O banco central dos Estados Unidos não alterou as taxas de juro na reunião desta quinta-feira mantendo-as no intervalo entre 4,25% e 4,5%, mas a decisão de manter a atitude de esperar para ver deixou de ser unânime no seio da Reserva Federal (Fed).

Dois membros do conselho de governadores, Michelle W. Bowman e Christopher J. Waller, votaram a favor de um corte de 25 pontos-base já nesta reunião e uma outra governadora, Adriana D. Kugler, esteve ausente. A divergência de Bowman e Waller era esperada, pois já se haviam pronunciado publicamente no sentido de que era a altura de cortar os juros. “Houve dois votos contra na decisão — algo bastante raro — sendo necessário recuar a dezembro de 1993 durante o mandato de Alan Greenspan para encontrar uma situação semelhante [de dupla dissidência no conselho de governadores]”, refere-nos Ricardo Nunes, que trabalhou no sistema da Fed durante dez anos..

O comunicado oficial salienta que “a incerteza continua elevada”, ao contrário de ter “diminuído” como se admitiu, com algum otimismo, na reunião de junho, e sublinha que a inflação mostra uma trajetória acima do objetivo de 2%. Em junho subiu para 2,7%. A Fed admite que a economia moderou no primeiro semestre, mas o desempenho do crescimento económico está fora do seu mandato. A taxa de desemprego continua baixa (4,1%), pelo que não exige uma intervenção de emergência. Jerome Powell, durante a conferência de imprensa que se seguiu à divulgação da decisão oficial, sublinhou que a política monetária da Fed ainda tem de se manter “modestamente restritiva”

A política monetária da Fed ainda tem de se manter “modestamente restritiva”, disse Jerome Powell, presidente da Fed

Economia não acelerou

O Departamento de Comércio dos EUA divulgou esta quinta-feira, antes do final da reunião da Fed, que a economia norte-americana não acelerou no segundo trimestre do ano, tendo crescido os mesmos 2% do que nos primeiros três meses do ano, em termos homólogos, em relação aos mesmos períodos do ano passado.

No entanto, no que se designa tecnicamente em cadeia, em relação ao trimestre anterior, a economia dos EUA saiu de uma quebra de 0,1% entre janeiro e março, devido a um disparo das importações que se anteciparam à vaga de tarifas, para um crescimento de 0,7% de abril a junho, impulsionado por uma quebra de 30% nas importações. Em termos anualizados, na métrica do Departamento de Comércio, a evolução em cadeia foi de uma quebra de 0,5% no primeiro trimestre para um crescimento de 3% no segundo trimestre.

A economia moderou, mas não se encaminha para a estagnação ou a recessão, pelo que a política monetária, no entender da maioria dos decisores da Fed, ainda deve permanecer um pouco restritiva a ver se a trajetória da inflação regressa a 2%.

Powell sublinhou, ainda, que o processo das tarifas ainda não está perto do fim. “Parece que ainda há muito mais para vir”, disse o presidente da Fed no dia em que Trump anunciou taxas de 25% para a Índia a partir de 1 de agosto e de 50% para o Brasil a partir de 6 de agosto, ainda que com 700 exceções.

A vaga de tarifas “não terá um impacto zero”, disse Powell, pois “os consumidores acabarão por pagar algo, bem como as empresas e os retalhistas”. “Mas temos de ver esse impacto, Temos de observar e aprender empiricamente quanto se vai refletir e durante quanto tempo”.

Neste quadro complexo, Powell acha natural que haja diferentes opiniões: “A economia está em boa forma. Mas é uma situação pouco comum em que há riscos tanto para o mandato de pleno emprego quanto para o mandato de inflação. Essa é a natureza de um choque pelo lado da oferta. E provavelmente não é surpreendente que haja diferenças e perspetivas diferentes sobre isso, assim como diferentes opiniões sobre onde se situará a taxa de juros neutra [que não é nem expansionista, nem restritiva] e, portanto, diferentes visões de quão apertada a política monetária está”.

Duas partes como num jogo de futebol

A complexidade de uma situação fora do comum que atravessa a economia norte-americana refletiu-se no próprio andamento da conferência de imprensa de Powell. "A conferência de imprensa teve quase duas partes, como num jogo de futebol, com histórias distintas”, adianta Ricardo Nunes, atualmente professor na Escola de Economia na Universidade de Surrey, no Reino Unido.

“Num primeiro momento, Powell reconheceu que a política monetária está algo restritiva, o que poderia indiciar que uma descida da taxa de juro poderá estar para breve, salvo uma surpresa nos dados. Mas, mais tarde, na segunda parte, clarificou que os dados atuais apontam para um mercado de trabalho equilibrado — ou seja, a fraqueza da produção não é evidente — e que, de facto, a inflação continua demasiado elevada. Assim, considerou desejável ter uma política monetária algo restritiva neste momento”, refere o economista.

"Os mercados de futuros reagiram a estas duas partes do discurso. A certa altura, atribuíram uma probabilidade mais elevada a uma descida da taxa já em setembro; mas, mais adiante, essa probabilidade estabilizou em torno dos 50% ficando quase igual ao cenário de manutenção da taxa de juro", salienta Ricardo Nunes.

“Ainda assim, ficou patente uma maior abertura a uma eventual redução num futuro próximo — algo que já era antecipado há alguns meses, independentemente dos comentários recentes de Trump. Se formos por aí, prevejo que a evolução dos dados de inflação e produção continuará a gerar sinais contraditórios quanto à direção da taxa de juro. No entanto, será dado um pouco mais de atenção ao abrandamento económico, ou ao facto de a inflação, embora elevada, não disparar. Estaremos, assim, potencialmente perto de uma redução da taxa de juro”, conclui o especialista em política monetária.

Será dado [nos próximos meses] um pouco mais de atenção ao abrandamento económico, ou ao facto de a inflação, embora elevada, não disparar. Estaremos, assim, potencialmente perto de uma redução da taxa de juro, salienta Ricardo Nunes

Powell, por seu lado, não antecipou qualquer orientação que tenha sido discutida, pelo que o suspense vai permanecer até 17 de setembro. A não ser que Jerome Powell surpreenda durante a Conferência anual da Fed em Jackson Hole de 21 a 23 de agosto.

Powell sai em maio, sem satisfazer objetivos de Trump

A Reserva Federal (Fed) desde dezembro do ano passado que não corta os juros. Resiste desde o início do mandato do presidente Donald Trump há pressão política da nova Administração para baixar os juros.

O mercado de futuros das taxas da Fed projetam dois cortes este ano (nas reuniões de 17 de setembro e de 10 de dezembro) e mais um corte em março do próximo ano, segundo a CME Fed Watch Tool. A última descida até à saída de Powell da presidência em maio. Com os juros atualmente no intervalo entre 4,25% e 4,5%. Powell deixaria o lugar daqui a dez meses com a taxa entre 3,5% e 3,75%, não completando sequer um corte de 100 pontos-base (1 ponto percentual), desde a tomada de posse de Trump. Em junho, o presidente norte-americano reclamou que a Fed fizesse, de imediato, uma descida de 1 ponto percentual nos juros. "Dê um corte completo de um ponto, Combustível para foguetão!”, escreveu o presidente na sua rede social.

A persistência de Trump pode ser um tiro no próprio pé, diz-nos Rhys Bidder, professor no King's College London e na King's Business School, em Londres. O especialista em política monetária refere-nos “que o que surpreende em relação ao tratamento dado por Trump a Powell é que, de muitas formas, o presidente norte-americano parece agir contra os seus próprios interesses. A política monetária atua com algum desfasamento. Deste modo, qualquer benefício para a economia por parte de taxas de juros mais baixas, que Trump possa querer reivindicar a seu crédito político, provavelmente só se materializará (se é que se materializará) tardiamente neste seu presumido último mandato”. “Mas, os efeitos negativos, em termos de aumentos imediatos nos juros da dívida federal dos EUA e na expectativa de uma inflação mais alta, parecem propensos a acontecer rapidamente. Esses efeitos negativos podem ser especialmente graves, em virtude de uma crescente opinião de que tanto o dólar quanto a posição orçamental dos EUA já estão em risco. Ou, pelo menos, enfrentam grandes obstáculos estruturais”, prossegue o professor britânico que foi economista do Banco da Reserva Federal de San Francisco, nos Estados Unidos.

O que surpreende em relação ao tratamento dado por Trump a Powell é que, de muitas formas, o presidente norte-americano parece agir contra os seus próprios interesses, refere ao Expresso Rhys Bidder, economista que trabalhou na Reserva Federal de São Francisco

“Tradicionalmente, os EUA sempre tiveram mais espaço orçamental, mas mesmo que haja alguns fatores teóricos de compensação, existe um perigo real de que, ao interferir na Fed e contra Powell, a Administração norte-americana possa minar a credibilidade de uma inflação baixa e estável em um momento particularmente delicado. Se isso acontecer, tanto os EUA quanto o próprio Trump sairão a perder”, conclui Rhys Bidder.

FMI dá uma mão a Powell

O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê que a Fed decida dois cortes de juros até final do ano no decurso do segundo semestre, mas reforçou as razões pelas quais a equipa de Jerome Powell fez bem em manter uma pausa nos primeiros seis meses de mandato de Trump.

Na atualização intercalar das suas previsões de abril, publicada na terça-feira, o FMI aponta, direta ou indiretamente, para cinco ‘argumentos’ a favor da cautela da Fed, mesmo apesar das pressões da Administração e dos insultos sistemáticos de Trump a Jerome Powell.

