A cara séria de ambos, quase carrancudos, apropriou-se à ocasião. Também a ordem dos corpos a subirem as escadas nas entranhas do Philippe Chatrier, court central do ténis olímpico, pareceu condizente: na dianteira, a suster o saco das raquetes nas costas, Rafael Nadal emergiu primeiro, solene no olhar, no seu encalço Novak Djokovic, de boné na cabeça a prefaciar o sol do meio-dia de Paris, não vimos se propositada ou inocentemente, mas a dar passagem à história de quem se confunde com o lugar ao qual ascendiam. Uma vez iguais no plano em relação ao campo, a aguardarem só pela ordem para caminharem, não houve os saltos de joelho ao peito do espanhol, tão-pouco os alongamentos elásticos do sérvio. Até os traços do antigamente estavam em suspense.
Ao terceiro dia olímpico, o calor parisiense acolheu quase como quem não quer a coisa um duelo entre duas lendas-vivas, o confronto entre mastodontes das raquetes que o sorteio quis reservar para uma de outra forma indiferente segunda ronda do torneio de ténis. Nunca seria irrelevante, sacrilégio era se o fosse, mas, nos Jogos Olímpicos, de repente o histórico 60.º encontro entre Nadal e Djokovic era ensanduichado na panificadora das atenções de uma jornada com saltos para a piscina, natação, skate, basquetebol, ginástica artística ou pólo aquático. A agenda recheada não emagreceu as bancadas do estádio de Roland-Garros, apinhadas de gente para presenciar história.
O recinto e o court onde se reencontraram, sinónimos do pináculo da terra batida que anualmente celebra a superfície com o seu torneio do Grand Slam, eram usurpados pela agenda olímpica, ali não está-se mas não se está em Roland-Garros, é um tempo mascarado para a ocasião olímpica, usurpado pelo evento, assim como este Rafael Nadal, o que luta contra a luz que finda, não é o Nadal de outrora, coisa já sabida antes de os presentes rugirem de entusiasmo com a entrada dos tenistas em campo, mas evidência que foi toldada pela emoção exacerbada entre o momento em que este duelo tinha sido confirmado e algures nos meandros dos primeiros jogos do set inicial.
Quando os mamutes lendários começaram a bater bolas, trocando-as ferozmente, a emanarem labaredas do risco dos seus braços, cedo se percebeu o que já era óbvio e fora abafado ingenuamente pela efervescência de a fortuna olímpica dar ao mundo um reencenação de um duelo lendário.
Que Rafael Nadal, hoje, é um altar erigido a ele próprio, sinagoga andante e de portas abertas para que se contemple a personificação de um legado muito provavelmente inatingível para todo o sempre, de uma história esculpida pela melhor concentração, a mais sublime, mais excelsa, num só corpo humano de tudo o que é preciso para ser alquimista da terra batida no ténis, mas é um corpo hoje preso por finos cordéis, com a finura de fios de cabelo, frágeis porque vergastados pelo tempo e pelas lesões e pelo atrito nas articulações e a impiedade do tempo que teve eco na falta de dó mostrado por quem estava do outro lado da rede.
Mesmo que não seja recíproco, o maior rival da carreira de Novak Djokovic é Rafael Nadal, fosse neste dia, amanhã ou num qualquer ontem que o hoje faz parecer ter sido há décadas, tal são os mundos que existem entre as condições físicas de que cada um dispõe.
Se bem que com uma coxa elástica sobre o joelho operado há cerca de dois meses, o sérvio mostrou desde o arranque que no cume dos seus 37 anos ainda usufruiu, quando em ação no court, de algo muito perto dos píncaros das suas capacidades nos seus membros-plasticina: as pernas, leves e ágeis, deslizaram graciosamente na terra, foram buscar qualquer bola em qualquer azimute para depois exibir o seu manancial absurdo de pancadas magníficas. A esquerda cruzada de Djokovic pareceu um canhão guiado por GPS, não eram bolas mas balázios que lhe saíam da raquete, a sua direita na passada dava chapadas triunfais nas respostas mais difíceis, os seus amortis eram escondidos até à última e postos com pinças a sussurrarem segredos à rede. O nível de Novak foi magnífico desde o início.
O de Rafael Nadal sofrível desde a primeira vez que baixou a cabeça, encolheu-a entre os ombros e nesse sintoma de esforço cansado acorreu à primeira bola que o adversário de sempre abrandou num drop shot que lhe testou a vontade de ir à rede salvar um ponto. Agastado pelo terceiro dia seguido em court, o espanhol não escondeu a ferrugem e a erosão dos seus 38 anos que distam o tamanho de uma galáxia dos 37 de Djokovic, numa diferença exposta no primeiro set.
O 6-1 que favoreceu Novak - chegou a parecer um bagel (6-0) inevitável, tal a superioridade do sérvio, que demorou 15 minutos a chegar ao 3-0 - foi um atestado de realidade para evidenciar as coordenadas onde se encontram, de momento, as carreiras dos tenistas que outrora, a cada duelo, eram separadas apenas por detalhes avistados ao microscópio. Djokovic massacrou sem piedade Nadal, prevaleceu sem espinhas e com um jogo exuberante que vergou o rei da terra batida a sofrer no pó, a desistir de ponto à mínima mudança de direção da troca de bolas, a disparar bolas bem para fora quando era obrigado a esticar-se um pouco mais para as alcançar com a raquete.
O pescoço de Nadal, a deixar a cabeça pender a cada sintoma de atropelamento, os seus trejeitos de desânimo além dos seus tiques obsessivos que fazem parte da sua compulsão, sugeriam até uma raridade raríssima no raro desportista que ele é - parecia um homem resignado, a desistir.
A rapidez com que Djokovic inscreveu um 4-0 no segundo set teve proporções de um atropelamento a ser acentuado sem mágoa. No seu estilo mecânico, mas de uma engenharia vasta, assente na diversa maquinaria com que colecionou os 24 Grand Slams que o fazem reinar no ténis fruto de literalmente quase todos os gestos, praticamente todas as suas pancadas, tocarem no céu (o smash, ainda hoje, será a única que não provoca inveja), Novak ia terraplanando o adversário com bolas marteladas aos cantos da linha de fundo quando não se lembrava de as puxar docilmente para a rede, onde Rafael Nadal já se dispensava a ir. Só a memória de um passado distante causaria comichão nos olhos de quem estivesse a ver, porque o presente era indesmentível.
Mas, depois, algures entre o “joguei um jogo de serviço muito mau” que Djokovic confessaria, após a partida, já sorridente e de trouxa às costas, pronto a abandonar o court, e a matéria da qual Rafael Nadal é feito, houve um momentâneo raiar de luz a incidir sobre o espanhol.
Nas suas palavras de rescaldo, o sérvio também falaria com um “não lhe podes dar nada, especialmente neste campo, com o público do seu lado”, outra admissão com recheio de verdade. Quando, combalido e aparentemente resignado, Nadal farejou a mínima titubeação de Djokovic a servir, foi como se por oposição diametral o jogo lhe tivesse pegado uma energia que o rejuvenesceu, mesmo que por instantes, não lhe tirando anos às rugas, à calvície dos já raros cabelos destrambelhados, mas oleando-lhe as gastas articulações, soltando-lhe as ancas, os joelhos, os tornozelos e por consequência libertando a cabeça para o alento de se focar apenas no seu braço esquerdo.
A temível manivela de ‘Rafa’ encadeou então direitas nadalescas, carregadas de top spin a bater sobre as linhas, marradas explosivas na bola que recordaram Djokovic, o público, o juiz de cadeira ou todos os olhares que os vissem de que naquele corpo cadente ainda há ténis para ser sublimado, mesmo se limitado a doses pequenas. O espanhol até à rede acorria para disputar pontos com o elástico sérvio e ganhá-los. O 4-4 fez a arena exultar. Foram minutos de êxtase vindo das bancadas que favoreceriam sempre o homem que tem uma estátua disposta na entrada de Roland-Garros, um não-francês a quem os franceses deram a tocha olímpica na cerimónia inaugural dos Jogos, como não.
O ressurgimento de Rafael Nadal, mesmo entusiasmante para o público, haveria de ser efémero pela sua dependência de maior na capacidade de reação de Novak Djokovic. Sozinho, por si só, o melhor do espanhol hoje em dia já não é suficiente. Quando o sérvio despertou e reencontrou a sua resposta ao serviço, sobre a qual se refestelou, de novo, na sua potente esquerda, o esqueleto do espanhol cedeu. Ao break, Djokovic fez suceder o jogo, fechado com um ás ao qual o rival nem esboçou uma tentativa de o apanhar. Por essa altura, Nadal compreendia que a máquina do tempo era uma miragem.
Lá dentro no âmago da ‘Rafa’ ainda existe, haverá sempre, o touro todo sujo de pó de tijolo, a sacudir-se de vez em quando e para sempre para a poeira pairar por momentos no ar antes de voltar a assentar. Ninguém sabe, talvez nem ele, se esta foi a badalada última dança. A felicidade de Novak Djokovic, sem dúvidas o melhor, mais em forma e dominador tenista entre os dois na atualidade, ao dizer no final, com a passagem à 3.ª ronda garantida, que tudo fez para ganhar, concluiu o respeito que jamais o sérvio deixará de ter pelo espanhol.
Mas o tempo já não é o mesmo para eles, por mais que a natureza inquieta de Nadal grite contra a sua inclemente passagem. Restam-lhe o torneio de pares, a dividir o court com Carlos Alcaraz, o passado e o futuro do mesmo lado da rede.