Por fim, Harry Kane estreou o seu palmarés no que diz respeito a títulos colectivos e já pode gritar que é campeão. Ao longo de uma brilhante carreira, Kane foi acumulando títulos individuais de grande prestígio, como a Bota de Ouro conquistada no ano passado.

A meses de completar 32 anos, ganha o primeiro título (!) da sua carreira. Foi um caminho bastante sinuoso até poder festejar um título, alcançado neste último fim de semana, conquistando a Bundesliga ao serviço dos alemães do Bayern Munique.

Até ao passado fim de semana, é surreal pensar que o avançado inglês não tinha qualquer título como jogador sénior e apenas tinha ganho o Torneio Internacional do Algarve na categoria de sub-17, no longínquo ano de 2010 (!).

Harry Kane é unanimemente considerado um dos melhores avançados da última década, com quase 400 golos marcados e mais de 600 jogos disputados, mas necessitava deste título para acabar de vez com a narrativa de que as equipas que tinham Harry Kane, estavam condenadas ao insucesso.

Essa narrativa foi ainda mais alimentada quando deixou o “seu” Tottenham (no qual esteve mais de 20 anos da sua carreira, desde que chegou ao clube com 11 anos de idade) para assinar pelos alemães do Bayern Munique, com o objetivo principal de ir para uma equipa que luta todos os anos para ganhar todos os troféus que disputa.

Na época passada, os números de Kane foram ainda melhores (bateu o seu recorde pessoal numa liga doméstica de 36 golos em 32 jogos) dos que tinha apresentado ao longo de mais de uma década na Premier League.

Mas há um facto que é indesmentível: o avançado inglês foi contratado para suprir a ausência do seu grande goleador polaco Robert Lewandowski, mas essencialmente para colocar os bávaros mais próximos de ganhar a Champions League e aumentar o fosso entre a restante concorrência na Bundesliga, e tal objetivo não foi conseguido.

11 vezes campeão alemão de forma consecutiva, na época 2023/2024, o Bayern Munique ficou a uma distância inimaginável e inaceitável de 18 (!) pontos da surpreendente equipa do Bayer Leverkusen, que nunca havia sido campeã anteriormente.

Apesar de termos de destacar as milagrosas recuperações obtidas pela equipa do Bayer Leverkusen na época transacta, também não podemos deixar de afirmar que foi um trabalho de autor do treinador espanhol Xabi Alonso, que comandou uma equipa histórica e que realizou uma campanha fantástica, onde conseguiu a incrível proeza de não averbar qualquer derrota.

Mas obviamente que a fama de perdedor de Harry Kane voltou a persegui-lo, porque para além de já ter perdido a Supertaça de Alemanha no seu primeiro jogo ao serviço do Bayern Munique (numa final jogada dois dias depois de Kane assinar pelos alemães), também caiu de forma estrepitosa na Taça de Alemanha, logo na ronda inaugural contra uma equipa bastante modesta, como a do Saarbrücken (!).

Na Champions League, o Bayern Munique foi impedido de disputar a desejada final, depois de mais uma daquelas famosas remontadas que o Real Madrid costuma operar nos últimos anos jogando no seu estádio Santiago Bernabéu.

O grande dominador da prova milionária desferia mais um golpe certeiro no coração de todos os adeptos bávaros, que encontrou um herói inusitado no suplente de luxo Joselu, que marcou dois golos em três minutos. Ao minuto 88, o Bayern estava na final, três minutos depois estava eliminado. Mais um momento extremamente penoso e bastante cruel na carreira do pobre Harry Kane.

Apesar de já demonstrar bastante cansaço naquele momento do jogo, coincidentemente ou nem assim tanto, a equipa alemã implodiu depois do avançado inglês sair do terreno de jogo.

E dessa forma, Harry Kane não conseguia alcançar o desiderato a que se propôs (o de ganhar títulos) quando decidiu sair da sua zona de conforto, para embarcar numa aventura por terras germânicas que quase nenhum projetava há uns anos atrás.

