A bandeira portuguesa está erguida lá bem no alto da Casa da Democracia. O vermelho e o verde ondeiam, com o vento, no cimo da escadaria da Assembleia da República. Cá em baixo, as cores que pintam o cenário são outras. Caixões brancos. Sobre eles, capacetes negros do uniforme dos bombeiros.
“Colegas bombeiros, infelizmente, têm falecido. Eu olho para o estandarte da Assembleia da República, o estandarte que eu amo - eu jurei ser bombeiro sapador perante esse estandarte – e não está a meia-haste.”
António José Custódio tem 55 anos e é bombeiro sapador há 30. Hoje subchefe de primeira classe dos Sapadores de Lisboa, "o mínimo” que pedia era que fosse decretado luto nacional, em memória dos quatro camaradas que, desde o último fim de semana, perderam a vida nos fogos que assolam o Centro e o Norte do país.
E, ao quinto dia de incêndios, o Governo acedeu. Vai decretar, para esta sexta-feira, um dia de luto nacional, pelas vítimas dos fogos.
Mas esta, afirma António José Custódio, permanece a imagem de um desrespeito que os bombeiros dizem sentir.
Uma vigília sem fim à vista
Numa altura em que milhares combatem as chamas que não têm dado tréguas, aqueles que não estão no terreno, estão aqui, em frente à Assembleia da República, em protesto.
“Estamos a lutar pelos camaradas que estão no terreno. A nossa solidariedade e a nossa presença também estão com eles”, afirma Henrique Santos, de 36 anos, dos Bombeiros Sapadores de Lisboa.
Há tendas de campismo montadas. No chão, veem-se chaleiras, para fazer café, para aquecer a alma. Os mantimentos básicos para quem aqui vai passar a noite.
Estão aqui concentrados há 17 dias. Revezam-se em turnos de 24 horas.
“Neste momento, temos bombeiros de Lisboa e Setúbal. Têm estado bombeiros de Faro, de Leiria, de Coimbra,... E os camaradas do Porto também estão em vigília às portas da Câmara Municipal”, explica Henrique.
O que reivindicam? Mudanças na carreira, a começar por uma atualização do salário e do suplemento de risco (que atualmente é de apenas 7,30€ por mês). Mas também um novo sistema de avaliação, horários de trabalho mais dignos e a diminuição da idade da reforma – que, em 2019, passou dos 50 para os 60 anos.
Esta é, para Henrique Santos, uma das reivindicações mais importantes, à luz dos acontecimentos dos últimos dias – a morte, por ataque cardíaco, de um bombeiro de 60 anos que combatia o incêndio em Oliveira de Azeméis.
“Atendendo à idade que ele tinha - 60 anos -, supostamente, já não deveria estar no ativo. Já não devia estar a fazer o que estava a fazer”, defende o bombeiro sapador.
“É uma idade que não se adequa para a missão de bombeiro. Essa circunstância - infelizmente, o modo como faleceu o camarada - é mais um alerta para que nosso poder político pense na necessidade de rever a legislação”, sustenta.
Mas a renovação de quadros tem sido cada vez mais um problema. A falta de condições laborais está a afastar os mais novos da carreira de bombeiro profissional.
“Esta carreira tornou-se pouco ou nada atrativa. Hoje, em concursos de admissão aos vários corpos de bombeiros sapadores, as vagas não se conseguem completar”, explica António José Custódio.
“Na cidade de Lisboa, das 65 vagas que abriram no último concurso para os bombeiros sapadores, só foram preenchidas 54”, aponta Henrique Santos. “Há 10 anos, havia 800 candidatos. Há 15 anos, havia 1000 candidatos para 100 vagas.”
O amor à profissão e o "reconhecimento nulo"
Quem está na profissão de bombeiro hoje, garantem estes homens, está “por vocação, por espírito de entreajuda”.
É o caso de Sérgio Balão, de 50 anos. Tornou-se bombeiro sapador há 27 anos. Na altura, era “um sonho”, que conseguiu concretizar. Garante que continua a ser, mas lamenta que há 20 anos que quem tem responsabilidade para decidir sobre a carreira dos bombeiros sapadores também pareça estar adormecido.
“Quando nós entramos, entramos com o intuito de ajudar o próximo”, assegura. “Tenho orgulho da minha profissão. Mas sinto-me desgastado por não ser reconhecido.”
“Estamos prontos para responder ao minuto, a qualquer ocorrência. Mas esse reconhecimento não nos é dado”, lamenta. “Só nestas alturas dos fogos é que toda a gente se lembra.”
O mesmo afirma o sub-chefe António José Custódio. “Conseguir fazer algo por alguém foi o que me levou a vir para esta carreira”, conta.
“Na altura, a carreira de bombeiro sapador era uma carreira distinta. Era uma carreira dignificada, com reconhecimento por parte das nossas estruturas políticas.”
“Intervimos em todo o tipo de ações, quer dentro, que fora do país, seja incêndios, seja terramotos. Estamos 24 horas permanentemente prontos para intervir. E o reconhecimento é nulo”, atira.
A esperança no Orçamento do Estado
Atualmente, existem cerca de 3000 bombeiros sapadores, distribuídos por 25 municípios, em todo o país.
Estes que aqui se concentram esperam uma participação em peso na manifestação nacional que foi convocada para dia 2 de outubro (e que se junta a uma outra manifestação, convocada pela Associação Nacional de Bombeiros Profissionais e pelo Sindicato Nacional de Bombeiros Profissionais, a 10 de outubro, que envolve uma marcha entre o Ministério da Administração Interna e o Parlamento).
Tem também em curso uma petição pública, que, à data, conta com mais de 13 mil assinaturas. Tudo ações que se somam a esta vigília - sem data para terminar. Dizem que daqui não saem até que haja ação, compromissos de iniciativas legislativas, para mudar a carreira dos bombeiros sapadores.
"A pretensão é criar um impacto no nosso poder político, porque são eles que têm a decisão, neste caso, o Parlamento. São eles que fazem a legislação”, nota Henrique Santos.
“É uma situação que passa de governo em governo, que se arrasta há 22 anos”, reforça António José Custódio. “Agora estamos na iminência de novo Orçamento de Estado e penso que seria altura de quem decide olhar para a carreira de bombeiro sapador.”