Para quem tem este tipo de responsabilidades, poucos dias calmos existem. Quando se tem a cargo os destinos e projetos de futuro de uma gigante tecnológica em dois países, andar sempre de malas feitas é uma condição profissional. Nada que atrapalhe Isabel Reis, Iberia regional director da Dell Technologies.
Uma portuguesa, mulher, a liderar a partir de Lisboa os mercados de Portugal e Espanha é bem motivo de orgulho — mesmo que a própria garanta que o género, cumprido em todo o potencial de mulher, mãe e, ainda que seja difícil de acreditar, avó, nunca foi impedimento para subir degraus. Tetos de vidro? Não conhece. A culpa, dirá qualquer pessoa que a conheça, é mesmo dela, que não tem feitio para dar importância a temas que não o são, preferindo enfrentar as situações e concentrar energias em desafiar os próprios limites; ir teimosamente mais longe sempre que tentam definir-lhe baias.
Acabada de chegar de Madrid, recebe-me sem formalismos no escritório do Lagoas Park, a simpatia inata e que não tem por que esconder a quebrar o gelo das primeiras impressões, conforme desvenda mais sobre ela e sobre como ali chegou. "Na verdade, isto surgiu tudo um bocado por acaso, ou nem surgiu, aconteceu-me", diz com uma simplicidade que não deixa adivinhar a malha intrincada do caminho que, muito consciente e teimosamente, foi escolhendo seguir, tantas vezes com sacrifício pessoal.
Sorriso aberto e com sardas a tornar mais credíveis as aventuras de esqui que lhe deixaram o braço partido em três partes e o motão que comprou aos 50 anos, do que os dois netos que a fazem babar, para Isabel, esses dias mais difíceis são degraus iguais aos demais, numa escada que não se vê a abandonar tão cedo.
Licenciada em Marketing por recomendação de uma amiga, e tendo cumprido a licenciatura enquanto fazia trabalho de secretariado, decidiu que a sua vida se faria onde estava a recolher créditos. "E podia ter ido para uma Coca-Cola ou uma marca de roupa... mas calharam-me as bases de dados relacionais", ri-se. "Não é a coisa mais sexy do mundo e claro que quando comecei não adorava software, mas o IT tem outras vantagens", diz-me, com a convicção de que o acaso a levou à porta certa.
O primeiro emprego foi o único que planeou — e trocou-lhe as voltas: seduzida pelo anúncio de meia página no Expresso, com 23 anos acabados de fazer e uma filha bebé para cuidar após o divórcio, estreava-se numa companhia americana cujo nome e âmbito de ação desconhecia em igual medida. Era o arranque dos anos 90 e a Oracle estava a abrir portas em Portugal.
"Lembro-me que a Diana era muito pequenina e havia duas pessoas na entrevista": o diretor-geral que vinha mandatado pela Oracle e uma representante local. "Curiosamente, ela era contra a minha contratação porque achava que eu teria o tempo condicionado pela minha filha; e foi o diretor-geral que tomou a decisão, contrariando-a, dizendo que, precisamente por ser mãe, eu teria uma garra diferente e mais vontade de ser bem-sucedida."
Não podia estar mais certo. Contratada para a área de comunicação de marketing e a ter o primeiro contacto com as tecnologias de informação, Isabel estudou, arregaçou as mangas e fez de tudo o que era necessário numa empresa ainda a encontrar os recursos humanos exigidos, a procurar escritório para se sediar, ao mesmo tempo que arrancavam as operações em Portugal. Foi ainda a partir da precária moradia sem ar condicionado, no Restelo, onde as reuniões se faziam de pé, na cozinha, que comprou a primeira central telefónica, que contratou uma agência para fazer PR, que escolheu a mobília do escritório e que provou toda a fibra que lhe adivinhara o diretor-geral.
Ri-se com esta viagem no tempo: "Ainda me recordo que a central levou tempo a estar ativa e para anteciparmos o arranque da empresa foi preciso alugar à PT uns 'telemóveis' que eram zero portáteis, vinham numas malas enormes, mas era a forma de comunicarmos com o exterior. E quando fizemos a primeira venda, fotocopiámos o cheque e emoldurámo-lo!"
