
No dia 28 de Abril de 2025, o País apagou-se, o quadro nacional foi abaixo, sem aviso nem cerimónia, as ruas encheram-se de pessoas, as esplanadas também. Comprou-se papel higiénico, latas de conservas, bebeu-se cerveja e houve quem a acompanhasse com música (ainda há instrumentos que não são eléctricos, incluindo a voz humana, e é sempre bom quando evidências destas se tornam ainda mais evidentes e enchem as ruas). Havia crianças a correr nos parques, como se tivessem acabado de descobrir esse espaço tão adequado à manifestação da infância, mas tão esquecido quanto a palavra «transístor». E à noite, à luz hesitante das velas, leu-se (ou talvez não tenha sido bem assim, reformulo, portanto, para uma visão mais realista: os leitores leram, os outros jogaram às cartas ou jogos de tabuleiro). É verdade que a vela é um objecto fascinante, Gaston Bachelard tem um livro dedicado a elas, A Chama duma Vela (La Flamme d’une chandelle), em que se lê algo como «a vela é um ser vivo, com quem se partilha o tempo», «a luz artificial dispersa-nos; a chama da vela concentra-nos» e «a chama da vela é uma luz íntima. Quem contempla uma vela não vê o mundo, sonha o seu sonho».
No dia seguinte ao apagão, já com vários interruptores ligados, incluindo o da nostalgia, falou-se dos tempos em que se jogava à bola na rua, em que se acampava sem tomadas, nutridos — ou mal nutridos — com salsichas e atum, em que se lutava contra a escuridão com uma lanterna a gás, jogando kemps pela noite dentro.
De facto, era assim porque os constrangimentos eram maiores: agora há mais escolha, ainda que o pessimista, o melancólico ou o declinista a negue. Os interruptores que temos, cada vez mais omnipresentes, não são amos, são ferramentas, podemos ligá-los ou desligá-los, ou seja, podemos acender a luz ou deixá-la apagada, podemos sair para a rua ou ficar em casa, podemos jogar à bola ou ver televisão.
Esse tempo do berlinde e do quarto escuro (que brincadeira adequada para um cenário de falta de electricidade) está à distância dum interruptor, à distância dum indicador. Podemos ligar um aparelho qualquer ou acender a luz, mas podemos não o fazer. O que constrangimentos — como o apagão em causa — nos podem mostrar é o valor da escolha e da liberdade. Pode ser divertido passar umas horas num dos cafés do bairro, conhecer umas pessoas e à noite ler à luz da vela, mas — e não parece constituir novidade, pelo contrário —, isso é algo que se pode fazer todos os dias. Há um interruptor que o permite: basta esticar o indicador ou não o esticar.
No dia do apagão estava bom tempo. Se tivesse tempesteado teriam todos ficado em casa. Não teriam grelhado entremeada na varanda. E o dia seguinte talvez não viesse com tanta nostalgia. Provavelmente porque, nesse caso, a noite anterior teria sido passada com algum medo ou desconforto, além da inquietude e da incerteza causada pela ausência de comunicação: é que a chama das velas, mais do que permitir a leitura, teria iluminado a velha fragilidade humana, que os interruptores, as redes, as casas aquecidas, nos ensinaram a esquecer.
A escolha é um privilégio — frágil e precioso. E talvez a nossa dificuldade seja essa: habituámo-nos tanto a poder escolher que, no dia seguinte a uma qualquer limitação, valorizamos o que nos é imposto, a vida de antigamente, a tal verdadeira vida, trazendo à superfície a nostalgia do escuro, que é valor de dia seguinte: tende a aparecer com os interruptores todos ligados.
Talvez o que nos falta não seja menos luz, nem menos tecnologia — talvez o que nos falta seja escolher mais vezes apagar, mais vezes sair, mais vezes aceitar a beleza vulnerável do que não é garantido, pelo menos enquanto ainda há escolha, enquanto ainda há luz, eléctrica, natural e mental, pois é possível que a imposição da noite esteja mais perto de nós do que a própria jugular — para usar a expressão alcorânica —, mais perto de nós do que julgamos ou queremos. E, talvez, nessa noite demasiado espessa, não haja voz para cantar cumbaiás em nenhuma esplanada do mundo.
Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico