De todos os artistas do Barça, espantou ser Dani Olmo a sucumbir às incúrias de receber um passe. Não o mais espetacular, longe de ter a regalia frequente dos elogios, o espanhol é um meio-médio, vive nas fronteiras dos espaços, a outra metade que o compõe é a de um atacante e por isso habita entre linhas, às escondidas de corpos adversários e se fez no futebol com as suas receções orientadas, para depois fugir dos esconderijos. Na equipa com o manipulador do tempo e do espaço que é Pedri, do talento serpenteante e sem teto de Lamine Yamal, existem os suaves controlos de bola orientados de Olmo.

Dentro de um jogo intenso, barulhento e armadilhado pela pressão do Inter, foi ele, a meio do meio-campo do Barça como a honrar a sua natureza, a receber um passe com o corpo fechado, sem acautelar o ângulo morto de onde veio um lançado Federico Di Marco, da esquerda para o centro, e lhe roubou a bola que rapidamente os italianos reciclaram na corrida de Dumfries que depois a passou para o golo fácil de Lautaro Martínez. Os sem discussão melhores jogadores viram-se assim a perder contra a indubitável melhor equipa.

Mas essa simplista descrição dos intervenientes já era conhecida há uma semana, talvez até desde antes. Na Milão cinzenta e em simultâneo da moda, na cidade da palete de cores indiferente aos olhos dos restantes italiano embora cimeira de estilistas, cortes, passerelles, a mais vincada equipa de autor da Liga dos Campeões assomou, sem piedade, o Barcelona com a sua engrenagem. Para cada duelo levou um gladiador de arena, a pressionar cada passe muniu-se da vontade de exércitos. E a cada bola que lhe tocou trabalhar de trás, da sua área, ligou o seu telepático piloto automático.

Por mais bola que tivessem Pedri e Frenkie de Jong, o 6 que corre com ela mais do que a passa, o Barça era coxo nas laterais onde tinha mais espaço e (o limitado Gerard Martín à esquerda, o central sem rotinas Eric García, à direita) e desguarnecido pelo apagão de Raphinha. No miolo sucederam-se as perdas de Olmo nos cercos do Inter e Ferrán Torres era macio demais a jogar de costas para a baliza perante os encostos de Acerbi. Com a agressividade a servir de combustível, os italianos encolhiam os artistas do Barça e teriam um segundo golo: de novo dentro da metade adversária, provocaram um passe errado, lançaram Lautaro e só a lupa do VAR desmascarou o que parecia um fenomenal corte de Pau Cubarsí.

O penálti de Hakan Çalhanoğlu endoideceu a meca do futebol em San Siro, urgindo o Barça a desesperar. Não no jogo jogado, sim na toada das suas ações. O dealbar da segunda parte fez os catalães abusarem da sua joia e escancararem, mais ainda, a raridade da natureza que é Lamine Yamal. Todas as jogadas dirigiam-se ao adolescente, ao génio do engano, confiantes na inspiração das ideias baloiçantes de um miúdo a quem depositam responsabilidades destas quando só tem 17 anos.

Espremidos pela urgência, os catalães encavalitaram-se do seu rapazola. E Lamine encheu o peito do que quer que ele respire para ser assim, pediu todas as bolas, foi para cima, massacrou Di Marcou com sapateados e gestos de valsa, samba, rumba, tango, paso doble e demais estilos de dança que moram nele, mas o Barça não desmontou o Inter por aí. Ou só por aí. Nem por uma ideia qualquer vinda da sonda de Pedri, ou dos remates de Raphinha. Quando o relógio marcou a hora, perante a falência física dos jogadores do Inter, o jogo (2-2) e a entretida eliminatória (5-5) já estavam empatados.

Os responsáveis estiveram nas limitações. Na área apareceu Eric García para encostar o peito do pé a um cruzamento do Gerard Martín, uma bola a ligar as ovelhas negras para gerar o rasgo de luz que o mesmo lateral esquerdo, em mais uma teleguiada oferta, tornaria incandescente ao também servir Dani Olmo para o segundo golo. O antes oleado Inter, cada peça a fazer a sua precisa parte para engrenar um motor que engoliu o Barça no coletivo, soluçou até mais não após o intervalo, falhando passes atrás de passes, perdendo bolas mal as recuperava, precipitando-se depois a tentar lançá-la nas costas da subidíssima linha defensiva dos catalães.