Depois, as coisas normalizaram, Isabel começou a ganhar conhecimento sobre o negócio e experiência na área, ganhou fama de ser aguerrida, e em menos de cinco anos estava a ser convidada para acumular funções de direção de parceiros e de marketing na Software AG, uma empresa europeia mais pequena, e por isso também uma tarefa muito mais exigente. Havia risco de correr mal e certeza de trabalho duro, com fortes probabilidades de necessidade de aprendizagens... logo, aceitou.
Passou ali dois anos e outros quatro na Informix, novamente a convite porque a sua capacidade e talento ia-se espalhando, sempre a crescer profissionalmente, em capacidade e skills, a adquirir experiência e ferramentas sem nunca se encostar para gozar o que conquistara. E porque os desafios sempre a desassossegaram — como quem vive para ganhar velocidade máxima na rampa de lançamento porque sabe que vai voar, ainda que corra o risco de cair —, quando outro ex-colega veio abrir a subsidiária da EMC e a atirou para o palco como a melhor escolha para "diretora BDM", não se encolheu. "Eu nem sabia o que era o emprego... a minha experiência era toda em base de dados. Mas fui investigar o que era a empresa e o cargo e convenci-me a ir às entrevistas: fiz seis, incluindo uma em Madrid e outra em Londres, e fui selecionada para o lugar."
Entrou em outubro de 2000 para business development manager da EMC, passando a ser responsável pela relação com parceiros tecnológicos e consultoras, depois a empresa reestruturou áreas e ficou diretora de canal de parceiros, que acumulou mais tarde com a direção comercial.
Recusaria então continuar a subir — fê-lo mais de uma vez, sempre que considerou não estar preparada para responder ao que lhe pediam. Fizeram-lhe a chamada para country manager e ela garantiu que não seria a candidata ideal: "Tenho aquela coisa típica de pensar que, se pedem dez características e eu apenas tenho sete, não sirvo", assume. Mas, como o carteiro, o convite tocou-lhe pela segunda vez à porta, em 2009, e então não teve como dizer "não": prevenindo o déjà vu, avisaram-na de que uma segunda rejeição seria vista como falta de vontade de assumir mais responsabilidades. E não sendo Isabel mulher de deitar a toalha ao chão, respirou fundo e sentou-se na cadeira de diretora-geral.
"O primeiro trimestre foi super difícil, porque quem estava antes no lugar, e bem, secou o mercado, antecipou tudo o que podia em pipeline de negócio; e havia uma crise financeira a rebentar. Quando cheguei aos três meses, os resultados foram péssimos", recorda. Foi então o seu chefe que a convenceu de que estava certo de não se ter enganado, que ela era a pessoa certa e, com tempo, o provaria. E, de facto, o ano acabou tão bem que Isabel Reis terminou esse ciclo a receber o prémio de diretora-geral de região.
Mas a máquina que queria pôr a andar ainda não estava afinada. O seu predecessor era um homem de personalidade fortíssima e ela sentiu que tinha de reter a equipa sem lhe copiar o estilo, usando toda a sua inteligência emocional. Apostou as fichas todas, mobilizou a equipa de 30 pessoas e pô-la a faturar 20 milhões de euros. E depois veio a DELL Technologies, uma gigante do setor.
"Quando a EMC foi comprada, em 2017, optou-se pela fusão de quadros", conta. E quando estava certa de que o seu lugar se tornaria redundante na nova estrutura, foi surpreendida com o convite da tecnológica americana para ocupar o lugar de liderança ibérico, então a partir de Madrid. A ideia era fazer duas áreas de negócio: uma de comercial, virada para privados menos relevantes e setor público, outra de enterprise, vocacionada para o target dos grandes clientes privados em Portugal e Espanha — esta seria a sua missão, uma primeira experiência internacional que constituía uma tarefa de monta. O fillet mignon na mesa de Isabel, naturalmente.
