
A crise em torno da empresa Spinumviva, da família do Primeiro-Ministro Luís Montenegro, transformou-se num escândalo explosivo, não só para si, como para o para o Governo. Não apenas pelo conteúdo da polémica, mas pela desastrosa gestão comunicacional que a acompanhou: a sucessão de episódios mal explicados, declarações contraditórias e pontas soltas expuseram um Primeiro-Ministro encurralado, incapaz de travar o dilúvio mediático.
Na "Era da Atenção", a má publicidade pode ser preferível ao esquecimento, mas quando essa atenção se transforma numa avalanche diária fora de controlo, o fim pode ser apenas uma questão de tempo. Se bem nos recordamos, durante os primeiros tempos do Governo da Aliança Democrática, Luís Montenegro beneficiou de um estado de graça inerente ao início de funções e de uma certa proteção condescendente de comentadores e jornais, que o ajudaram a consolidar-se como chefe de Governo. Mas essa “bênção” durou pouco.
A mesma bolha mediática que o amparou virou-lhe as costas ao primeiro sinal de fraqueza, e a oposição percebeu a oportunidade, lançando-se ao ataque, armada com as ferramentas parlamentares para explorar a ferida aberta.
Lançada a polémica, assistimos à apresentação de duas moções de censura: uma apresentada pelo Chega, que não foi mais do que um golpe tático. André Ventura, que move a sua agenda política em tornos das questões da imigração, corrupção e combate aos partidos do sistema, viu aqui uma oportunidade de ouro para fragilizar Montenegro e cimentar a imagem do Chega como a única oposição verdadeira ao Governo que, de resto, tem feito constantemente - é a prova de que a repetição, ainda que possa parecer chata, continua a ser a melhor estratégia de comunicação.
A referida moção foi chumbada, como se previa, mas cumpriu o seu objetivo primordial: manter o Primeiro-Ministro na corda bamba e reforçar a ideia de um Governo fragilizado e atolado em suspeitas. Montenegro foi forçado a explicar-se repetidamente, alimentando o ciclo mediático que o Chega pretendia prolongar.
Antes de continuar, um desabafo, ou uma tentativa de aliviar a tensão de uma cronologia dramática que já se arrasta por tempo demais: eu sou daqueles que acredita que as declarações feitas até agora foram mais do que suficientes e absolutamente claras, sem qualquer margem para dúvidas. E, sinceramente, já ultrapassou o limite da separação entre a vida pública e a privada – mas, ao que parece, isso já não importa para ninguém.
Vivemos tempos em que a ética foi completamente descartada, onde tudo é permitido, tudo é utilizado como uma arma no jogo político, ou, para ser mais preciso, na chicana política, de quem está apenas interessado em manipular e dividir. Caminhamos para o tempo - e vou ter mesmo de parafrasear as palavras do José Eduardo Martins - dos políticos juízes, e cairemos na armadilha que toda a Europa caiu: “baixou o nível da discussão na política e subiram na política os que não têm nível para fazer a discussão”. Terminado o desabafo, voltemos à ideia principal.
No que toca à segunda moção de censura apresentada, desta feita pelo PCP, os comunistas jogaram uma cartada diferente. Cientes de que o seu peso parlamentar é cada vez menor, e sem ver essa tendência a inverter-se, o partido olhou para esta crise como uma oportunidade de se reposicionarem como uma voz crítica e combativa contra as ligações perigosas entre política e negócios.
Uma moção sobre a política do Governo que nunca teve hipótese de passar, mas que serviu para reforçar a narrativa comunista: o regime está viciado, os interesses económicos dominam a política e o PCP é a última linha de defesa contra a degradação institucional. No final do dia falou-se do PCP – era o pretendido. A ultima vez que o tema foi o PCP, foi sobre a posição relativa à invasão da Ucrânia pela Rússia, e bem sabemos o quão duro e embaraçoso foi.
Enquanto isso o PS, que disse que chumbaria - e cumpriu - ambas as moções, e fez saber que faria o mesmo perante uma eventual moção de confiança apresentada pelo Governo, adotou uma estratégia mais insidiosa: a proposta de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso. Não se trata apenas de fiscalização parlamentar, mas de um mecanismo para manter Montenegro sob pressão permanente – com enfoque no desgaste em altura de eleições autárquicas.
Cada audição, cada documento solicitado, cada contradição nas respostas prolonga a agonia do governo e mina a sua credibilidade, a juntar a idas da mulher, filhos e clientes ao Parlamento para ser inquiridos. A CPI não seria utilizada como um instrumento de escrutínio, mas como uma armadilha política bem montada.
Como se não bastasse a pressão externa, o próprio governo demonstrou um amadorismo que até agora ainda não tinha ficado evidente, sendo o caso mais embaraçoso o da imagem divulgada inadvertidamente por Leitão Amaro, onde se via o plano de gestão da crise, que se consubstanciou numa gafe. Uma gafe deste calibre não é apenas um resvalo: é uma prova de que o executivo não consegue sequer gerir os seus danos internos com competência. A isto, juntamos ainda a carta de apoio ao Primeiro-Ministro pelas distritais do PSD, que vinha com a patente do Diretor de Comunicação do Governo. Em política a perceção é tudo, e nada transmite mais fragilidade do que um governo que deixa escapar os seus estratagemas. O amadorismo mata.
Neste tabuleiro de xadrez político e mediático, a possibilidade de Montenegro recorrer a uma moção de confiança é um lance de alto risco. Se perder, o Governo cai e o país ruma para eleições antecipadas – assim nos habituou Marcelo (e mal). Mas mesmo que vença, a votação transformar-se-á num referendo à sua idoneidade, e num ambiente onde a perceção pesa mais que os factos, um Primeiro-Ministro fragilizado tem poucas hipóteses de recuperar a autoridade política nas urnas, necessária para governar eficazmente. De uma forma ou de outra, este caso deixará marcas profundas. Não apenas para Montenegro, mas para o próprio sistema político. A politização do setor privado cria um precedente perigoso: se qualquer ligação empresarial do passado pode ser transformada numa arma de arremesso, quem se disporá a trocar a segurança dos negócios pela instabilidade da política? O risco é afastar profissionais qualificados e deixar o poder nas mãos dos mesmos de sempre: os políticos de carreira, especialistas em navegar estas tempestades sem nunca se molharem. O governo de Montenegro enfrenta, assim, a sua primeira grande prova de fogo.