Carl Recine

Será por jogos como este que o ábaco do que mais importa no futebol seguirá a remexer as suas peças, indeciso nas certezas, incerto nas suas verdades: a força de um coletivo é maior do que a soma de indivíduos talentosos? Durante largos minutos em Milão, os jogadores do Inter arrastaram-se no desgaste, combalidos pelo esforço, a jeito de serem presas fáceis da pressão logo após as perdas de bola que o Barça habituado está a aplicar para logo servir os tais que tem e foi buscar a um dos anéis de Saturno. A calma de Pedri mandou no jogo e o seu dançarino celestial massacrou adversários.

Yamal entortou olhos, dobrou pernas, espremeu rins e pariu o pior dos efeitos em quem enfrenta divergentes que têm o super poder de vergar o futebol, por momentos, à sua vontade - o receio. Di Marco temeu e saiu, Carlos Eduardo substituiu-o para o temer e fossem quem o auxiliasse também temia o espanhol sem medo que rematou ao poste, fez Yann Sommer provar que é possível voar e até com o bico da chuteira tentou numa nesga de espaço. Não marcou, mas atazanou esperanças. Quem teve golo foi o seu oposto, o incógnito e apagado Raphinha, ao rematar uma bola da quina da área na única vez que se reparou no brasileiro.

Faltam três minutos para os 90, o golpe tinha ares de fatalidade. Combalido o seu Inter, vendo a equipa a balbuciar coisas impercetíveis, Simone Inzaghi, o treinador responsável pela equipa que pouca finta usa por muito confiar nos seus processos, recorreu ao truque mais velho do manual: mandou um defesa central avançar. E foi na outra área, na sobra de uma bola longa despejada na frente, que Francesco Acerbi acentuou o lado tresloucado desta meia-final. Já nos descontos, o jogador mais velho (37 anos) e desengonçado em campo fez o 3-3 ao desviar um cruzamento rasteiro de Dumfries. O ancião que por vezes parece coxear em campo fê-lo com a subtileza de um bailarino.

Os prolongamentos têm dotes castigadores, em tantas ocasiões se coadunam ao nome e prolongam contendas aborrecidas e enfadonhas que exigem sacrifícios a quem assiste, quanto mais a quem os jogam. Não sucedeu tal coisa em San Siro. No esticar da vida de uma eliminatória com uma dúzia de golos, entretida à brava e entusiasmante como não há memória nesta fase da Liga dos Campeões, tal era o apetite por mais deste futebol que a chuva não resistiu a molhar o deleite. Além de épico, o jogo adquiriu trejeitos de batalha. Na fusão de cãibras nas pernas, ardores no peito, ia o esforço esvaziando os corpos e o futebol que se desejava esvaiu-se em qualidade.

Isso era expectável. Como o reforço da dependência do Barça em Lamine, a sua droga querida contra quem ninguém refilava por tentar fintar o mundo, uma vez e un’alta volta, o jogo às tantas parecia um solilóquio do mais talentoso em campo que tentava sozinho saciar a fome da equipa movida por um clube faminto de regressar a uma final que lhe fugia há uma década. Os catalães tiveram o Inter encostado às cordas durante meia-hora. Fartou-se de rematar Yamal, nunca imitou Davide Frattesi: bem dentro da área, servido por Mehdi Taremi, o italiano fez um passe à baliza da qual o Inter se acercou pelo ar, noutra bola levantada para lá chegar. Eram os suplentes a pegar a máquina ao empurrão.

Preso por arames teve o Inter que resistir como pôde, exaurido nos seus jogadores, esgotado de recursos, a aglomerar os que lhe sobraram em torno da área ou em cercos a Lamine Yamal, a redundância forçada de um Barcelona com rasgos incríveis esta época, entusiasmante de ver, responsável por colar olhos ao futebol. Só que o futebol não é sempre gentil com quem se veste lá na frente com talento e destapa as traseiras com tanto risco. No desespero houve, claro, Yamal contra todos, houve ginga e pés de dança, acelerações, travões e arranques, fintas e pára-arrancas vários.

Carl Recine

Lamine cruzou e rematou, brilhou bastante, mas não marcou porque Sommer o voltou a negar com a mão, estirando-se para ser o guarda-redes que sofreu três golos em Milão - seis a contar com Barcelona - e terá sido o tipo mais decisivo em campo nesta maluca segunda mão da Champions. As celebrações, no final, respeitaram esta costela do futebol que resolveu voar sobre um ninho de cuco. As duas horas em San Siro somadas à hora e meia em Montjuic extraíram 13 golos de duas equipas antagónicas, feitas com estilos contrários a convergirem no bonito que resulta de haver 22 jogadores num hectare de relva a correrem atrás de uma bola.

Tinha de ganhar e perder, de facto, alguém em concreto. Venceu o Inter, perdeu o Barça. Ganhou o futebol e quem calhou estar a ver o jogo.