Federico García Lorca escreveu que “o mais terrível de todas as coisas trágicas é que são verdadeiras”. Não há consolo na tragédia quando ela é real — não há metáfora que a suavize, nem poesia que a desculpe. Espanha vive hoje uma dessas verdades incómodas: uma democracia que se vai degradando, não por ataque frontal, mas pela cedência lenta a compromissos cínicos, corrupção endémica e alianças oportunistas. Por isso, é urgente escutar o aviso: “Renda-se à democracia”.

Há quem procure disfarçar esta erosão, apresentando-a como habilidade política ou arte de negociar. O seu nome é Pedro. Mas basta olhar com honestidade para o que se perdeu: a palavra liberdade tornou-se incómoda, usada com cuidado por quem ocupa o poder, e a democracia foi capturada num jogo de pactos opacos, chantagens, corrupção e indultos trocados por apoio parlamentar.

“Renda-se à democracia, convoque eleições”, bradou Alberto Núñez Feijóo — líder do PP —, como se empunhasse uma adaga verbal. Não foi apenas um soundbite. Foi um ultimato moral. E, sobretudo, um diagnóstico claro: Sánchez já não governa com um mandato popular renovado, mas através de pactos obscuros e transações políticas que, em qualquer país que ainda se levasse a sério, teriam desencadeado uma crise institucional.

Em vez disso, vemos um Governo espanhol encurralado por compromissos com partidos independentistas catalães, incluindo fugitivos à justiça, como Carles Puigdemont. Uma amnistia aprovada em nome de uma suposta “reconciliação”, mas que foi moeda de troca para garantir votos no Congresso. E esta não é apenas uma crise espanhola. É uma crise europeia, uma crise de valores que atravessa todo o espectro político.

O mais hipócrita neste processo é o silêncio de Bruxelas. A União Europeia, tão dura com a Polónia ou a Hungria por ameaças à independência judicial, limita-se a um murmúrio diplomático, receosa de acusar um dos “grandes” de trair os valores europeus.

Mas em Espanha, os juízes foram para a rua. Sim, magistrados de carreira, membros de todas as associações judiciais — conservadoras e progressistas — manifestaram-se em Madrid com uma única mensagem: está em causa a liberdade. E o Governo? Desprezou. Atacou. Deslegitimou. Chamou-lhes “direita judicial”, insinuou golpismos. Sánchez transformou a crítica legítima em crime de lesa-majestade partidária. A sua maioria frágil, dependente de separatistas catalães e herdeiros políticos do Batasuna, funciona como leilão permanente em que o preço é a integridade do Estado.

Há quem argumente que tudo isto são manobras normais de sobrevivência política, mas, se aceitarmos esse cinismo como natural, admitimos que a democracia é apenas uma forma de negócio: a lei existe para ser negociada, a justiça para ser dobrada, o Governo para servir quem lhe vende os votos. A democracia não cai sob o estrondo de um golpe militar, mas afunda-se em silêncio, corroída por cedências oportunistas.

É aqui que a frase de Feijóo se torna mais do que retórica política. Significa reconhecer que já não se governa em nome de todos os espanhóis. Significa admitir que se perdeu a legitimidade política e moral para decidir sobre o destino de um Estado. Significa aceitar que o tempo político se esgotou e que as urnas devem falar.

O problema de Sánchez não é apenas ter feito concessões. Todos os governos as fazem. É tê-las feito contra o interesse geral e sem qualquer pudor em atropelar os princípios constitucionais. É ter ficado sem norte moral. Quando alguém governa apenas para não cair, deixa de governar para o país.

Mas os cidadãos veem. E não são apenas os conservadores. Metade do PSOE envergonha-se desta deriva. Intelectuais de esquerda publicaram manifestos contra Sánchez. Ex-ministros socialistas denunciaram em público o que consideram uma traição ao legado constitucional. Há jornais como “El País” que se contorcem para manter uma linha crítica mas leal, e outros como “El Mundo” ou o “ABC” que não hesitam em falar de corrupção moral do poder. Porque é disso que se trata.

A corrupção, em Espanha, não é apenas financeira, embora a teia de contratos públicos duvidosos, suspeitas sobre familiares de ministros e o famoso “caso Koldo” já tivessem lançado sombras sobre o Executivo. Agora, porém, a crise ganhou contornos ainda mais graves com a prisão preventiva sem fiança de Santos Cerdán, até há pouco tempo secretário de Organização do PSOE e figura de absoluta confiança de Sánchez. A Justiça imputa-lhe o comando de uma rede de tráfico de influências e subornos, num esquema que envolve milhões de euros em comissões ilícitas. A decisão do juiz — fundamentada em provas consideradas robustas, risco de destruição de indícios e possibilidade de fuga — abala diretamente o coração do partido no poder e fragiliza o discurso de limpeza ética com que o PSOE tentou conter o escândalo original.

Esta prisão expôs fissuras profundas no Executivo e no seu arco de alianças: parceiros à esquerda, como o Somar, exigem explicações públicas e defendem tolerância zero, enquanto vozes críticas dentro do próprio PSOE acusam a direção de ter protegido durante demasiado tempo os seus quadros mais próximos. Mais do que um caso criminal, tornou-se uma crise moral e política. A mancha atinge o primeiro-ministro, que vê a sua autoridade política comprometida num momento em que a oposição exige eleições antecipadas e denuncia a degradação institucional.

Não estamos apenas perante a apropriação indevida de fundos ou contratos opacos: trata-se de corrupção política e moral que corrói a confiança no Estado. A democracia não vive apenas de votos: vive da confiança de que a lei se aplica a todos e de que quem governa o faz ao serviço de todos. Quando metade do país começa a acreditar que a justiça vale menos do que uma negociação política ou um acordo parlamentar para salvar o poder, então aquilo a que chamamos democracia está gravemente ameaçado.

Feijóo tem razão ao exigir eleições. Não porque tenha uma vitória praticamente garantida em todas as sondagens — ainda que isso seja facto —, mas porque o que o motiva verdadeiramente é a necessidade de restaurar a legitimidade política e constitucional da figura de chefe de Governo. Só o sufrágio popular pode limpar este pântano e devolver à democracia uma base hoje profundamente contaminada. É um apelo para deixar de governar contra o país e passar a governar com ele.

E convém lembrar: quando se despreza a legitimidade, quando se governa em aliança com quem nega o Estado, quando se rasgam os limites constitucionais para comprar poder, abre-se caminho ao populismo verdadeiro, ao que não quer corrigir o sistema, mas destruí-lo. E o populismo está ao virar da esquina em Espanha.

Os espanhóis têm uma história trágica com ruturas institucionais. A Constituição de 1978 não foi apenas um pacto político: foi o antídoto contra o regresso de fantasmas. Sánchez arrisca-se a quebrar esse pacto. A Europa devia estar alarmada. Mas está calada.

Não se trata de fantasmas ou lendas, mas de uma realidade crua: um poder que perdeu a legitimidade, corroído por corrupção e alianças vergonhosas. Quando governar já não é servir o país, mas salvar-se a si próprio, resta um último apelo: “Renda-se à democracia.” Antes que seja ela a ceder à indiferença.