É defensor de mais investimento em investigação e a falta de recursos humanos no sistema de saúde português preocupa-o, sobretudo numa altura em que a incidência está a subir “de forma ligeira” e a sobrevivência dos doentes a aumentar. No Dia Mundial do Cancro, Júlio Oliveira, presidente do IPO do Porto, responde a algumas questões sobre esta doença que regista, só em Portugal, mais de 60 mil novos casos todos os anos.
Hoje, dia 4 de fevereiro, Dia Mundial do Cancro, consegue explicar - de forma simples - em que consiste esta doença?
Não é uma doença, mas sim um conjunto de várias doenças, que têm comportamentos distintos, prognósticos distintos, dependendo das células do organismo onde tiveram origem. Na verdade, o cancro é uma doença dos genes e para acontecer, para a pessoa vir a desenvolver um cancro, precisa de que pelo menos duas coisas aconteçam. Por um lado, uma desregulação do genes, no sentido de as células "pensarem" que são eternas, e, então, proliferam e crescem de forma desorganizada como se não houvesse amanhã. Por outro lado, tende a acontecer outra coisa, que é o sistema imunitário, as defesas do organismo, não serem capazes de reconhecer estas células como estranhas, e por consequência não são capazes de as eliminar. Resumindo, têm que acontecer pelo menos estas duas coisas: primeiro, uma desregulação das células, no sentido de crescerem de forma infinita e, segundo, as defesas do organismo não serem capazes de identificar aquelas células como estranhas, como anómalas, e não as conseguiram aniquilar.
Existe também a questão da hereditariedade, não é? Ou seja, todos os cancros são genéticos, mas nem todos são hereditários.
Exatamente, há uma diferença muito grande. Efetivamente, há alterações nos genes que podem ser transmitidas ou transferidas de pais para filhos, que podem predispor com um maior risco a ocorrência de cancro ao longo da vida. Por isso é que há muitas neoplasias que acontecem em idades mais jovens. Quando existe a ocorrência de vários casos de cancro na mesma família, isso pode obrigar a que se faça um estudo para se perceber se há genes que predispõem para um risco aumentado de cancro, neste caso, o cancro hereditário.
Ouvimos dizer, hoje em dia, que o cancro já não é uma sentença de morte. Podemos dizer que este é uma afirmação verdadeira?
O cancro não é uma sentença de morte. Pelo contrário. Cada vez mais aquilo que nós associamos ao cancro é o conceito de uma doença tendencialmente crónica. Aquilo que vivemos hoje é uma expectativa de sobrevivência muito maior nos doentes com doença oncológica. Há um aspecto muito importante que é: quanto mais precocemente a doença é detetada, maior a expectativa de podermos intervir, de podermos tratar com intenção de curar. E a palavra intenção aqui é importante, porque nós raramente podemos assumir que o doente fica curado, mas a expectativa de sobrevivência e expectativa de uma possível cura - quando identificamos um cancro no seu estado inicial de desenvolvimento - é muito significativa, sobretudo naqueles tumores mais incidentes, como é o caso do cancro da mama ou do cancro colorretal. Por isso é que é muito importante o rastreio. É essencial porque podemos identificar os lesões numa fase em que, por exemplo, no caso do cancro colorretal, ainda não houve transformação maligna, mas o risco de transformação está presente, ou pode até já ter existido uma transformação maligna, e é possível intervir numa fase muito inicial, sem ter ocorrido uma disseminação da doença. A mesma coisa acontece no cancro da mama. Já o cancro do pulmão, está mais associado a fatores de risco, neste caso concreto, o tabaco.
Está previsto também que surja, mais dia, menos dia, um rastreio para o cancro do pulmão.
