
Depois do primeiro episódio em que ouvimos falar sobre livros portugueses que contribuíram para o processo revolucionário do 25 de Abril, vamos agora focar a nossa atenção na literatura anticolonial, cujos contornos são mais internacionais, mas mais difíceis de definir.
A lista de livros a discutir começa pelas obras do jornalista Basil Davidson da década de 1950, do antropólogo norte-americano Marvin Harris, Portugal's African "Wards" - A First-Hand Report on Labor and Education in Moçambique (1958) e de James Duffy, Portuguese Africa (1959).
A esta configuração anglo-americana pertencem, igualmente: o livro do jornalista português António de Figueiredo, que terá sido ajudado, tanto por Harris como por Davidson, na publicação do seu livro intitulado Portugal and its Empire: the Truth (1961); bem como o de Perry Anderson, Portugal and the End of Ultra-Colonialism (1962).
Do lado francês, a revista Présence Africaine acolheu nacionalistas angolanos nas suas lutas pela independência, como foi o caso de Mário Pinto de Andrade e do escritor Castro Soromenho.
O Padre Robert Davezies, conhecido por ter denunciado as atrocidades da Guerra da Argélia, emprestou a sua voz à causa de Angola, num primeiro livro Les Angolais (1965), a que se seguiu La Guerre d'Angola (1968).
São também lembrados os textos de dois combatentes pela libertação da Guiné e de Moçambique: é o caso de Amilcar Cabral, que escreveu a introdução à obra de Basil Davidson, The Liberation of Guiné: Aspects of an African Revolution (1969), bem como de Eduardo Mondlane, The Struggle for Mozambique (1969). Nesta sequência, é ainda considerada a intervenção do Padre Hastings na denúncia do massacre de Wiriamu, ocorrido em 1972.
São ainda referidas obras mais dispersas e até de certa forma híbridas, como é o caso de ‘Negritude e humanismo’, um opúsculo publicado pela Casa dos Estudantes do Império em 1964, de Alfredo Margarido. O escritor e investigador construiu uma articulação rara entre produção literária e investigação histórica e antropológica. Esta última tinha, aliás, raízes na criatividade dos surrealistas, representados na passagem de Cruzeiro Seixas por Angola, iniciada na década de 1950.
Paralelamente, a tradução portuguesa de Os condenados da terra de Frantz Fanon, com prefácio de Jean-Paul Sartre, aponta para um outro facto editorial conseguido na contra-corrente da censura, em meados da década de 1960.
O debate é moderado por Isabel Castro Henriques e conta com a participação de Aurora Santos, Bernardo Cruz, José Augusto Pereira, Manuela Ribeiro Sanches, Nuno Domingos e Víctor Barros.
A professora Aurora Almada e Santos, do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, começa por lembrar que “não podemos fazer uma dissociação entre aquilo que foi a luta pela independência das colónias portuguesas e a circulação de informação e de livros a nível internacional e, inclusivamente, aqui em Portugal, junto dos meios estudantis aos quais os líderes pelas independências das colónias portuguesas pertenceram”.
Os livros escolhidos pela investigadora pertencem a Basil Davidson, Marvin Harris, James Duffy e Eduardo Mondlane. “Na década de 50, havia pouca informação sobre as colónias portuguesas. Todos estes autores começaram a trabalhar na década de 1950, posteriormente estenderam a sua vida académica nas décadas de 60, e isso coincidiu com a guerra nas colónias portuguesas."
"As obras destes autores foram usados extensamente por comités de solidariedade que apoiaram os movimentos de libertação das colónias portuguesas”, explica.
Bernardo Cruz, professor e investigador no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) da Nova, trouxe para a mesa de debate a obra “Angola sob o domínio português. Mito e realidade”, de Gerald J. Bender, uma obra “que não tem um impacto direto na Revolução portuguesa”, mas cujos capítulos “circularam entre os Estados Unidos, Angola, e Lisboa, e que foram censurados, policiados e vigiados por parte da PIDE". E o investigador esclarece: ”aquilo que de facto é, a meu ver, excecional na obra de Gerald Bender, um cientista político da Universidade da Califórnia em Los Angeles, são sobretudo essas secções que foram vigiadas tanto pela elite policial como pela elite técnica e alguns cientistas sociais ligados ao regime."
“Uma obra fundamental para compreender o luso-tropicalismo”, defende Bernardo Cruz, que remata: “Um aspecto ainda mais importante desta obra é que ela dá voz a muitos daqueles que na administração pública portuguesa denunciavam internamente a barbárie do colonialismo português e da guerra em Angola.”
José Augusto Pereira, investigador do Instituto de História Contemporânea, coloca em perspetiva os textos políticos de Amílcar Cabral, editados em Portugal logo na primavera-verão após o 25 de Abril de 1974.
“Esta obra é, na verdade, a reedição do Boletim Anticolonial, uma publicação clandestina que existiu antes do 25 de Abril, e que esteve na origem daquilo que é atualmente o Centro de Investigação e Documentação Amílcar Cabral, que tem um valiosíssimo acervo documental relativo às lutas de libertação anticolonial que se registaram naquele período.”
