Uma equipa internacional de astrónomos identificou um filamento gigante de gás quente a ligar quatro aglomerados de galáxias no superaglomerado Shapley. A estrutura poderá albergar parte da matéria "normal" que continua em falta no Universo, ajudando a resolver um enigma que intriga a ciência há décadas.

A descoberta foi feita com os telescópios espaciais XMM-Newton, da ESA, e Suzaku, da agência espacial japonesa JAXA e revelada esta quinta-feira pela ESA.

A matéria “normal” que continua por encontrar

Há décadas que os astrónomos tentam localizar a matéria “normal” em falta no Universo – ou seja, a matéria bariónica, composta por protões, neutrões e eletrões, que forma as estrelas, planetas, galáxias e todos os seres vivos. De acordo com os modelos cosmológicos, mais de um terço dessa matéria não foi ainda observado.

As simulações apontam que esta matéria poderá estar escondida em filamentos de gás extremamente ténues que ligam os aglomerados de galáxias, formando uma vasta rede conhecida como teia cósmica.

No entanto, detetar essa matéria é um desafio.

“Embora já tenhamos avistado filamentos anteriormente, é difícil decifrar as suas propriedades: são tipicamente muito ténues, sendo complicado isolar a sua luz da emitida por galáxias, buracos negros e outros objetos próximos”, explicam os astrónomos em comunicado.

Um filamento quente a ligar quatro aglomerados

Uma nova investigação conseguiu fazer exatamente isso: observar e caracterizar, com elevado detalhe, um filamento de gás quente que se estende entre quatro aglomerados de galáxias no Universo próximo.

“Pela primeira vez, os nossos resultados aproximam-se do que vemos no nosso modelo principal do cosmos – algo que nunca tinha acontecido antes. Parece que as simulações estiveram sempre certas", afirma Konstantinos Migkas, do Observatório de Leiden, na Holanda.

Este filamento, com uma temperatura superior a 10 milhões de graus, contém cerca de 10 vezes a massa da Via Láctea e estende-se ao longo de 23 milhões de anos-luz – o equivalente a atravessar a Via Láctea de ponta a ponta mais de 200 vezes.

Liga quatro aglomerados que pertencem ao superaglomerado Shapley, uma das maiores estruturas do Universo próximo, com mais de 8.000 galáxias.

O filamento de raios X emissor de gás quente que nunca tinha sido visto - a faixa roxa que liga quatro aglomerados de galáxias - os dois pontos brilhantes na parte inferior e superior do filamento. Ao serem removidas fontes
O filamento de raios X emissor de gás quente que nunca tinha sido visto - a faixa roxa que liga quatro aglomerados de galáxias - os dois pontos brilhantes na parte inferior e superior do filamento. Ao serem removidas fontes ESA/XMM-Newton and ISAS/JAXA

Telescópios XMM-Newton e Suzaku, parceiros ideiais

A equipa de Konstantinos Migkas combinou dados de raios X captados pelos telescópios espaciais XMM-Newton, da Agência Espacial Europeia (ESA), e Suzaku, da agência japonesa JAXA, além de observações óticas de outros instrumentos.

O Suzaku permitiu mapear a ténue emissão de raios X do filamento numa vasta região do espaço. Já o XMM-Newton foi essencial para identificar com precisão fontes contaminantes de raios X, como buracos negros supermassivos, que poderiam interferir nas observações.

“Graças ao XMM-Newton, conseguimos identificar e remover estes contaminantes cósmicos, por isso, sabíamos que estávamos realmente a observar o gás no filamento e nada mais”, explica Florian Pacaud, da Universidade de Bona, na Alemanha.

Além de revelar uma estrutura colossal até agora não observada, a descoberta fornece pistas cruciais sobre a teia cósmica – a rede invisível de filamentos que estrutura o Universo e interliga os seus maiores aglomerados.

“Esta investigação é um excelente exemplo de colaboração entre telescópios e estabelece um novo padrão na deteção da ténue luz dos filamentos da teia cósmica”, sublinha Norbert Schartel, cientista do projeto XMM-Newton da ESA.

Uma simulação da
Uma simulação da ESA/Illustris Collaboration

A descoberta também fortalece o chamado modelo padrão da cosmologia, que tem vindo a ser validado por simulações ao longo das últimas décadas.

"A matéria 'perdida' poderá estar à espreita em em fios difíceis de ver entrelaçados por todo o Universo".

Euclid, o detetive que investiga o “lado escuro” do Universo

Reunir uma imagem precisa da teia cósmica é um dos grandes objetivos da missão Euclid, lançada pela ESA em 2023. Esta missão espacial pretende mapear a estrutura e evolução do Universo ao longo de milénios, com foco na matéria escura e energia escura.

Até 2031, o telescópio Euclid vai analisar milhares de milhões de galáxias até 10 mil milhões de anos-luz, criando o maior mapa tridimensional do cosmos alguma vez feito. A sua primeira grande coleção de dados está prevista para 2025.

Matéria escura e energia escura

A matéria escura e a energia escura compõem 95% do Universo, mas a sua natureza permanece um grande mistério para os cientistas.

A primeira garante a coesão das galáxias, a energia escura provoca a expansão do Universo.