"Em Espanha encontrei um ambiente muito hostil, porque a pessoa que vinha substituir era um espanhol que era muito querido pela equipa e fora despedido; pior, o diretor comercial que todos esperavam que lhe sucedesse foi preterido e a DELL escolheu-me a mim, uma portuguesa, para líder regional." A somar a essa hostilidade, estava numa terra que não era a sua, obrigada a falar numa língua em que não era nativa, a ter de lidar com pequenas irritações como perder-se no trânsito das grandes avenidas madrilenas — que hoje conhece como a palma da mão, tal como fez questão de aprender um castelhano perfeito.
"Se fosse hoje, tinha facilitado a minha vida nestas pequenas coisas que me traziam imenso stress adicional", reconhece, antes de se confessar "uma falsa calma". É que, apesar de parecer ter sempre tudo controlado, apesar do tom calmo e da capacidade de, em todo o momento, pesar os fatores e priorizar com objetividade e cabeça fria, no momento em que tem a situação controlada, é difícil não se ir abaixo. Mas nem por isso deixa de se picar com os cenários mais difíceis. E com muito prazer. "Gosto de ser desafiada, é verdade."
Por isso, quando sentiu que a sua equipa estava de costas voltadas para ela, traçou um plano: "Convoquei-os para uma reunião de urgência e tive uma conversa absolutamente franca em que lhes expliquei porque estava ali, o que queria fazer, como precisava deles. E as coisas mudaram radicalmente. Ganhei-os. E quando as áreas de negócio foram unificadas e eu perdi aquela equipa, tive muita pena", diz, reconhecendo a reciprocidade do sentimento ao contar-me que muitos deles deixaram a empresa quando Isabel deixou de os liderar.
Mulher de armas
De volta a Lisboa, em 2020, a DELL lançava-lhe novo repto, liderando as operações da casa-mãe no mercado português. E em agosto do ano passado subia a parada, colocando-a como diretora-geral ibérica. Comentário? "Sempre tive sorte, porque as pessoas melhores estiveram disponíveis para me ensinar e eu nunca tive medo de pedir ajuda. Gosto muito de trabalhar em equipa; nem acredito que seja possível fazer alguma coisa a solo. A minha função é escolher os melhores." E depois deixa uma conclusão que serve a muitos: "Há que aproveitar as oportunidades que surgem e isso implica alguma coragem e não ter medo de arriscar."
Ser mulher num mundo maioritariamente masculino alguma vez a fez sentir menor? "Nunca. Mas eu tenho uma boa dose de inconsciência...", ri-se. "O caminho é para andar e às vezes há que assumir riscos para avançar. Eu mudei de uma empresa com determinado nível de faturação para outra que fatura cinco vezes mais. Mas dou a mesma importância ao meu trabalho. Aqui tenho negócios médios de 500 mil euros e em Espanha tenho imensos negócios potenciais de vários milhões. Não ganhamos todos, claro, mas se fosse focar-me nos grandes que se podem perder, era esmagada pelo medo e por uma responsabilidade que não é verdadeiramente minha. Por isso, sigo em frente concentrando-me apenas nas coisas boas que posso alcançar. E prefiro falhar do que arrepender-me de não ter tentado."
A fazer 25 anos de percurso ascendente da empresa (primeiro EMC, depois já DELL), Isabel garante que trabalha ainda trimestre a trimestre, como se estivesse sempre a ser testada. Não é se se sinta em xeque, pressionada por outros, é mesmo a sua forma de estar. "Se tivermos sempre essa perspetiva, damos muito mais de nós, e as companhias valorizam essa entrega e compromisso. Há um conjunto de coisas que tornam as pessoas relevantes; tem muito que ver com a entrega, o que estamos dispostos a dar. Eu tenho por princípio que, se quero ter relevância na empresa onde estou, tenho de dar mais de mim do que a empresa me pede. Sempre pensei assim, porque isso torna mais difícil sermos substituídos."
E ainda que não tenha sofrido atrasos na carreira, a convicção inabalável (e confirmada pela vida) de que teria de ser ela a levantar-se após cada tsunami, dependendo apenas de si para o fazer, levou-a a ter sempre alternativas, vias de escape abertas. "Isso dá-me confiança para, se correr mal, ter outra saída." O pior que pode acontecer? "Ter de arranjar outro emprego; e eu não sou burra nem tenho medo de trabalhar. Passei por problemas pessoais e podia ter tido outro destino, mas agarrei o touro pelos cornos, porque a miúda não tinha pedido para aparecer; nem que fosse a lavar escadas, não ia deixá-la sem comer."