"Amílcar Cabral já tinha sido publicado em francês, em inglês, em italiano. Tinha dado várias entrevistas em espanhol, português, enfim, é uma personagem que ganhou uma dimensão global e terá proferido discursos nos quatro continentes do planeta, antes de ter chegado à língua portuguesa falada aqui na metrópole", sublinha José Augusto Pereira.
E lembra ainda a enorme importância das coletâneas de poesia africana, introduzidas ou organizadas no âmbito da Casa dos Estudantes do Império por Mário Pinto de Andrade, e o episódio de encerramento e vandalização da sede da Sociedade Portuguesa de Escritores, em maio de 1965, por parte da Legião Portuguesa, quando a Sociedade decidiu galardoar Luandino Vieira com um prémio de prestígio, numa altura em que este estava preso no Tarrafal.
Manuela Ribeiro Sanches, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, começa a sua intervenção levantando algumas questões: “Existe uma relação necessária de causa e efeito entre descolonização e revolução ou vice-versa? E que papel terão desempenhado os livros nesse processo? Terão sido meros acessórios, ou antes, importantes catalisadores de um sonho e de uma revolução absoluta?”
"Importa discutir qual o elenco de obras que abriram caminho de forma mais ou menos explícita e resistente ao processo revolucionário. Nesse sentido, quais foram os livros que fizeram a revolução? É uma pergunta, a meu ver, particularmente difícil e por isso me assustou muito este convite."
E realça a “importância fundamental da censura” e a das traduções também. “Podemos inventariar as traduções, mas como circularam elas? Quem é que leu essas obras? Onde é que as leu? E como é que foram transformados através dessas mesmas leituras?”
"Que os livros nos fazem sonhar, nos inspiram a mudar o mundo, não tenho dúvida. Que não são motores dos acontecimentos, mas que os transformam, também não tenho dúvida. A Revolução Francesa seria diferente sem os filósofos. A Revolução de Outubro seria diferente sem Marx. A Revolução de Abril seria diferente sem Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade, Fanon ou Césaire", concluiu Manuela Ribeiro Sanches.
Nuno Domingos, investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, começa por referir que "a extensão da interrogação sobre as origens intelectuais do 25 de Abril ao mundo colonial é uma forma de reforçar a ideia de que o que se passava em África foi fundamental para o eclodir da Revolução Portuguesa, mas também para o seu desfecho."
E o livro que trouxe para o debate é ‘The Struggle for Mozambique’, de Eduardo Mondlane, “um exemplo particularmente útil para pensar as origens africanas do 25 de Abril, já que se é comum considerar que foi no terreno bélico em África que se criou a Revolução, é menos habitual pensar-se nas dimensões intelectuais destes conflitos, tanto na resistência interna ao colonialismo, como na internacionalização desta luta”, explica o investigador do ICS.
Lembrando ainda que antes de se ter tornado um líder político e militar, Mondlane era “indiscutivelmente um intelectual”, com acesso a um universo anticolonial muito internacionalizado, “ligado em rede pela circulação de indivíduos e de ideias entre instituições situadas em diversas cidades e relações onde pontificavam académicos, jornalistas e ativistas”.
Pouco antes de se encerrar o debate, foi a vez de Víctor Barros, investigador do Instituto de História Contemporânea (IHC), sublinhar “a importância das redes e das tessituras que a circulação desses livros acabaram por gerar.”
“São livros publicados por autores que estão ou nos Estados Unidos ou na Europa e que vão beber de realidades coloniais e imperiais, no caso específico português, mas cuja circulação vai além dos autores e além da geografia e cai em circuitos concretos de ações de militância de rua ou de militância dos comitês anticolonialistas na Europa, que apoiavam os movimentos de libertação.”
Para o investigador, o mais importante é pensar na questão dos modos de apropriação, ou seja, “como é que os atores que manuseiam esses livros se apropriam deles?” E acrescenta: “É preciso insistir nesse aspecto da tradução e da circulação, porque ajuda a compreender as redes de interação anticolonial, mas também as redes de circulação geográfica e temática anticolonial.”
Barros lembra ainda a obra literária e as reportagens de Gérard Chaliand, “o primeiro ocidental a escrever sobre os movimentos de libertação, especificamente sobre as colónias e sobre a revolução do PAIGC na Guiné.” Segundo o historiador, há inicialmente um “movimento que vem do sul para o norte. Não é um movimento que acontece no norte com a publicação dos livros.”
No cinquentenário do 25 de Abril, a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) organizou o ciclo de debates “As Origens Intelectuais da Revolução Portuguesa – as causas dos livros”. Esta primeira sessão foi gravada ao vivo no auditório da BNP em 9 de outubro de 2024.
No dia 14 de abril o Expresso publicará o terceiro episódio sobre História e Ciências Sociais.