Sem as nuances que são obviamente importantes em quase todos os casos que envolvem doping, a história que colocou Jannik Sinner, número 1 mundial do ténis, no olho do furacão nas últimas horas conta-se assim: em março, durante o torneio de Indian Wells, nos Estados Unidos, o fisioterapeuta do italiano fez um corte num dedo com um bisturi, andou dois dias com o dedo enfaixado e, depois de retirar o penso, o preparador físico de Sinner aconselhou o colega de staff a usar determinado spray, de venda livre em Itália e que, por acaso, tinha ali à mão, para ajudar na cicatrização. Durante uma semana, o fisioterapeuta, Giacomo Naldi, aplicou o tal spray do colega, um remédio de nome Trofodermin, no seu maltratado dedo. Nesse período, também ia fazendo o seu trabalho de massajar o corpo amolgado do líder do ranking ATP, que por aqueles dias sofria também de dermatite, causando-lhe cortes na pele na zona das costas e pés.
Dias depois, Jannik Sinner testou positivo a clostebol, substância proibida pela Agência Mundial Antidopagem, em dois testes feitos ainda em março, dos quais foi notificado em abril. Nas duas ocasiões foi suspenso preventivamente, mas recorreu da decisão para um tribunal independente, que aceitou as razões do italiano. Sinner continuou, assim, a jogar, até à chegada de uma decisão final. E de abril até à última terça-feira, quando a ITIA, a Agência Internacional de Integridade no Ténis, deu o seu veredicto, nada foi tornado público.
Sinner é um tenista inocente aos olhos da ITIA e do painel independente formado pela Sports Resolutions, empresa especialista em arbitrar casos desta estirpe. Ao longo da investigação, que começou no início de agosto, o tribunal analisou documentos, entrevistou os envolvidos e consultou “três especialistas em questões de dopagem”. Sinner alegou que, ao ver Naldi com um curativo à volta do dedo, perguntou ao seu fisioterapeuta se estava a tomar alguma medicação para a ferida e que Naldi assegurou que não. De facto, só começaria a aplicar Trofodermin dias depois, sem nunca avisar o tenista. O tribunal considerou, assim, Sinner “não culpado ou negligente” já que tomou todos os cuidados e que não poderia saber que existia a hipótese de ser contaminado por um terceiro, neste caso o seu fisioterapeuta, que não usou luvas enquanto o massajava. Os cortes que o italiano tinha no corpo ajudaram também à entrada do clostebol no seu corpo.
Dois pesos e duas medidas?
As justificações da ITIA estão explanadas ao pormenor num documento de 33 páginas tornado público na terça-feira. Mas não caíram nas boas graças de parte da comunidade tenística. Nick Kyrgios, o inflamante australiano, foi dos primeiros a reagir, falando de uma decisão “ridícula”. O português Gastão Elias fala de como o ténis se “tornou numa piada”.
“Seja acidental ou voluntário. Acusas positivo duas vezes a uma substância banida… tens de levar dois anos [de suspensão]. A tua performance foi melhorada”, escreveu Kyrgios.
Sobre a melhoria de desempenho, o relatório da ITIA deixa dúvidas, tão ínfima foi a presença da substância proibida encontrada na urina de Jannik Sinner. David Cowan, um dos especialistas consultados durante a investigação, sublinha no documento que “a diminuta quantidade” de clostebol presente no corpo do italiano não seria suficiente para “uma melhoria de performance relevante”.
Mas o que está a incomodar a esmagadora maioria dos tenistas que se pronunciaram é a forma célere e discreta como foi tratado este episódio em específico, deixando no ar a ideia de uma justiça para uns, neste caso para o tenista número 1 do mundo, e uma justiça bem menos lesta e recatada para outros atletas sem o mediatismo do transalpino que este ano se estreou a vencer em torneios do Grand Slam, no Open da Austrália.
Ao contrário de outros casos, em que as suspensões preventivas não foram levantadas até ao veredito final, Jannik Sinner continuou a competir. E até a ganhar torneios. “Não consigo imaginar o que é que outros atletas que foram suspensos por causa de substâncias contaminadas estão a sentir neste momento. Regras diferentes para jogadores diferentes”, escreveu Denis Shapovalov, ex-top 10 mundial, no X. O britânico Liam Broady lembrou que atletas na mesma situação do italiano esperaram “meses e até anos” para que “a sua inocência fosse declarada”.
O caso mais mediático de uma tenista suspensa e depois ilibada é o de Simona Halep. A antiga número 1 mundial e vencedora de dois torneios do Grand Slam foi suspensa provisoriamente em outubro de 2022 pela ITIA, depois de testar positivo a roxadustat durante o US Open desse ano e também por anomalias no passaporte biológico. Onze longos meses depois, a sanção seria fixada em quatro anos. Halep recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto que em março deste ano concluiu que o positivo provinha de um suplemento contaminado e as anomalias no passaporte biológico da atleta poderiam estar ligadas a uma operação cirúrgica recente. A sanção passou de quatro anos para nove meses, mas, aí, há mais de um ano que a romena não competia. Está, neste momento, fora do top 1000 e a tentar reatar a carreira.
