Há uns anos, Pacheco Pereira escreveu uma crónica em que acusava a esquerda de ter abandonado Marx e a centralidade da luta de classes para se dedicar exclusivamente ao identitarismo. A reflexão mereceu uma recomendável resposta de Luís Fazenda, centrada numa premissa que também me parece óbvia e, acima de tudo, muito alinhada com a dialética marxista: “nem tudo se reduz, como é óbvio, à luta de classes mas nada se dissocia dela em última instância”.

É absurda e contrafactual a ideia de que foi o antirracismo e o feminismo que empurram os trabalhadores para os braços da extrema-direita. Parece-me do senso comum que há credores maiores nessa conta, nomeadamente a social-democracia convertida ao neoliberalismo e todos os governos que protagonizaram políticas anti-sociais. Há muito boa gente a quem ainda pesa na vida a tragédia da austeridade. As suas consequências são substrato do presente. Não vou, por isso, retomar aqui o argumento do Luís Fazenda sobre as várias referências identitárias que compõem a classe trabalhadora em toda a sua diversidade, onde se inclui a identidade operária, e a necessidade de as fazer convergir em nome de um projeto transformador. “Do lado de lá está o sistema capitalista patriarcal”, concluiria.

De toda a polémica, em que obviamente alinho pela minha filiação, nunca esperei que fosse esta última frase que, anos depois, me faria vir a debate sobre o “identitarismo” da esquerda, agora embrulhado na amálgama do “wokismo”... até Ricardo Costa escrever a “Armadilha Identitária”. O autor acusa-nos, não de termos cedido ao identitarismo, mas de o termos fundido no nosso anticapitalismo. RC diz “de forma simplista” que colocamos “a conquista de um direito num plano de luta contra o capitalismo, o racismo estrutural ou o ‘patriarcado machista’, que seriam pilares estruturais das democracias liberais”, concluindo, num jogo de espelhos, que integramos a fileiras dos “iliberais”.

Ou seja, onde Pacheco Pereira nos acusava de termos abandonado a luta de classes, Ricardo Costa acusa-nos de não abdicar dela. O nosso grande pecado parece ser o de ter identificado estruturas de opressão seculares nos pilares do capitalismo. Ao desvendar e criticar a existência de sistemas de poder chamados racismo e patriarcado, profundamente intrincados no sistema económico e institucional do capitalismo, passamos imediatamente a justificar o supremacismo identitário e o ultranacionalismo da extrema direita.

Na conclusão, Ricardo Costa lamenta que "a economia, o crescimento ou os impostos" se tenham tornado "temas de segunda categoria”, responsabilidade do binómio “Woke/Anti-Woke”. No entanto, preferiu omitir o “extremismo” de quem escondeu o próprio programa e anunciou deportações em plena campanha eleitoral. Da parte de quem fez uma campanha a falar de habitação, direitos do trabalho e desigualdades, só identifico a vontade de que esses temas sejam discutidos de um ponto de vista socialista, feminista e antirracista.

A acusação de Ricardo Costa só é possível num caldo em que as palavras já não querem dizer nada. Na medida em que “woke” é um conceito polissémico que há muito abandonou o seu significado original de “desperto para as injustiças do mundo” e passou a ser uma acusação cuspida da boca de trumpistas contra qualquer pessoa que defenda a carta de Direitos Humanos fundacional das Nações Unidas, seria recomendável mais cautela na decisão leviana de atirar tal epíteto contra forças democráticas. Não, “woke” não é o espelho do “anti-woke”. Retomemos significados que conhecemos e falemos claro: não foi o feminismo nem o antirracismo que criaram a islamofobia, o supremacismo branco ou a xenofobia da extrema-direita. Certamente não foram os movimentos feministas a lutar por igualdade salarial, paridade e o fim da violência de género que criaram a misoginia política do Chega. Mas talvez haja uma relação entre ambos.

As conquistas destes movimentos, as suas lutas, não são apenas simbólicas: são por segurança, salário, direito a estudar, direito à habitação, direito a uma vida melhor e, sim, claro, representatividade, direito a ter voz própria Que a extrema-direita se tenha decidido vingar dessas conquistas parece-me uma linha de raciocionio mais razoavel do que afirmar que o movimento feminista foi longe demais ao denunciar o patriarcado.

Bem sei que está moda dizer que “há dois extremos”. Também sei do esforço que alguns fazem para encontrar aqui ou (sobretudo) ali exemplos de algum ativismo minoritário e estranho à representação política da esquerda que possa justificar a sua tese. Mas é no extremo centro que reside a armadilha: a ausência de uma estratégia viável para travar o crescimento da extrema-direita. Chamem-nos nomes, mas reconheçam-nos a integridade de quem representa essa alternativa.