Alvo da cobiça de vários colossos do futebol inglês (nomeadamente Chelsea, Manchester City e Manchester United), Kane nunca quis ser rival do Tottenham, do clube que ama incondicionalmente e por quem tudo deu de si para poder levar um troféu às vitrinas do mesmo.

Foram várias as finais perdidas ao serviço do Tottenham. É comum dizer-se na gíria futebolística que “as finais não se jogam, ganham-se”, mas a equipa do Tottenham e a seleção inglesa (onde Kane é o melhor marcador de sempre e que capitaneia neste momento), sucumbiu mentalmente nos grandes momentos.

Muitos dirão que só ganhou agora o primeiro troféu porque ficou muitos anos no Tottenham. Mas tomou essa decisão com o coração e não com a cabeça, ouviu aquilo que o seu coração dizia e lutou até ao fim para conseguir ser campeão com a sua equipa, à semelhança do que fez Steven Gerrard (mas este foi campeão europeu), apesar de não ter conseguido ganhar a tão desejada e ansiada Premier League.

O sentimento do jogador inglês pelo seu clube de infância, é difícil de ser compreendido e percecionado pelos restantes adeptos do futebol. É fácil dizer que Harry Kane devia ter saído mais cedo do Tottenham, mas o coração tem razões que a própria razão desconhece.

É também bastante frequente ouvirmos a célebre frase “O futebol não entende de justiça”. Ganha o que é mais competente e eficaz, independentemente do rendimento individual de um determinado jogador.

O que não deixa de ser factual, mas igualmente cruel. Como se Harry Kane fosse o máximo responsável pela maioria da sucessão incrível de desaires que foi sofrendo ao longo da sua estelar carreira.

E na minha opinião, tem obviamente a sua quota parte de responsabilidade, mas não é de todo o culpado por só ter estreado o seu pecúlio de troféus depois dos 30 anos e de mais de 10 anos de carreira ao mais alto nível.

Foram uma conjugação de fatores que contribuíram para esse fato. Por exemplo, na final da Liga dos Campeões (que o Tottenham alcançou de forma quase agónica, com um golo no último segundo contra o Ajax), o seu treinador Mauricio Pochettino quis presentear o seu capitão com uma titularidade totalmente descabida.

É Harry Kane melhor do que Lucas Moura? Sim, é. Mas Lucas Moura vinha de marcar um hat-trick e de ser o herói da equipa do Tottenham. Foi o avançado brasileiro que marcou os três golos mais relevantes da história do clube inglês, com aquela recuperação impressionante em Amesterdão, frente aos holandeses do Ajax, que vinham de banalizar os espanhóis do Real Madrid e de eliminarem a Juventus, onde militava o nosso Cristiano Ronaldo.

Harry Kane contraiu uma lesão no início do ano de 2019, que o arredou dos relvados durante mais de três meses, e não tinha jogado sequer em Amesterdão. Colocá-lo em campo contra um super Liverpool em detrimento de um motivado e confiante Lucas Moura, revelou-se fatal para os ensejos da equipa do norte de Inglaterra.

É certo que o golo madrugador de Salah na conversão de uma grande penalidade, decantou a final a favor do Liverpool. Mas Harry Kane foi presa fácil para Virgil Van Dijk e companhia. O Tottenham perdeu fulgor ofensivo e a não inclusão de Lucas Moura é, até ao momento, uma das decisões mais incompreensíveis de um treinador que me recordo.

Talvez só a coloque ao nível de Diego Simeone ter decidido forçar a utilização de Diego Costa na célebre final contra o arqui-rival Real Madrid disputada no Estádio da Luz em 2014, na qual teve de emendar a mão antes do quarto-de-hora e queimar uma substituição.

Essa final foi o pontapé de saída para uma hegemonia do clube espanhol, que depois desse título de Lisboa, conseguiu ganhar 6 (!) nos últimos 11 anos.

Harry Kane é provavelmente o maior ídolo da história do Tottenham, mas numa final têm que jogar os que estão em melhor forma e os que apresentam melhor rendimento.

Poderia também falar das históricas campanhas do Tottenham na Premier League nas épocas de 2015/2016 e 2017 (com um fantástico 2º e 3º lugar respetivamente), para o qual contribuiu massivamente a eficácia goleadora de Harry Kane, que foi o melhor marcador da prova nessas duas épocas.

Mas aí estamos a falar numa prova de regularidade, o Tottenham não dispunha de um plantel muito vasto. Era uma equipa extremamente competitiva, mas não conseguiu ser tão regular quanto o histórico Leicester e a cínica mas eficaz equipa do Chelsea de Antonio Conte, com Eden Hazard a um nível estratosférico.

Pela seleção inglesa, a sorte também não acompanhou o insaciável Harry Kane. No Mundial 2018, foi eliminada nas meias-finais pela seleção da Croácia após prolongamento, contra todas as previsões.

Mas ainda mais dolorosa foi certamente a derrota na final do Europeu de 2020 (disputado em 2021 devido à pandemia). Um Europeu cuja final se disputou no mítico estádio de Wembley.

A Inglaterra com uma equipa repleta de grandes jogadores (como Kane, Sancho, Saka, Rice, Mount, Sterling, entre outros) era considerada a grande favorita (apesar de exibições pouco conseguidas) para a final e apesar de se ter adiantado bem cedo no marcador, viria a perder da forma mais cruel possível: em penalties.

Um Donnarumma gigante travou os remates de Jadon Sancho e Bukayo Saka, Rashford atirou ao poste, e mais uma vez os adeptos ingleses não puderam entoar o célebre “It’s coming home”. De perfil bastante sóbrio e poucas vezes exteriorizando as suas emoções, foi provavelmente a primeira vez que pudemos ver um Harry Kane completamente desconsolado e quase à beira das lágrimas.

Três anos mais tarde, a seleção inglesa conseguiu o feito de jogar mais uma final do Euro, mas uma vez mais, os deuses do futebol não quiseram nada com Harry Kane e a sua seleção. Dessa feita, não conseguiram derrotar a entusiasmante seleção espanhola do prodígio Lamine Yamal (que foi titular em grande parte desta prova, sendo decisivo com apenas 16 anos de idade) e companhia.

Apesar do jogador de futebol ser tipicamente egoísta, Harry Kane sempre ambicionou conquistar títulos pelas cores que defendeu.

Poucos dias antes da oficialização deste seu primeiro título, o presidente honorário do clube de Munique, Uli Hoeness, dedicou umas palavras bem bonitas de apreço e reconhecimento por tudo aquilo que Harry Kane fez desde que chegou ao Bayern Munique, no Verão de 2023. “Não há ninguém que mereça mais do que ele. Ele luta, trabalha, marca um número incrível de golos, mas também trabalha para toda a equipa”, disse na altura.

Considero que não é preciso acrescentar muito mais a tudo aquilo que já referi anteriormente. A sua ética de trabalho, profissionalismo e dedicação, está acima de qualquer discussão. Não se ouviu sequer um comentário ou uma opinião depreciativa sobre Harry Kane e o seu comportamento, tanto dentro como fora dos relvados.

Harry Kane contrariou o destino, quebrou este enguiço interminável, e pode entoar por fim o hino “We are the champions”, com todo o mérito e justiça, se me permitem tal veleidade.

Harry Kane perdeu uma final da Liga dos Campeões e duas finais da Taça da Liga Inglesa com o Tottenham, duas finais do Europeu com a Inglaterra e uma final da Supertaça da Alemanha na sua estreia pelo Bayern na temporada passada.

Desde o passado domingo, é um campeão e não mais poderá ser chamado de “pé frio”. Valeu a pena não ter deitado a toalha ao chão, sair de Londres e ir para Munique em busca da glória. A sua maldição chegou ao fim, e hoje, o futebol é um pouco mais justo.