Bastou-me ler um breve excerto do texto de João Noronha Lopes, no feed de Instagram da Tribuna Expresso para, numa fração de segundo, me ver devolvido a uma das mais formidáveis sagas de benfiquismo dos últimos vinte-e-não-sei-quantos-anos. O vislumbre daquele singelo quadradinho, plasmado no vitral do meu telefone, foi a madalena de Proust que de uma assentada me transportou para outubro de 2020: o mês que os Ultras, na sua profana sabedoria, caligrafaram “OUTubro”.
Tenho dito que hoje em dia há mais bola numa Assembleia Geral que numa tarde de Domingo (até porque há muito que o Desporto-Rei foi expatriado do seu horário natural). Com este raciocínio em mente, imagine então o leitor, quanto futebol não existirá numa jornada de eleições para os Órgãos Sociais de um clube. Sobretudo quando o que está em causa é a colisão épica entre forças do mais tremendo antagonismo. Sobretudo quando esse clube é o Benfica.
Ora, naquela sublime e desastrosa noite de 28 de outubro de 2020 era isso que estava em jogo. Pode o leitor levar a peito o que escrevo: de um lado o Benfica, do outro o Anti-Benfica; de um lado o Benfiquismo, do outro o Vieirismo; de um lado a virtude do passado, do outro as manhas do presente. Simplifico? Como queiram. Vieira e Noronha: eis os homens que encarnavam os pólos que se opunham. No fim, prevaleceu o primeiro, mas ganhou o segundo.
Esclareço. Os números foram históricos, um escandaloso record de votantes. O Vieirismo estava podre e o fedor irradiava. Nós, que nas televisões e jornais éramos poucos, ali mesmo éramos milhares. Mais que as mães, mais que as tias, mais que as avós, as primas, as vizinhas e as amigas delas.
Convém não esquecer que inventaram uma desculpa qualquer para antecipar em dois dias as eleições: de uma tranquila sexta, passou a uma laboriosa quarta-feira. Queríamos lá saber. Lá iríamos nós. Convém não esquecer, também, que se viviam os dias do vírus. Sair de casa tornara-se ousadia de um gesto só. Mesmo assim, com o trapo na cara, lá fomos nós.
Eu que o diga. Quatro horas na fila? Não. Eis a conta de multiplicar: duas vezes quatro horas na fila. Foram oito horas à volta do atual Estádio da Luz: Toni foi 8, João Pinto foi 8, Roger foi 8. Naquela quarta-feira de outubro, Manuel Barbosa de Matos 8 foi. Que maravilha. Tudo me surge como se estivesse lá agora, a respirar sob um dos tais retalhos que então se usavam por cima do nariz e da boca.
A primeira volta foi para votar. Um grupo de estalo: Miguel Sousa, o Lacrau, Samuel Úria, o bardo, João Pedro Vala, o escriba, Pedro Adão e Silva, o vice, Filipe Costa Almeida, o ponta de lança, e Vítor Paneira - ele mesmo.
Sozinho era uma multidão: todo o Benfica do Norte repousava naquelas pernas arcadas. Ainda hoje tremo (de benfiquismo e pavor) quando recordo as suas palavras na noite anterior. No palco em que eu acompanhara a maravilhosa Lena D’Água a cantar o Hino do clube, o melhor estava para vir. Aqueles olhos, arregalados à Max Cady: — “Nós somos como as pedras da calçada ”, — “Eu chorei com aquele manto sagrado”, — “(...) o Benfica a entrar com o manto sagrado e assustá-los! É isso que eu quero pá!”. Paneira não era já um homem, mas toda uma geografia.
A segunda foi para fazer companhia a um amigo solitário, que nem enfermeiro de bloco. Nestes dias de futebol, brota também no homem um companheirismo de velha cavalaria. Ora, é com a experiência de um vasto tempo em marcha lenta, que vos digo: nem um passageiro daquele noturno comboio humano tencionava votar Lista A. Todo o plano era Noronha, toda a esperança era Noronha. Naquela entardecer de outono, todo o Benfica era Noronha.
Não me venham dizer. Sabe-se, dos livros, que quando um, dois, três, 50.000 saem de casa é para fazer acontecer.
Viu-se agora no Porto. Foram aos magotes para quê? Para fazer acontecer. Aquele plebiscito era assim: uma enormíssima final europeia, daquelas à anos 80, daquelas de suicídio coletivo e lágrimas de terceiro anel. Até na roubalheira. Até na vilania.
Como explicar, por exemplo, o inesperado sono que se abateu sobre as mesas de voto? Pobres delegados, já não conseguiam fazer contas de somar àquela hora. Ainda se lembram? A Direcção não tinha permitido auditoria ao sistema de voto electrónico. A suspeita instalara-se como num esboço de Chandler. Avançou-se com boletins de papel. No final havia que comparar uns e outros, o papel e a geringonça. Eis então que o alegado tartufo, Virgílio Duque Vieira, anuncia que não iria haver contagem. Ficaria para depois. Até logo! Até hoje.
E para onde foram as tais urnas com os boletins de papel? Sebastianista me confesso, sou dos que ainda esperam um regresso. Mas naquela madrugada deu-se singularíssimo caso inverso: em vez da bruma ter desvelado o que todos aguardavam, o que todos aguardavam desapareceu. Na bagageira de alegados Clios, alegadamente brancos, estilo frota de empresa import-export, desapareceu. Alegados automóveis, alegadamente da empresa que fazia a alegada segurança, da alegada equipa, do alegado Benfica que por aqueles dias jogava à bola no alegado Estádio da Luz.
Mas houve pior. A trama cresceu, já como comédia romana: não foram entregues os Cadernos Eleitorais. Sim, os cadernos. Uma das supremas indignações daquela noite era a total ausência de Cadernos Eleitorais. Como era possível o descaro? Como era possível a direção em funções não avançar com o vitalíssimo documento? E que documento era esse? Em que consistiam tais Cadernos? E para que serviriam eles? Ignoro na totalidade. Nem o ponto da Ópera saberia.
Já sentíamos o sismo do tombo de Vieira e seu séquito, seus rapagões de parada. O regime ia cair. Mas não caiu. Não aconteceu. Como fora possível? Bem. Ninguém tinha dúvidas que Noronha tinha ganhado, excepto Noronha, que reconheceu uma derrota cujo aroma a fraude ainda hoje empesta a secretaria da Luz. Só lhe pedíamos a recontagem. Um bocadinho de nada que fosse de Donald Trump. Mas Noronha era demasiado honrado, Noronha era demasiado Benfica. Nem por um segundo lhe ocorreu a hipótese de ir para a lama brigar. E é por isso, distinto leitor, que é preciso reelegê-lo.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome