No ano em que o cosmonauta soviético Yuri Gagarin se tornou no primeiro terráqueo a ir ao espaço, reforçando a crença de que o futuro da humanidade passaria pela descoberta e o contacto com novos mundos, e, quem sabe, a comunicação com outras civilizações, publicou-se um dos grandes romances da literatura de ficção científica, Solaris, escrito pelo escritor polaco Stanislaw Lem. Estávamos em 1961, e o enredo da história oferece um olhar que, nos dias de hoje, volta a ganhar atualidade: o conhecimento e a racionalidade humana têm limites, com o escritor a explorar a impossibilidade (trágica) de sequer comunicarmos com o que nos surge como diferente e incompreensível.
Mesmo que não seja apreciador de ficção científica, não use esse argumento para ignorar e não ler as páginas de Solaris (a última edição em português, com a chancela da Antígona, é uma tradução direta do polaco), quanto mais não seja porque Lem sempre fugiu aos arquétipos deste género, estando mais interessado em descrever e levantar questões sobre a natureza do comportamento humano, do que deambular pela frieza do desenvolvimento científico e tecnológico, recusando-se a fazer dos seres humanos meros peões de tais cenários futurísticos.
Enquanto Gagarin (filho de humildes camponeses) perfazia uma órbita ao nosso planeta e nos relatava, via rádio, que “a Terra é azul”, o sentimento de que o impossível estava ao alcance da mão humana tornava-se mais forte do que nunca. Acontece que Lem estava bem ciente das nossas limitações. “O Homem lançou-se à procura de outros mundos e outras civilizações, sem antes ter explorado o seu próprio labirinto de caminhos sombrios e câmaras secretas e sem descobrir o que há para lá de portas que ele mesmo selou”, escreveu em Solaris.
É precisamente a partir deste ponto de partida que toda a trama se desenrola, direcionando o leitor para a ideia central em torno da qual gira a obra: a comunicação entre humanos nunca é completa e revela-se imperfeita e inadequada, pelo que não é de estranhar que não sejamos capazes (jamais?) de compreender e estabelecer qualquer tipo de ligação com outras espécies, mesmo as que existem fora da Terra. Pior. O ser humano nem sequer consegue entender muito daquilo que ocorre no seu próprio planeta.
Afinal, qual é o nosso problema, para que, mais de 60 anos depois, Solaris se mantenha tão atual como nunca? Em A Arte da Comunicação num Mundo Polarizado, publicado em 2020, o investigador e professor em Comunicação Kyle Conway oferece uma explicação clara e bem direta:
"É difícil mudar a mente das pessoas. Quando nos deparamos com uma nova ideia, comparamo-la com coisas do mundo que já conhecemos, e esse mundo – aquele em que navegamos todos os dias – já faz sentido para nós. É um mundo totalmente formado e, mesmo que um observador externo possa dizer que tem falhas, parece-nos completo. Não há pontas soltas e as novas ideias chocam com a sua completude. Para tentar dar-lhes sentido, perguntamos se se encaixam no mundo que conhecemos, mas como são novas, podem não encaixar. O problema não é a nova ideia – é a persuasividade do mundo que nos habituámos a conhecer e que tomamos como garantido.”
Conhecendo a história de vida do escritor polaco, não seria de estranhar que tivesse chegado a esta mesma conclusão. Apesar de se ter doutorado em Medicina, Lem nunca chegou a exercer a profissão, tendo trabalhado como mecânico durante a Segunda Guerra Mundial, escondendo a sua ascendência judaica do invasor nazi graças a documentos forjados: a blitzkrieg (a “guerra-relâmpago”) de Hitler tinha conquistado a Polónia em 1939. Nesse período conturbado da história mundial, e sem que ninguém notasse, o jovem mecânico lá ia conseguindo sabotar veículos alemães, sem levantar suspeitas – pelo menos, é isto o que sempre contou. Finda a guerra, entre 1946 e 1949, envolveu-se em diversas pesquisas na área da Psicologia, e aquilo que testemunhou exerceu sobre ele uma tão grande influência que o fez vivenciar uma fase de transição. Como resultado, decide tornar-se escritor profissional, usando a ficção científica como pano de fundo para explanar as suas visões filosóficas.
Face ao incompreensível, o instinto básico é o horror, o pânico e o desejo de que se afaste de nós
Solaris torna-se no seu primeiro grande sucesso literário, uma mistura única de esperança no futuro – das maravilhas que nos espreitam lá ao longe, escondidas no enorme espaço escuro – com a amargura da experiência humana. Tudo começa quando um grupo de cientistas, a bordo de uma estação espacial, examina o enorme e enigmático oceano do planeta Solaris. Durante muitos anos, as investigações feitas à sua superfície mostraram-se inconclusivas, limitando-se a registar o que pareciam ser ondas que se comportavam de forma estranha e bizarra, de um modo nunca visto, como se tivessem vida própria. Um fenómeno que nem os investigadores, apetrechados com o seu racionalismo científico, conseguem decifrar.
“O Oceano vivo estava ativo. Não, é certo, segundo os padrões humanos – não construía cidades ou pontes, nem manufaturava máquinas voadoras. Não tentava encurtar as distâncias, nem se interessava pela conquista do espaço (o padrão máximo, pensavam alguns, da superioridade humana). Mas vivia num eterno processo de transformação”, é descrito. Perante esta nova realidade, e incapaz de a compreender, por ser tão diferente de tudo aquilo que viu ou experienciou na Terra, o ser humano claudicava. Era este o seu limite.
Kris Kelvin, a personagem principal, é um psicólogo que chega à estação espacial pouco depois de os cientistas terem submetido o oceano de Solaris a uma elevada dose de raios X, numa ousada experiência destinada a revelar mais pistas sobre o enigmático planeta vivo. Ao “sentir-se” estudado pelos humanos, o planeta responde na mesma moeda, perscrutando os pensamentos de todos os que estavam a bordo da estação – no que pode ser entendido como uma tentativa (falhada?) de expressar comunicação. Só que, ao fazê-lo, os segredos reprimidos, tal como os sentimentos de dor e culpa de cada tripulante, ganham forma, vida e aparência humanoide, gerando horror, pânico e incompreensão no seio da tripulação. Kelvin, mais tarde, será vítima da mesma experiência, ao ver a sua falecida esposa, Harey, materializar-se diante si, como um fantasma: anos antes, ela suicidara-se, o que criou um forte sentimento de culpa, um profundo trauma, em Kelvin.
Embora não fosse esta a intenção do planeta (dessa possível entidade consciente), cada um dos tripulantes teve a oportunidade de enfrentar, diretamente, os seus medos mais recônditos e recalcados. Portanto, uma segunda hipótese, de lidar de modo diferente com o passado, é-lhes oferecida, mas a resposta de cada um resumiu-se ao medo, a uma sensação de desordem interior e ao desejo de fuga. Quando Harey surge perante Kelvin, a única maneira que este encontra para lidar com o insólito consiste em ludibriá-la e aprisioná-la no interior de uma cápsula espacial, ejetando-a depois para o espaço. Eis a sua primeira reação: mantê-la longe de si e esquecê-la. Muito mais acontecerá em seguida… mas isso é algo que os leitores já terão de descobrir aos desfolhar o livro.
Gizemos uma breve analogia entre a obra de ficção e a realidade atual. Neste ambiente de forte polarização, em que se cavam profundas trincheiras ideológicas e culturais, que tipos de reação vemos surgir face a fenómenos como o trumpismo (EUA) ou o bolsonarismo (Brasil), sem querer ir mais longe em exemplos? Incompreensão, horror, medo e um desejo de que o fenómeno e os seus apoiantes se afastem ou desapareçam rapidamente, como que por magia.
Façamos, agora, o exercício no sentido contrário. Que sinais existem de que os apoiantes de Donald Trump ou Jair Bolsonaro conseguem compreender os que consideram ser os seus adversários? Tal como sucede junto ao planeta Solaris, estamos perante um impasse comunicacional, ou, no pior dos cenários, uma impossibilidade comunicacional.
Procuramos nos outros, no desconhecido, espelhos de nós próprios
Voltemos à obra ficcional de Stanislaw Lem, em que as imperfeições da racionalidade e da comunicação humana surgem em toda a sua nudez. De um lado, uma entidade possivelmente consciente e inteligente, possuidora de um “sentir”, mas que se expressa através de uma conduta incompreensível para o ser humano. Do outro, o imbróglio das relações humanas, discernível pelo modo como cada cientista da estação espacial lidou irracionalmente com as aparições (as réplicas das pessoas) que marcaram os seus passados. Face a isto, a possibilidade de entendimento entre as duas partes – humanos e não-humanos – parece vaticinada a um total fiasco. “Não havia processo de escapar às impressões nascidas da experiência do Homem na Terra; as possibilidades de contacto sofreram um recuo”, reconhecem os tripulantes.
Se assim é, porque nos aventuramos pelo espaço? O que esperamos nós encontrar? Lem, através das personagens que criou, responde: “Partimos para o Cosmo preparados para tudo: solidão, dificuldades, esgotamento, morte. A modéstia impede-nos de o confessarmos, mas há alturas em que temos ótima opinião a nosso próprio respeito. E, contudo, se o examinarmos de mais de perto, o nosso entusiasmo não passa de impostura. Nós não queremos conquistar o Cosmo, queremos simplesmente estender os limites da Terra até às fronteiras do Cosmo.”
Ou seja, apenas procuramos espelhos de nós mesmos. O próprio ato de compreender, de comunicar com o exterior e o desconhecido, com aquilo que é radicalmente diferente, já está condenado ao fracasso desde o início, uma vez que, tal como frisa o crítico de ficção científica Darko Suvin, em As Parábolas sem Conclusões de Stanislaw Lem e Solaris, “o Homem sempre projeta os seus próprios modelos mentais sobre o universo estranho: em Solaris, esse universo materializa uma dessas projeções”.