É importante implementar o rastreio, mas é verdade que ainda não está em vigor. No entanto, é uma das orientações da própria Comissão Europeia e que Portugal já está a abraçar no sentido de, num futuro, - esperamos que não muito longínquo - possa ser implementado também o rastreio para o cancro do pulmão. Sabemos que para o cancro do pulmão, quando diagnosticado de forma precoce, a sobrevivência aumenta drasticamente. Portanto, claramente que o cancro não está associado a uma sentença de morte. Além disso, em contexto de doença avançada, quando o doença está localmente avançada, ou mesmo metastizada, a expectativa de sobrevivência hoje - para um conjunto muito grande de cancros - é um muito superior do que há uns anos, à custa da inovação terapêutica.
Em que consiste essa inovação?
Temos cada vez mais medicamentos que conseguem controlar a doença, já não estamos só na era da quimioterapia. Esta ainda continua a ser muito importante para muitos cancros, faz parte do tratamento padrão de um conjunto muito vasto de cancros, mas usamos muito terapias-alvo, terapias dirigidas a características biológicas do tumor, que conferem sensibilidade especial para tratamentos dirigidos. Dessa forma conseguimos oferecer tratamentos, numa lógica de medicina de precisão, que são dirigidos a características moleculares. Assim, conseguimos controlar melhor a doença, por mais tempo e, eventualmente, com menos efeitos secundários. Por isso, mesmo em contexto de doença avançada, quando não conseguimos ter uma intervenção com intenção curativa, cada vez mais conseguimos prolongar a sobrevivência e, em certos casos, converter a doença para que seja tendencialmente crónica. Infelizmente, nas doenças avançadas, ainda não conseguimos encontrar cura, mas a expectativa de sobrevivência dos doentes aumentou drasticamente nas últimas décadas.
Mas apesar destes avanços positivos, as doenças oncológicas têm vindo a aumentar e há cada vez mais casos. Como é que se explica este aumento?
Há uma coisa que é incontornável, que é a demografia. O envelhecimento da população é uma coisa que não tem propriamente remédio, mas também não é doença. O envelhecimento em si é uma condição que nós não conseguimos controlar. Se tivermos uma população com faixas etárias cada vez mais avançadas, vamos ter um maior número de casos.
Porque costumamos ouvir que a idade ainda é o fator do risco que mais se associa ao aparecimento de cancro…
Não é propriamente um fator do risco, mas é uma questão de probabilidades. À medida que vamos envelhecendo, o risco de poderem ocorrer erros nos genes vai aumentando. Também influencia a exposição a substâncias que podem contribuir para o aparecimento de neoplasias, isto é, quanto mais tempo houver essa exposição, o risco aumenta. Mas acima de tudo tem a ver com o envelhecimento das células, o material genético das células, que acaba por levar a que haja maior instabilidade dos genes e um consequente aparecimento de cancros.
Hoje, 4 de fevereiro, a DGS divulgou os principais números associados ao cancro, em Portugal:
Ao nível da prevenção, além do rastreio, o que podemos fazer?
Aqui há um aspeto importante que é o facto de haver fatores que podem ser controlados, nomeadamente o fator número um: o tabaco. Nós sabemos que, claramente, o fator evitável que depende do comportamento e que mais anos rouba de vida às sociedades, em todo o mundo, é o tabaco. Porque está associado ao cancro do pulmão, que é a neoplasia que mais anos de vida rouba à humanidade, e está associado a doenças cardiovasculares e outras doenças incapacitantes, como a doença pulmonar crónica. Mas não é só o cancro do pulmão que está associado ao tabaco, é o cancro da bexiga, o cancro do esófago, o cancro oral ou o cancro do colo do útero... Há um conjunto vasto de neoplasias. Também o álcool é outro fator de risco que está associado ao aparecimento de cancro, principalmente quando misturado com o tabaco, aumenta de forma significativa o risco de desenvolvimento de doenças oncológicas, como por exemplo, o cancro do fígado.
A obesidade também é um fator de risco...
A obesidade também é um fator de risco, assim como um estilo de vida sentário, e, depois, algumas substâncias poluentes, como os gases de combustão dos meios transportes, e outros, acabam também por poder aumentar o risco de determinados tumores. Mas volto a frisar que o principal inimigo é mesmo o tabaco.
E, de forma geral, quais é que são os sinais aos quais os cidadãos podem estar atentos, ou devem estar atentos, que possam ser transversais aos vários cancros?
O mais importante é que exista uma proximidade e regularidade nas visitas ao médico assistente. Depois, é bom recorrer a um especialista sempre que existir uma perda de peso não desejada ou não programada, sem causa aparente. Sempre que se detetar uma alteração do trânsito intestinal de forma recorrente durante várias dias ou semanas ou até perda de sangue nas fezes… estes são só alguns exemplos. No caso das mulheres, no autoexame mamário, se detetarem algum nódulo ou algum corrimento anómalo, deverão contactar o médico assistente. No fundo, sempre que existir uma alteração persistente do estado de saúde deve ser discutido com o médico e - muitas vezes - a pessoa até tem outros sintomas que nem valorizou e que são importantes serem integrados.
Da perspetiva de quem trata o cancro, quais são os maiores desafios?
Existem vários desafios crescentes. Por um lado, nós temos essa ligeira tendência do número de casos, por outro lado, a sobrevivência dos doentes também aumentou - e ainda bem -, mas tudo isso faz com que haja uma sobrecarga no sistema de saúde e isso é um problema em si. Ou seja, há sempre necessidade de termos mais recursos tecnológicos, mais financiamento para o pagamento da inovação, mas a questão da falta de recursos humanos é uma das questões mais críticas. E os recursos humanos são essenciais para fazer face às necessidades dos cuidados que estes doentes exigem.
Outro aspeto tem a ver com os custos associados à inovação terapêutica e, se há área da medicina em que isto é bem visível, é a área da oncologia. De ano para ano, nós temos assistido a um aumento de custos com medicamentos em cerca de 10% e este aumento, a prazo, é insustentável e é algo que nos deve preocupar a todos enquanto sociedade.
Estamos a falar de sustentabilidade do sistema?
Exatamente. Temos que pensar em como vamos conseguir integrar esta inovação terapêutica, tendo em conta o custo da mesma. A área da oncologia implica um especial cuidado no planeamento e na organização porque obriga a tocar muitos instrumentos para conseguir tratar a doença. É necessário, frequentemente, várias especialidades trabalharem de forma coordenada para conseguirem oferecer o melhor plano de tratamento ao doente, as boas práticas obrigam a que o caso de um doente oncológico seja discutido em reunião disciplinar e, não raras vezes, é preciso fazer vários tratamentos. E os tratamentos são cada vez mais complexos: imunoterapias, terapias-alvo, terapias com células manipuladas geneticamente, que é o exemplo das células CAR-T. Isto obriga, por um lado, a uma maior especialização das equipas e, por outro lado, a uma coordenação muito grande entre especialidades e instituições.
Porque não se podem tratar todas as doenças oncológicas em todo o lado…
Sim. Se por lado há doenças que exigem menos complexidade na abordagem terapêutica e podem ser tratadas mais próximas da área do doente, para outro tipos de tratamentos obriga a que haja uma centralização em alguns centros de referência, dependendo da raridade da patologia que estamos a falar. Pode haver doenças que necessitem de tratamentos altamente diferenciados, que impliquem tecnologia muito avançada e por uma questão de maior eficiência de alocação de recursos, só podem ser tratados em dois ou três locais no país.
Não é por acaso que a oncologia é a área da saúde onde a Comissão Europeia está a ter uma intervenção mais direta e a financiar um conjunto de iniciativas que promovam uma melhor organização dos sistemas de saúde, de forma a que os cidadãos europeus possam ter maior equidade no acesso. É porque é assumido que é uma área com cada vez maior peso não só do ponto de vista financeiro, como também social, devido ao número crescente de casos.
A área da investigação também é importante para a oncologia porque sem ela não há progresso.
Se não houver maior investimento para se descobrirem mais e melhores tratamentos para o cancro, nós teremos um problema crescente. Em doenças graves é mandatório que se invista mais em investigação. Não é por acaso que 25% a 30% dos ensaios clínicos que estão a decorrer pelo mundo fora são na área da oncologia, não só pela elevada necessidade, mas porque felizmente os avanços que têm havido no conhecimento da doença têm permitido que se desenvolvam cada vez mais terapêuticas, com a expetativa de terem um impacto importante no aumento da sobrevivência dos doentes.
Nesse sentido, calculo que seja muito importante a colaboração entre instituições de todo o mundo.
É absolutamente essencial. Para se conseguir fazer frente a problemas complexos, a soluções raramente são simples, obrigam a uma grande articulação entre instituições, entre profissionais e isso está a ser feito: Portugal, nos últimos anos, tem crescido muito, não só na investigação básica e translacional, mas também na investigação clínica. No último ano houve um aumento no número de ensaios clínicos em Portugal, mas mesmo assim muito aquém daquilo que é o potencial do país e daquilo que o próprio pode beneficiar se conseguir promover algumas alterações.
Como por exemplo?
Os hospitais devem conseguir reorganizar-se para terem condições mais competitivas para atrair mais investigação clínica, que é produzida por laboratórios, pela insdústria farmacêutica, mas também pela academia. Esse salto é absolutamente essencial ser dado. Espanha, por exemplo, conseguiu - em 2023 - ultrapassar a Alemanha e tornar-se o país número um na Europa em investigação clínica. Portanto, mesmo aqui ao lado, temos um exemplo de como um país foi capaz de reorganizar as suas instuições de saúde e implementar modelos de gestão que lhe permitiram ter maior autonomia, gerir os recursos na área da investigação clínica e tornar-se um país extremamente competitivo no contexto internacional para adquirir ensaios clínicos.
Quais são as vantagens de existirem mais ensaios clínicos num país?
Tem múltiplas vantagens. Tem impacto imediato nos doentes que passam a ter acesso de forma antecipada a medicamentos que por vezes demoram anos até chegar ao mercado, mas também é benéfico para a própria sustentabilidade do sistema de saúde porque os doentes que são tratados em contexto de ensaio clínico - tendo acesso à tecnologia mais avançada - não estão a consumir recursos muito onerosos. Recentemente, nós fizemos um estudo aqui no IPO do Porto sobre dois ensaios clínicos na área dos tumores do sangue e, em cerca de um ano, houve uma poupança de mais de um milhão de euros em cerca dos catorze doentes que foram incluídos nesses ensaios.
Hoje em dia também se fala muito em “tratar a pessoa e não a doença”. O que significa esta expressão aplicada à oncologia?
Significa que nós temos mesmo de olhar para as vontades, as aspirações e as necessidades do doente. Não devemos olhar para o diagnóstico, mas sim para a pessoa que tem uma doença oncológica, muitos vezes num contexto onde existem outras doenças que podem até ser mais graves do que a doença oncológica. Temos que perceber qual é o contexto social e emocional do doente, se ele está capaz de cumprir com o tratamento proposto, se precisa de apoio psicológico, se tem ou não uma retaguarda de familiares ou cuidadores que o consigam ajudar a cumprir toda a jornada terapêutica. Temos de olhar para os vários aspetos da vida da pessoa e não podemos ficar obcecados em tratar a doença. Não podemos esquecer o ser humano que temos à nossa frente.
Quando as situações são invariavelmente fatais - e infelizmente isso acontece mais vezes do que qualquer oncologista desejaria - há sempre alguma coisa que se pode fazer. Pode-se aliviar os sintomas ou oferecer ajuda à família para superar aquele momento mais difícil. Há sempre alguma coisa que se pode fazer porque cuidar é muito mais do que tratar o corpo, não é só o comprimido ou o medicamento, é muito mais do que isso.