A veia radical
"Quando eu era pequena não imaginava nada disto", responde-me, quando quero saber o que se via a fazer. "Em miúda, imaginava-me a ser hospedeira de bordo ou cabeleireira; depois quis ser advogada – o que não está assim tão distante do que faço, sobretudo quanto ao uso do poder de argumentação, de ler nas entrelinhas o que o cliente não diz e construir uma estratégia que junte o que ele de facto quer e em simultâneo é bom para a empresa." Mas se o Direito lhe escapou pelas linhas tortas de uma "vida turbulenta", desde a infância e até ser uma muito jovem mãe que não tinha possibilidade de pagar o curso no privado, decidida a nunca ter de depender de ninguém e garantir à filha uma vida melhor do que a sua, ganharam as tecnológicas, de que fez casa.
"Nada na minha vida é muito comum", diz, com a simplicidade de quem há muito percebeu que planear com grande pormenor alimenta pouco mais do que frustrações. Isabel sempre preferiu optar por grandes metas: ser independente financeiramente e na vida, ter a liberdade de decidir o seu caminho e tanta vontade de continuar sempre a aprender quanto de responder a desafios; quanto mais difíceis, melhor. "Essencialmente, gosto de pessoas, o que nos move na vida são os amigos, a família, os parceiros, e as empresas são as pessoas que as fazem andar."
Por isso vai temperando os dias intensos em Lisboa e a semana que todos os meses passa, literalmente, no escritório de Madrid com uma vida social tão intensa quanto o tempo de sobra lhe permite, dividindo-se entre amigos e família — os netos, de 8 e 5 anos, mas também os filhos, Diana, de 38, que tem um negócio próprio de roupa para bebé, a Lua Banana; e Mário, de 30, que acaba de trocar a comunicação social pelo software. Como entre o dolce fare niente caseiro com o marido e os cães e os fins de semana em Troia, onde tem casa.
E porque não desperdiça tempo nem oportunidades de viver aventuras, há ainda margem para dar largas à sua veia mais radical. Por ter sido mãe nova, adiou essas paixões, mas não desistiu delas. Tirou a carta de moto e comprou uma Honda 500, que levava em passeios pelo país e mais além. Fazia esqui regularmente, fez um mergulho e raramente dispensa as montanhas-russas mais assustadoras.
Agora, confessa, está a ver o golfe com outros olhos. Não é muito radical, este, mas talvez seja precisamente o contraste que a seduza, a paz do cenário aliada à competição — porque aqui, como no King, na Canasta, na Sueca ou mesmo a feijões, perder não é uma opção. "Gosto de coisas radicais... mas já começo a acalmar um bocadinho", diz, antes de se confessar "megafã do Benfica". "Tenho lugar cativo e agora também temos o camarote, por isso, sempre que posso, vou ao estádio."
O que há de vir
Não consegue apontar o desafio que podiam agora lançar-lhe que a levasse de novo à rampa de lançamento. Habituou-se a ser puxada a projetos novos ou que se quebraram e precisam de mudar para crescer, e é isso que mais gosta de fazer: pegar, olhar, investigar com calma, perceber porque ficou mal e qual é o remédio indicado.
E a parar, vê-se? "Vejo. Olho para isto como para o futebol: eu tenho de jogar sempre para ganhar, numa empresa grande e com enorme pressão quanto aos números. Fartar-me disso pode acontecer um dia, será um passo natural. E até me vejo a reformar-me antes do tempo de lei – é preciso também gozar aquilo que a vida nos dá e eu gostava de ter esse tempo. Como o vou usar, não sei. Seguramente para os netos, para mim, eventualmente vou tirar um curso de pintura, apoiar instituições em regime de voluntariado ou dedicar-me a coisas práticas do dia-a-dia, como cozinhar e olhar para a casa de forma diferente."
Uma coisa é certa para quem escuta o relato da vida de Isabel Reis: esse horizonte ainda não está, de todo, à vista.