
Para Roberto Martínez tudo ou quase tudo se resume ao estágio, mas não é bem assim. Não é uma questão de estágio, é uma questão de estatuto.
Convidado a explicar a inclusão de João Félix no lote de 26 convocados para o duplo duelo com a Dinamarca, o selecionador lembrou o golo à Croácia e as exibições por detrás das cortinas. “A razão de continuar aqui é o que ele fez no último estágio, foi o melhor estágio desde que sou selecionador... Não está a ter momentos muito constantes, é uma situação da sua carreira, mas o espaço aqui é pelo que tem feito na seleção, sobretudo no último estágio”, justificou-se, como que trocando ele próprio a função de treinador pelo papel de diretor de recursos humanos.
E reconheça-se que isso, ou seja, recursos, não faltam a Félix. Não está nem nunca esteve em causa o talento que fez o Atlético de Madrid pagar há seis anos 127 milhões de euros. O que há muito tempo está em causa é que as sucessivas oportunidades que têm sido oferecidas ao jovem de Viseu têm sido desperdiçadas e quem lhe estende a passadeira vermelha só está a fazê-lo tropeçar.
Em Madrid, Barcelona e Londres (Chelsea), o prodígio que espantou o Mundo com a camisola do Benfica nunca se expressou à altura do que prometera e nem sequer o facto de ser agora orientado por Sérgio Conceição tem servido para derreter a desconfiança e desilusão que tem cultivado em todos aqueles que se sentem traídos pelo seu génio.
Sem nenhum golo anotado e apenas uma assistência registada nos sete desafios em que participou na Série A depois de ter sido acolhido pelo Milan no mercado de janeiro, o internacional português tem 30 jogos na época, precisamente o valor da taxa de empréstimo (30 milhões de euros) fixada pelo emblema que acabou de assegurar Geovany Quenda para 2026-2027.
Com oito golos e três assistências nesses 30 encontros, o ala que também fez formação no FC Porto apresenta na temporada números muito próximos dos que refletem a performance na equipa nacional. Utilizado em 45 compromissos da seleção, diante das balizas festejou por nove vezes e no capítulo das assistências notabilizou-se em quatro ocasiões.
É verdade que Félix não pode ser considerado um titular indiscutível e que 18 das internacionalizações foram na condição de suplente utilizado. De qualquer forma, olhando para a concorrência que tem na Cidade do Futebol, as estatísticas ajudam a perceber que só a impagável generosidade de Roberto Martínez suporta votos de confiança à margem dos momentos de forma.
Rafael Leão tem uma participação em golos muito semelhante (marcou por cinco vezes e fez a assistência em sete), mas o tempo de utilização do 10 milanês é menor, ou seja, na prática, fez menos oito jogos por Portugal. Se a comparação for estabelecida com Diogo Jota, aí o cenário até é mais embaraçoso para João, uma vez que o avançado do Liverpool apresenta 14 tentos e 11 assistências em 46 internacionalizações.
Em estágio de sítio
Claro que nenhum futebolista é igual a outro e também conforme fez questão de destacar Martínez, não é fácil encontrar protagonistas para desequilibrar entre linhas. Nesse âmbito, tanto Leão como Jota têm características que os recomendam mais para as faixas laterais, em concreto para o lado esquerdo do ataque, não usufruindo da versatilidade de Félix, Bernardo Silva ou inclusive Bruno Fernandes, a quem o selecionador não entregou a batuta na conferência de imprensa de divulgação da convocatória, preferindo enaltecer o “maestro” parisiense Vitinha.
Reivindicando a “paternidade” da dupla Vitinha-João Neves, com o argumento de que já em 2024 tinha sido utilizada... uma vez, o catalão passou por cima dos dados arrasadores de Bruno Fernandes na liderança do errático Manchester United, nesta altura um histórico a léguas do PSG aperfeiçoado por Luis Enrique para vencer a Liga dos Campeões.
Apesar de conduzir uma orquestra com laivos de loucura e bastante desafinada, o capitão do United chega à Cidade do Futebol com 16 golos e 15 assistências nos 44 jogos na pele de “red devil”, não sendo por acaso que a impressionante atuação frente ao Leicester lhe permitiu chegar às 50 (!) assistências desde que chegou à Premier League em 2019, o tal ano em que João Félix foi para o Atlético de Madrid. A meia centena de passes decisivos fez o ex-Sporting entrar num clube de lendas de Old Trafford, onde só têm assento nomes como Beckham, Cantona, Scholes, Giggs e Rooney, com a particularidade de o médio treinado por Ruben Amorim juntar 62 golos a esta invejável coleção.
Na seleção, Bruno tem mais três golos do que assistências (25 contra 22, em 76 presenças) e frente à Dinamarca irá de certeza travar uma batalha feroz no meio-campo com o leão Morten Hjulmand, quiçá um futuro companheiro no norte de Inglaterra. Ver-se-á qual dos capitães de clube seguirá para as meias-finais da Liga das Nações, que é a última grande prova das seleções europeias antes do Campeonato do Mundo de 2026.
É do interesse geral que seja Martínez a brilhar nesse estágio pré-Mundial. Qualquer outro cenário poderia significar uma chamada aos recursos humanos, porque há falhanços que o talento obriga a punir pelo estatutos.