Num tempo de incerteza global, a água tornou-se mais do que um recurso, é um pilar estratégico de estabilidade e desenvolvimento.

Vivemos um dos períodos mais imprevisíveis das últimas décadas. Guerras comerciais, conflitos armados, instabilidade económica, e alterações climáticas colocam em risco a segurança alimentar e hídrica de toda a Europa.

A volatilidade dos preços e a incerteza no abastecimento são agora o novo normal.

Mas é também neste contexto que surgem oportunidades para repensar o modelo atual e criar estratégias sustentáveis a longo prazo. E é neste contexto que consideramos que se inscreve a Estratégia de Resiliência Hídrica Europeia.

Precisamos de uma estratégia europeia para tempos críticos

A Estratégia Europeia para a Resiliência Hídrica (EWRS) representa um momento decisivo para os recursos hídricos, não apenas a nível europeu, mas também a nível nacional e regional, desde logo porque a água é um desafio local que exige soluções com escala. É ao nível das bacias hidrográficas que os problemas ganham forma. Abundância e escassez podem coexistir lado a lado. Daí a importância de partirmos das realidades locais para construirmos estratégias verdadeiramente eficazes agora e no futuro. Captar, armazenar e gerir a água é, e será nas próximas décadas, um dos maiores desafios quer da Europa, quer do mundo em geral. Desta equação dependerão as soberanias e as independências alimentar e política, a própria segurança dos continentes, das regiões, dos países e das populações, bem como as economias.

A água é hoje um capital estratégico. Sem ela, não há produção, nem segurança, nem futuro. Garantir resiliência hídrica é garantir estabilidade económica.
E esse caminho começa agora.

Precisamos de uma estratégia europeia para tempos críticos

No caso da Estratégia Europeia para a Resiliência Hídrica (EWRS), também teremos de avançar de baixo para cima, conhecendo os problemas das regiões e usando este conhecimento para lançarmos os alicerces da EWRS, que deverá ser suficientemente abrangente e elástica, de modo a poder integrar as diferentes realidades que existem na Europa. Desta abordagem holística e flexível dependerá a sobrevivência da Europa nas próximas décadas e durante este século.

Uma só Europa, duas realidades e dois climas

Apesar das incertezas que as alterações climáticas nos reservam anualmente, a verdade é que na Europa temos duas realidades e dois climas. De um lado, a Norte temos uma Europa continental, de clima temperado, com uma distribuição mais regular da precipitação ao longo de todo o ano, enquanto do outro lado e a Sul temos uma Europa mediterrânica, onde a precipitação se concentra no período do outono/inverno e a seca impera durante a primavera-verão. Apesar de em valores médios absolutos as diferenças serem relativas entre Norte e Sul, o modo de distribuição anual evidencia um paralelo onde regar é imprescindível na Europa mediterrânica, e onde regar é complementar na Europa continental, de clima temperado e onde a água abunda todo o ano.

E se a distribuição da água não é homogénea pelas características climáticas, tão pouco o são os usos: a água serve a agricultura no Sul através da rega e a produção de energia hidroelétrica no Norte.

Figura 1 – Setores económicos com maior pressão de captação de água na Europa, 2000-2022. (Fonte: Agência Europeia do Ambiente, 2023

Esta dicotomia reflete-se no volume da captação média da água pela agricultura, que na UE é de 59 000 hm3 por ano, sendo o Sul da Europa responsável por cerca de 50000 hm3 por ano, ou seja, mais de 84% do total. Valores que deixam bem expresso o quanto a agricultura do sul da Europa depende da água/rega devido ao clima mais quente e seco que se faz sentir na região.

Uma diferença igualmente presente a outros níveis, nas zonas temperadas onde as questões da qualidade da água se sobrepõem às da quantidade que presidem na zona mediterrânica, e dominam as preocupações com as cheias em vez das secas. E isto apesar de haver sempre regiões onde a exceção é a regra.

No momento do planeamento e das definições estratégicas, estas realidades não podem ser ignoradas. Há demasiados exemplos de insucesso na aplicação das políticas europeias, por não serem consideradas as realidades/especificidades de cada região ou sector. O resultado são situações extremas, como as vividas recentemente com o protesto dos agricultores europeus no início de 2024, um verdadeiro alerta dos campos e um sinal de que é preciso dar atenção aos contextos quando se fixam metas e políticas.

Também no que diz respeito à maturidade das políticas a aplicar, há “estados da arte” distintos entre Norte e Sul. Os patamares de eficiência alcançados no Sul da Europa, devido aos problemas crónicos de escassez do recurso água e da aplicação de novas técnicas e tecnologias, são substancialmente superiores aos do Norte da Europa, pelo que as metas a atingir têm de ser igualmente diferenciadas e devidamente adaptadas.

Atualmente, 84% dos sistemas de rega em Portugal são eficientes, o que reflete um forte compromisso com a sustentabilidade no setor agrícola. Esta evolução significativa permitiu uma redução de 42% no consumo de água ao longo dos últimos 20 anos, demonstrando o esforço contínuo na modernização e gestão responsável dos recursos hídricos.

Figura 2 – Evolução dos tipos de sistemas de rega (Dados: INE)


Ventos de mudança e esperança: água entra finalmente na agenda estratégica

Mas temos esperança num vento de mudança que parece ter-se levantando, com uma maior margem para implementação das políticas nacionais e regionais e onde Portugal se tem vindo a destacar pelo exemplo.

Também parece haver outra postura dos nossos governantes, que em setembro de 2024 exigiram que a água seja uma prioridade política e financeira na Europa. Portugal respondeu com a estratégia “Água que Une”, que reuniu os principais atores do setor para traçar uma estratégia revolucionária de investimento em recursos hídricos e um Plano Nacional da Água 2025-2035 que, a serem colocados em prática, transformarão por completo o nosso país.

A água entrou, finalmente, na agenda estratégica; mas as boas intenções não bastam! É necessário agir com urgência e determinação!

É urgente desbloquear financiamento, agilizar processos e priorizar investimentos, desde logo no cumprimento dos objetivos traçados de eficiência e modernização dos sistemas, mas reconhecendo a importância da resiliência, com o aumento da capacidade de armazenamento e a interligação entre bacias, de modo a aumentar os desejados níveis de garantia de água.

Neste sentido, cabe-nos a nós, organizações representativas do sector agrícola e da sociedade civil, exigir metas adaptadas à nossa realidade e o cumprimento das promessas e dos objetivos traçados a nível nacional, e europeu. Não podemos aceitar retrocessos na UE que ponham em causa décadas de esforço, nem políticas que tratem de forma igual o que é estruturalmente desigual.

Garantir água é garantir o futuro. E num mundo em permanente tensão, a resiliência começa por aqui. A Europa precisa de força, união e autossuficiência, em particular num momento tão delicado como aquele que vivemos. E isso começa por garantir o acesso à água — sem a qual nada floresce.

José Nuncio,
Presidente da Fenareg – Federação Nacional de Regantes de Portugal