É uma pena que o legislador não beba de muitos trabalhos publicados nas faculdades, como teses de mestrado ou doutoramento E quando o escrevo faço-o com a convicção, aliás, a certeza, de que o país e, no caso, a justiça, beneficiariam incomensuravelmente, mormente em sede de legislação penal.

Com pena, tais trabalhados ficam depositados numa biblioteca a aguardar que alguém, um dia, deles subtraia ensinamentos, visões, propósitos, sobre temáticas antes pensadas, estudadas, pesquisadas e, por fim, concluídas.

Falemos da denúncia caluniosa no seguinte enquadramento: A denuncia B falsamente, imputando um determinado comportamento o qual não tem correspondência factual. Todos nós conhecemos (ou experienciámos) uma situação semelhante.

O Código Penal prevê esta situação?

Ora bem, o Código Penal, no artigo 365.º, tem uma previsão ajustada a este comportamento. Porém, tal previsão está sistematicamente inserida no Capítulo III –

Dos crimes contra a realização da justiça que, por sua vez, na sistematização dada pelo legislador, integra o Título V – Dos crimes contra o Estado.

Aqui chegados, atento o último parágrafo, entendo da não tipificação da denúncia caluniosa tal qual como pretendo ver tipificada. Complementarei esta afirmação no final do texto.

A abundância de queixas sem qualquer motivação – ou justificação – que não sejam o gratuito prejudicar de alguém são uma realidade incontornável. Dir-se-á que findam num arquivamento (em sede de Inquérito). Concedo. Porém, até tal arquivamento, o denunciado entra numa espiral com a justiça que não tinha qualquer razão de ser.

Acusado de algo que não fez ou disse, fica numa situação de melindre emocional, a par da família mais próxima, quiçá pagando a expensas suas, honorários a Advogado, consumindo-se porque alguém se lembrou, por mesquinha motivação, infernizar a sua vida.

Ora, poderia o Código Penal acautelar, prever, tais situações, imputando ao agente denunciante uma estatuição punitiva, com consequências sólidas, para tais comportamentos desviantes.

Há quem afirme que para tais situações é aplicável o artigo 365.º. Discordo. E explico. Não secundo a opinião de quem, sobre o tema, reflete que a denúncia caluniosa prevista no artigo 365.º do Código Penal abranja as situações aqui trazidas à colação.

É verdade que as justificações dadas são plausíveis, como sejam, a título de exemplo, a proteção da administração da justiça, a confiança no sistema judicial, a deturpação da verdade, o abuso dos mecanismos legais, a colocação da liberdade de terceiros em risco, etc.

Para quem assim pensa, este artigo seria um saco roto onde, na ausência factual de uma previsão sistematicamente bem inserida (isto é, nos crimes contra as pessoas) faz refletir subjetivamente outras condicionantes que permitam, em sentido muito lato, inscrever um crime contra uma pessoa numa amplitude onde o próprio Estado é, também ele, lesado.

E então fala-se da afetação da confiança do sistema judicial, da administração da justiça, etc. Não! Tal interpretação ampla, com tamanha latitude, parece-me errática.

Ora bem, quando em causa estão, entre outros, a honra, os direitos de personalidade, a reputação da pessoa falsamente acusada/denunciada, não me parece adequado extrapolar junto do Código Penal por uma epígrafe adequada ainda que sistematicamente afastada. Isto não colhe.

Um código – seja ele penal, comercial, civil ou outro – apresenta uma sistematização, através de uma hierarquia de divisões que ajudam a agrupar e organizar os artigos por temas. Isto faz sentido. E eis que temos os Livros, os Títulos, os Capítulos, as Secções, as Subsecções, os Artigos, os Parágrafos, os Números, as Alíneas. Tudo está devidamente compartimentado no seu devido lugar.

Assim sendo, ainda que possamos ver no artigo 365.º o título (e a previsão) adequado àquelas situações, sempre se dirá que procurar a aplicação de uma previsão e estatuição penal de um artigo que repousa nos crimes contra o Estado não assume qualquer sentido, porque em causa estão e estarão sempre crimes contra as pessoas.

Não é o acaso que faz com que os crimes de difamação ou injúrias estejam justamente no Capítulo VI daquele código, inseridos nos crimes contra a honra e estes, por sua vez, integrados no Título I denominado «Dos crimes contra as pessoas».

No Direito, a adição de dois com outros dois poderão não ser quatro. Uma vírgula, um título, um capítulo poderão marcar a objetiva diferença. E não é pelo facto de um artigo ter, como este tem, a similitude da epígrafe (ou título) ou a previsão a qual, inclusive, é enquadrável, que se pode afirmar, tout court, que tenha uma aplicação transversal quer aos crimes contra o Estado, quer aos crimes contra as pessoas.

Se a previsão é a adequada – e é! – a sistematização já não o será.

De outra forma, tenho dificuldade em conceber que o conteúdo do artigo 365.º do Código Penal esteja, pela sua estrutura sistemática, seja aplicável às situações inicialmente descritas.

E face à sistematização, é legítimo ao julgador afirmar, no dia em que tiver de julgar uma situação em que o denunciado apresenta queixa contra o denunciante por denúncia caluniosa, o senhor terá toda a razão, mas o artigo que alega não se subsume à tipologia de crimes contra as pessoas. E cai por terra a justa pretensão do ora queixoso.

Mas mais. O crime previsto no artigo 365.º do Código Penal é público. Públicos são os crimes em que o procedimento criminal é desencadeado e promovido oficiosamente pelo Ministério Público, assim que toma conhecimento da prática do crime, independentemente de haver ou não queixa da vítima, sendo que o interesse em punir estes crimes é considerado de ordem pública e geral, transcendendo o interesse individual da vítima.

Ficou claro? Num crime de denúncia caluniosa que abranja as situações por mim trazidas ao texto, o crime teria sempre, sempre, de ser particular, isto é, exige-se a apresentação de queixa e, outrossim, que a vítima se constitua assistente no processo e deduza acusação particular. Isto é basilar. 

Em conclusão, ou o legislador emenda a mão na sistematização do código, ou o legislador insere um novo artigo, em tudo similar ao artigo 365.º, mas sistematicamente inserido nos crimes contra as pessoas. Ou, ainda, querendo, adita o(s) artigo(s) existente(s) com aquela linha de texto subtil onde possa refletir ser “aplicável o disposto no artigo 365.º”

O legislador irá fazê-lo? Não. Tenhamos noção de que mergulhámos, aqui, num texto e contexto teórico, ainda que com repercussões práticas.

E pensar dá mesmo muito trabalho.

Por isso iniciei o artigo da forma mais objetiva possível, visando os trabalhos, sobre temáticas várias, que repousam, ad aeternum, nas bibliotecas das universidades. Um elogio a tantos e tantos que pensam o Direito além do que lhes foi, inicialmente, dado. Pena que o legislador não os leia.