Estas palavras foram premonitórias, proferidas com dois anos de antecedência em relação aos factos das últimas semanas: “Na presente conjuntura não podemos considerar como garantidas as democracias liberais perante a emergência das autocracias, das demagogias simplistas, dos nacionalismos e dos isolacionismos que condicionam a evolução da velha ordem para a nova desordem mundial”. A frase, dita pelo almirante Melo Gomes, ex-chefe da Marinha, no seminário do Grupo de Reflexão Estratégico Independente (GREI) realizado em 2023 no Centro Cultural de Belém, consta do texto que será publicado num livro intitulado “Desafios para a Segurança e Defesa” que reúne as várias intervenções do evento e que esta associação de oficias-generais na reforma vai lançar esta quinta-feira. No mínimo, com a nova doutrina da administração de Donald Trump, a velha ordem está em causa.

Um par de anos depois de o GREI ter enviado uma carta ao Presidente da República a dizer que as Forças Armadas estavam em “pré-falência” o almirante Melo Gomes, ex-chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), foi duro nas críticas, alertando para um cenário internacional onde “não será de excluir a possibilidade de uma confrontação mais global”.

No evento, que foi fechado pelo Presidente da República, Melo Gomes tinha apontado ao Governo socialista de então e aos antecessores do PSD/CDS: “Não é mais possível ignorar as fragilidades existentes e prosseguir na inércia de, pelo menos, uma década, sem que as consequências não se venham a revelar desastrosas para os interesses nacionais. A situação que hoje se vive nas Forças Armadas não é acidental, resulta de uma vontade tutelarmente assumida e democraticamente validada. Todos nós temos razões para nos preocuparmos.” Agora, com Portugal no sétimo lugar dos piores países da NATO, com 1,48% do Produto Interno Bruto (PIB) gasto em despesas militares, a preocupação aumenta pela necessidade de fazer uma recuperação mais rápida: na próxima cimeira da NATO, em junho, o objetivo pode passar para 3% ou 3,5% do PIB, o que representará mais do que duplicar o orçamento português em Defesa.

O aumento dos riscos para a segurança mundial “não parece ter merecido, em tempo, a devida atenção por grande parte da sociedade civil e, também, por parte dos decisores políticos”, afirmou então Melo Gomes, presidente da Mesa do GREI. Já com a guerra da Ucrânia em estado avançado, mas sem saber que os Estados Unidos iam deixar os europeus sozinhos - como ficou claro durante a Cimeira de Munique a semana passada -, o almirante tinha argumentado ser “incontornável a necessidade de considerar as implicações do quadro de crise e da conflitualidade vigente e dedicar, agora, uma especial atenção às Forças Armadas por forma a que possam assegurar, com a maior brevidade, a sua adaptação aos tempos atuais”.

Neste momento, com o volte-face de Donald Trump, os países europeus já discutem o eventual envio de forças de manutenção de paz para a Ucrânia, o que representaria um novo encargo financeiro, mas também um esforço significativo do ponto de vista militar.

No texto que agora consta do livro, o almirante reformado acusou mesmo o poder político, mais concretamente o Governo socialista da época, de manipular a verdade, ou de mentir: “Tudo o que temos vindo a dizer, há anos, tem vindo infelizmente a verificar-se: a relação com a realidade alterou-se, as opiniões assumiram maior relevância do que os factos e o discurso oficial nem sempre - poucas vezes - coincide com a comum perceção do que, na verdade, se passa”. Só que nas Forças Armadas “não há lugar a improvisações”.

Passados dois anos, a situação melhorou ligeiramente para o pessoal, com a atribuição pelo novo governo PSD/CDS de subsídios mais altos a todos os militares, subidas de salários em escalões inferiores e em algumas especialidades. Na área do armamento, foram assinados vários contratos sobretudo para reequipar a Marinha.

Na intervenção que vai fazer no lançamento do livro, Melo Gomes repetirá o discurso de há dois anos, com uma nota final de ironia: “Esta intervenção poderia ter sido elaborada por uma qualquer plataforma da inteligência artificial… não foi!”