Também paradigmático desta aparente diferença de tratamento é o caso de Tara Moore. A britânica, que tem como melhor classificação no ranking WTA o 145.º lugar, foi suspensa provisoriamente em maio de 2022, depois de testar positivo a boldenona e nandrolona num controlo feito num torneio na Colômbia. Foi considerada “não culpada ou negligente” apenas em dezembro de 2023, depois de provar que o positivo tinha sido causado por carne contaminada. Esteve 19 meses impedida de competir.
No X, Moore começou por comentar o caso, lamentando que “apenas a imagem dos jogadores de topo seja importante”. Mais tarde, sublinhou que nada tem “contra Sinner” e que o clamor do mundo do ténis devia ser “dirigido às instituições” e não ao jogador. “Fico feliz por o processo dele ter sido rápido e suave. Qualquer pessoa que já tenha passado por isto sabe o quão horrível e brutal é o processo, destrói-te não só a carreira mas também a tua auto-estima. Falei com outros jogadores que passaram por isto e todos partilham do mesmo sentimento: tristeza”, escreveu ainda a britânica, que deixa a questão: “Porque é que não fomos tratados com a mesma confiança e respeito que os tenistas de ranking superior?”.
Çağla Büyükakçay, turca antiga top 60 que entre 2021 e 2022 esteve quase um ano suspensa, sendo depois ilibada pela ITIA, fala de um processo “esgotante” e de um “fardo financeiro” muito pesado, principalmente para os tenistas que não têm os recursos de quem se passeia pelos lugares cimeiros do ranking: “É incrivelmente injusto que alguns de nós sejamos tratados de forma diferente, estando debaixo das mesmas regras.”
Ahmad Nassar, diretor executivo da Associação de Tenistas Profissionais (PTPA), congratulou-se com o resultado da investigação a Jannik Sinner, mas pediu “processos transparentes e consistentes para todos os jogadores”, quer estejam no “número 1, número 100 ou número 1000 do ranking, sejam homens ou mulheres”.
Clostebol: um problema italiano
Ao contrário de tantos outros tenistas, o processo de Jannik Sinner durou apenas quatro meses, durante os quais o tenista não deixou de jogar, perdendo no final apenas o prize money e os pontos para o ranking conquistados em Indian Wells, onde caiu nas meias-finais. Daí para cá venceu o torneio de Halle, na Alemanha, em junho, e na última semana conquistou o Masters 1.000 de Cincinnati. Esses títulos não lhe foram retirados.
No documento apresentado pela ITIA que detalha os pormenores da investigação é revelado que Sinner viu as duas suspensões provisórias rapidamente levantadas porque o tribunal independente designado para o caso ficou “confortavelmente satisfeito com as inequívocas provas apresentadas pelo jogador, com as declarações do laboratório e com as submissões por escrito das partes”.
Os três especialistas em questões de dopagem ouvidos no processo concordaram que estava em causa um caso de “contaminação” sem o conhecimento do jogador, considerando “muito plausíveis” as suas explicações. Dois dos três médicos não conheciam a identidade do tenista enquanto analisavam o caso.
Jannik Sinner está longe de ser o único atleta italiano a ser apanhado com clostebol. O portal Honest Sport revela que, entre 2019 e 2023, 38 desportistas transalpinos testaram positivo à substância. O relatório da ITIA diz que “50% dos procedimentos antidopagem relacionados com clostebol foram detetados em Itália”. O Trofodermin, medicamento que terá causado a contaminação de Sinner, é vendido essencialmente em Itália, onde pode ser comprado em spray ou pomada, sem prescrição médica e a baixo preço. O clostebol, que começou a ser usado na Alemanha nos anos 80, é considerado um esteroide menos forte que outras substâncias dopantes, mas pode contribuir para aumentar a massa muscular e diminuir o tempo de recuperação.
Nos últimos anos vários tenistas italianos testaram positivo a clostebol, como os jovens Matilde Paoletti e Mariano Tammaro, em 2021, ambos então com 17 anos. Stefano Battaglino, que nunca passou do top 700, foi suspenso por quatro anos depois de não conseguir provar a sua inocência após um controlo positivo. Battaglino esteve suspenso preventivamente desde fevereiro de 2023 e teve de esperar até novembro do mesmo ano pelo veredito final.
Caso mais semelhante ao de Jannik Sinner - até em matéria de celeridade do processo - foi protagonizado por Marco Bortolotti, n.º 87 no ranking de pares, que testou positivo a clostebol durante um torneio da categoria challenger em Portugal, em outubro de 2023. Em fevereiro deste ano foi confirmada a presença da substância proibida nas análises do italiano e, um mês depois, a ITIA informava que, tendo por base estudos científicos e outros casos já registados, que havia aceitado as explicações do tenista e que estava provada a “contaminação involuntária”. Bortolotti não cumpriu suspensão provisória.