
Maria Francisca Gama é uma das grandes promessas da literatura em Portugal. Escreveu o seu primeiro livro aos 15 anos, mas ficou conhecida sobretudo por 'A Cicatriz', uma história impactante que lançou em 2024.
Entretanto, este ano, regressou com um novo romance intitulado 'A Filha da Louca', que aborda temas tão atuais como a saúde mental - mais especificamente, o transtorno de personalidade boderline, a relação entre pais e filhos e ainda o luto.
Em conversa com o Notícias ao Minuto, a escritora contou-nos que esta é uma trama direcionada para um público mais maduro, que deixa os leitores num estado de "apneia", algo que não aconteceu em 'A Cicatriz', que se focava num acontecimento traumático.
Como é que têm sido as reações a este novo livro?
Até agora o feedback que me tem chegado tem sido muito positivo. Claro que queria que as pessoas gostassem de o ler, mas não sabia exatamente o que esperar. É um livro bastante diferente de 'A Cicatriz'. Dada a proximidade desse livro, que saiu em fevereiro do ano passado, e como foi um livro muito lido, é inevitável a comparação e, nesse sentido, não sabia o que esperar. Estou surpreendida pela positiva.
Em 'A Filha da Louca', pelo menos daquilo que me têm dito, há uma sensação de apneia durante todo o livro e não existe um momento dramático, como acontecia em 'A Cicatriz'
Tinha medo dessa comparação?
Medo não… Normalmente os livros e a arte são avaliados subjetivamente por quem está a ler, ouvir, o que seja. Mas é normal que quando estamos a ler alguma coisa depois comparemos. Sei que 'A Cicatriz' e a 'Filha da Louca' são livros muito diferentes. Acredito que o 'Filha da Louca' possa apelar a um público mais velho do que 'A Cicatriz'.
É normal que à medida que vou crescendo e que vou lendo cada vez mais, aquilo que vou escrevendo também se vá tornando para um público mais adulto e, por isso, o meu único receio era se esse público mais novo ia perceber e gostar do livro, ou se ia sentir que as expectativas iam ser defraudadas, porque não é um livro que se centra muito num acontecimento traumático. Aqui, em 'A Filha da Louca', pelo menos daquilo que me têm dito, há uma sensação de apneia durante todo o livro e não existe um momento dramático, como acontecia em 'A Cicatriz'.
O que a levou a escrever a história da Matilde, personagem principal, neste novo livro?
Surgiu porque me cruzei com uma notícia em 2023 relativa a um caso em que uma criança perdeu a vida e a mãe foi condenada por omissão de auxílio. Na altura, quando vi a notícia, fiquei muito perturbada, porque parece-me contranatura, uma mãe que não faz tudo o que está ao seu alcance para proteger a filha. Automaticamente - e acaba por ser uma defesa - penso que aquela mãe devia estar com algum problema, não podia ser uma mãe na posse das suas faculdades mentais, porque uma mãe traz filhos ao mundo para cuidar deles e para os proteger.
Depois comecei a escrever sobre essa ideia de uma mãe não ser como é suposto, mas ainda não sabia qual era o rumo que a história ia tomar. Comecei a escrever, como faço sempre, sobre essa relação entre mãe e filha tão diferente da que eu tenho com a minha mãe, que é muito próxima e é a minha melhor amiga.
Depois, passado algum tempo, cruzei-me com uma outra notícia, que é uma reportagem jornalística sobre a perturbação de personalidade boderline e achei muito corajoso aquilo o que a entrevistada dizia, a forma como descrevia o turbilhão de sentimentos com os quais tinha de conviver diariamente, uma sensação muito própria de sentir a dor um milhão de vezes mais. Pensei que aquela perturbação podia de ser aqui a parte central da história, na perspetiva da Matilde.
Uma das coisas que estes pacientes mais dizem é que a vida toda, até serem diagnosticados, achavam que eles - os próprios - e os outros, eram más pessoasO tema da saúde mental revelou-se aqui importante para a Maria.
Isso é uma das coisas que eu queria abordar no livro, porque hoje fala-se cada vez mais da saúde mental, mas ainda temos de dar um passo muito grande para falar sobre a doença. Há muitas pessoas que não estão diagnosticadas e a perturbação de personalidade boderline, em particular, confunde-se muito com personalidade. Uma das coisas que estes pacientes mais dizem é que a vida toda, até serem diagnosticados, achavam que eles - os próprios - e os outros, eram más pessoas. Acho interessante trazer isso para a ficção.
Numa das apresentações uma leitora disse-me que uma frase do livro foi importante para fazer as pazes com a mãe: a minha mãe, se pudesse, não era assimComo é que construiu a personagem da mãe da Matilde, que tem este transtorno?
Gostava que as pessoas tivessem empatia por ela. Quando estou a escrever um livro gosto de criar pessoas, gosto que elas ultrapassem essa barreira de serem personagens de ficção. Ainda que eu gostasse que os leitores me dessem o benefício de acreditarem que eu tenho capacidade criativa, por outro lado é elogioso, de alguma maneira, que as pessoas achem que os meus livros são sobre mim e que as personagens são pessoas reais. Isso é sinal de que as personagens estão bem construídas, porque se assemelham muito a nós e à nossa existência na vida. O não sermos perfeitos, não sermos inteiramente nem bons, nem maus, dizermos uma coisa e fazermos outra… Isso é muito humano.
Esta Clara [mãe da Matilde] ela não é má e não quer coisas más para a filha e isso é interessante de se ver: como é que uma coisa que é muito positiva, que é o amor de mãe, pode ser sufocante. Queria que as pessoas tivessem empatia por ela.
Muitos dos testemunhos que tenho recebido até são de filhos que encontraram o seu pai ou a sua mãe na história. Numa das apresentações uma leitora disse-me que uma frase do livro foi importante para fazer as pazes com a mãe: a minha mãe, se pudesse, não era assim. É aí que a literatura vence, quando estamos a ler um livro e encontramos alguma coisa que nós levamos para nós.
O meu luto, o que vivi na altura e o que continuo a viver 10 anos depois, é muito diferente daquilo que a Matilde viveA Matilde também perde o pai. Aqui acabamos por ver um pouco da própria Maria, uma vez que também perdeu o seu pai na adolescência?
Naturalmente as minhas vivências ficam sempre um pouco nos livros. Este luto, no entanto, é profundamente diferente do meu, até pela relação que a personagem tinha com o pai e a relação que eu tinha - e ainda tenho - com o meu pai.
Eu e o meu pai éramos muito próximos. Aliás, ele foi o grande impulsionador deste meu sonho de ser escritora desde pequenina, ele acreditava, até de forma um pouco mais exagerada, que eu ia ser escritora, era muito orgulhoso de mim e da minha irmã, era um pai muito extremoso.
Nesse sentido o meu luto, o que vivi na altura e o que continuo a viver 10 anos depois, é muito diferente daquilo que a Matilde vive. Depois, na idade adulta, paira uma questão sobre ela, que também deve ser muito difícil: normalmente os nossos pais dizem-nos que somos as pessoas mais importantes da vida deles e aqui, ao longo da história, parece que o pai adora a filha, mas adora mais a mulher, porque prefere que ela seja feliz, sabendo que isso pode prejudicar a filha. Isso é também diferente do que foram as minhas vivências.
Para quem ainda não conhece a Maria, como é que surgiu a escrita na sua vida?
Sou advogada, não exerço há três anos. Sempre gostei muito de ler por causa dos meus pais que ofereciam-me muitos livros. Ia muito à biblioteca de Leiria, onde cresci, e à hora do conto, tornei-me desde jovem uma grande leitora.
Na pré-adolescência, na altura em que as pessoas liam blogues, criei um blogue no qual escrevia quase todos os dias, era uma espécie de um diário, escrevia muitas cartas. Aos 15 anos escrevi o meu primeiro livro, aos 17 o segundo, que eram infantojuvenis.
Quando estudei Direito a minha ideia era conciliar as duas coisas, mas entretanto decidi arriscar a escrita e a área da comunicação, que me parecem mais compatíveis.
O curso está lá e a ordem dos advogados também, tenho a cédula suspensa, mas gostava de não voltar a ser advogadaA advocacia era um plano B? Ficou pelo caminho?
Neste momento gosto muito de escrever e nesse sentido, enquanto for possível, porque é uma vida um pouco mais instável, gostaria de não me dedicar à advocacia. Mas o curso está lá e a ordem dos advogados também, tenho a cédula suspensa, mas gostava de não voltar a ser advogada [ri-se].
O que mais a surpreendeu quando se tornou escritora?
No meu percurso em particular, a receção dos leitores. Nunca imaginei, nem nos meus sonhos mais ambiciosos, que pudesse ter tantas pessoas a lerem o meu trabalho e realmente essa parte é muito surpreendente. Apesar de ser uma profissão em que passo grande parte do tempo sozinha, passo muito tempo depois a falar com leitores em bibliotecas, feiras do livro e festivais e isso é muito diferente da imagem que eu tinha do que era um escritor. Achei que ficava sempre em casa, quase aquela ideia da gruta, e hoje isso é muito diferente, porque os leitores exigem que assim o seja.
Depois também há as críticas negativas. Como é que lida com elas?
Bem, porque em primeiro preocupar-me-ia que toda a gente gostasse. Estou preparada para que haja pessoas que gostam e outras que não gostam.
Em relação à 'A Cicatriz' li muitas opiniões que poderia ter feito algumas coisas de outra forma, que o fim poderia ter sido outro, um conjunto de coisas que é normal... A maior parte dos escritores quando se afasta do seu trabalho gostava de ter o condão de ir lá mudar as coisas sem ninguém ver.
Depois há um conjunto de críticas que não são frutíferas, que não vão acrescentar ao meu trabalho e eu protejo-me, porque no final do dia o importante é que eu e a editora achamos que é uma coisa a partilhar com os outros e depois a partir daí o trabalho faz o seu caminho.
Agora que lançou este livro, já está a pensar numa próxima história ou está só a desfrutar deste momento?
É muito difícil descansar e felizmente tenho muitas ideias, o que é ótimo, porque muitas delas acabam por não se concretizar em nada. Neste momento não estou a escrever, estou na parte da promoção do livro e estou a tentar descansar porque já estou perto de ter uma filha.
Agora que vai ser mãe, acha que o mundo da leitura e da literatura está bem entregue às próximas gerações?
Sim, há cada vez mais leitores. Acredito que as editoras estão a apostar em novos autores portugueses.
Os livros não competem entre si. As pessoas podem ler os meus três livros e irem ler os três livros de qualquer outra escritora até portuguesa da minha geraçãoNão sente que é uma luta um pouco ingrata? Esta competição com autores estrangeiros?
Não, tenho muita dificuldade em acreditar nisso. Não há nenhum livro que impeça alguém de ler o livro do outro. Os livros não competem entre si. As pessoas podem ler os meus três livros e irem ler os três livros de qualquer outra escritora até portuguesa da minha geração. Os livros têm essa proeza de imprimirem a individualidade. Nesse sentido fico muito contente quando vejo alguém a ler, primeiro porque acho que um país que lê é um país mais avançado e que tem ambição de ser qualquer coisas e depois porque uma pessoa que lê está um passo mais próximo de ler um livro meu.
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