta de entrada
Uma pessoa que conheça pouco sobre o político ficará com uma ideia clara de quem foi e do que fez para combater o Estado Novo?
Ficará com uma ideia, sim, sobretudo do papel dele na resistência ao regime. Talvez não conheça o percurso todo, mas percebe-se bem o que ele arriscou, o que ele representava e a brutalidade do sistema que o prendeu. Quem quiser aprofundar, há muito por onde ir, mas o filme é uma boa porta de entrada. E mais do que ensinar factos, acho que o importante aqui é despertar curiosidade e emocionar. A partir daí, cada espectador pode querer saber mais.
Estamos a ver, em Portugal e no mundo, um crescimento das ideias extremistas, autoritárias… E lembrar uma figura como o Cunhal, lembrar o que custou resistir ao fascismo, é mais do que oportuno. É necessário
Certo é que quando fez esta longa-metragem não esperava o cenário político que se vive hoje (a aproximação de novas eleições, e tendo em conta as perspetivas para o PCP com especulações de que pode deixar de 'existir' na Assembleia). Acaba por estrear no momento certo?
Sim, acaba por ser um daqueles casos em que o tempo do cinema cruza-se com o tempo político. Quando começámos, não imaginávamos este cenário — mas a verdade é que a história do filme, infelizmente, voltou a ganhar uma atualidade inesperada. Estamos a ver, em Portugal e no mundo, um crescimento das ideias extremistas, autoritárias… E lembrar uma figura como o Cunhal, lembrar o que custou resistir ao fascismo, é mais do que oportuno. É necessário.
Quando uma geração já não reconhece nomes como Soares ou Cunhal, há aí um risco claro de apagamento da memória. E sem memória, estamos vulneráveis a repetir erros graves
No ano passado, numa entrevista ao Diário de Notícias, disse que "temos uma geração de portugueses que não faz a mínima ideia de quem é Soares ou Cunhal” e que "estes são filmes que servem para apelar à nossa identidade". É importante o lançamento de filmes como este para não se cair em erros do passado (tendo em conta que voltámos a um crescimento da extrema-direita pelo mundo)?
É fundamental. O cinema tem esta capacidade de chegar onde os livros de história às vezes não chegam — emociona, prende a atenção e cria identificação. E estamos num tempo em que é mesmo preciso lembrar o que já se viveu, o que se combateu, e porquê. Quando uma geração já não reconhece nomes como Soares ou Cunhal, há aí um risco claro de apagamento da memória. E sem memória, estamos vulneráveis a repetir erros graves. Não é nostalgia, é uma questão de responsabilidade.
O Soares tinha aquela energia política contagiante, foi um estratega importante no pós-25 de Abril. O Cunhal é o lado mais resistente, mais ideológico, mais radical - no bom sentido
Como 'referido' na pergunta anterior, este não é o seu primeiro filme 'político', pois já lançou o 'Soares é fixe' (e também nos contou a história de Salgueiro Maia). Por que escolheu estes dois grandes nomes da política portuguesa? Ambiciona trazer mais perspetivas sobre outros políticos?
Esses nomes surgiram quase naturalmente. São figuras que marcaram a nossa história, e que, cada um à sua maneira, ajudaram a construir a democracia. O Soares tinha aquela energia política contagiante, foi um estratega importante no pós-25 de Abril. O Cunhal é o lado mais resistente, mais ideológico, mais radical - no bom sentido. E o Salgueiro Maia é o símbolo do militar íntegro, do homem que fez a revolução com simplicidade e coragem. Gosto de contar histórias com densidade humana, e a política tem disso. E sim, tenho vontade de explorar outras figuras, talvez até menos conhecidas, mas que também fizeram a diferença.
'Homens de Honra' foi uma oportunidade incrível de contar a história de Portugal através da vida destas duas figuras. É mais biográfica, mais ampla do que o filme
Está também para estrear a série 'Homens de Honra', que 'junta' Álvaro Cunhal e Mário Soares. Aqui já teve mais abertura para abordar a vida de ambos? O que podemos esperar deste projeto? Já há data de estreia?
A série foi pensada justamente para irmos mais fundo. Dá-nos tempo e espaço para mostrar os dois homens em várias fases da vida - os encontros, os confrontos, as visões diferentes, mas também os pontos em comum. Foi uma oportunidade incrível de contar a história de Portugal através da vida destas duas figuras. É mais biográfica, mais ampla do que o filme. Em termos de estreia, ainda não posso dar uma data fechada, mas será este ano. Estou muito entusiasmado, porque acho que vai permitir um olhar mais completo sobre o que foi a construção da nossa democracia.
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