A economia norte-americana vai crescer mais em 2025 e 2026 do que o previsto nas projeções de abril do FMI que se baseavam num cenário de tarifas recíprocas muito elevadas. Os economistas do Fundo corrigiram, agora, em alta o crescimento económico esperado nos EUA: 1,9% este ano, em vez de 1,8% na previsão de há quatro meses, e 2% no próximo ano, mais três décimas de crescimento do que o avançado em abril. A economia dos EUA está em desaceleração em relação a 2023 (2,9%) e 2024 (2,8%), mas não a caminho de uma estagnação ou recessão que requeira do banco central uma política monetária de emergência. E, no próximo ano, receberá um impulso da nova lei orçamental, conhecida por “Grande e maravilhosa” (OBBBA, na sigla em inglês) promulgada por Trump a 4 de julho. "O crescimento está projetado para aumentar ligeiramente para 2,0% em 2026, com um impulso no curto prazo vindo da OBBBA, que funciona principalmente por meio de incentivos fiscais para investimento empresarial. A equipa do FMI estima que a OBBBA poderá aumentar a produção dos EUA em cerca de 0,5% em média ao longo do horizonte do World Economic Outlook até 2030, em relação a um cenário-base sem esse pacote orçamental", refere o relatório do FMI.

A inflação norte-americana vai manter-se acima do objetivo de 2% da política monetária da Fed ainda durante 2026, requerendo do banco central cautela nas descidas de juros. “Enquanto a inflação mundial continua a diminuir, os dados mais recentes de preços indicam que as pressões inflacionistas estão a aumentar gradualmente nos Estados Unidos”, acentua o FMI, que salienta ainda: “Nos Estados Unidos, a inflação subiu um pouco, com sinais iniciais de se estarem a repercutir as tarifas e o dólar mais fraco nos preços no consumidor em algumas categorias sensíveis à importação, e nos custos de bens intermediários para os fabricantes”.

Enquanto a inflação mundial continua a diminuir, os dados mais recentes de preços indicam que as pressões inflacionistas estão a aumentar gradualmente nos Estados Unidos, alerta o FMI

A já referida nova lei orçamental “grande e maravilhosa” vai ter um impacto na trajetória orçamental e da dívida federal que deve colocar o banco central em alerta. O défice federal vai aumentar 1,5 pontos percentuais em 2026 acima do previsto, adianta o FMI, o que faz regressar o desequilíbrio nas contas federais aos níveis de 2023 e 2024 em torno de 7% do PIB. Essa trajetória pode levar “a uma subida dos prémios de risco e, especialmente no caso dos Estados Unidos, apertar as condições financeiras globais. Um aumento nos prémios de risco dos EUA impulsionado por preocupações com a sustentabilidade orçamental também pode tornar os mercados financeiros excessivamente voláteis, especialmente se interagir com preocupações sobre a fragmentação geoeconómica e o futuro do sistema monetário internacional centrado no dólar”.

A desvalorização do dólar é outra variável que o banco central monitoriza ainda que não tenha qualquer mandato no campo da gestão cambial. O índice global do dólar face a uma cabaz das principais divisas das economias desenvolvidas (euro, iene japonês, libra esterlina, dólar canadiano, coroa sueca e franco suíço) já caiu 9% este ano, a maior queda do dólar em cinco décadas. Em relação ao dólar, a moeda única europeia valorizou-se 12% desde início do ano. Trump disse, recentemente, que gostava de um dólar forte, mas que um dólar fraco, como é a situação atual, ajuda a “ganhar muito dinheiro”. O FMI alertou esta semana para os riscos: “Alguns investidores apontam fatores estruturais que impulsionam a depreciação do dólar, incluindo mudanças no direcionamento de investimentos para fora dos títulos de dívida dos EUA, embora os dados atuais sobre fluxos de capitais transfronteiriços não indiquem ainda uma retirada generalizada. O aumento da proteção (hedge) contra a fraqueza do dólar, decorrente das preocupações dos investidores com possíveis mudanças na proteção de risco da moeda americana, contribuiu em parte para a sua depreciação. No entanto, ainda é incerto, neste momento, se essa mudança na perceção sobre a proteção contra riscos da moeda será temporária ou mais duradoura”.

Para enfrentar este risco, Scott Bessent, o secretário do Tesouro avançou, no início deste mês, com a ideia de aumentar a colocação de dívida de curto prazo até que Jerome Powell seja destituído ou renuncie. Depois, quando alguém de confiança do presidente assumir a presidência da Fed, as taxas de juros do banco central cairão significativamente e o Tesouro então garantirá taxas mais baixas para voltar a dar prioridade a empréstimos de longo prazo para financiar as necessidades orçamentais.

Finalmente, o FMI juntou-se às vozes da comunidade dos bancos centrais em defesa da independência da política monetária: "Em países que impõem tarifas a parceiros comerciais — seja lançando-as ou retaliando — essas ações constituem choques na oferta. Assim, os bancos centrais desses países enfrentam um difícil dilema entre proteger o setor da economia real ou evitar que o aumento pontual esperado dos preços se transforme em uma inflação persistentemente mais alta. Esse dilema torna-se ainda mais relevante se a inflação já estiver acima da meta [como é o caso dos EUA)".

Um novo alívio da política monetária, deve depender de evidências convincentes de que a inflação e as expectativas de inflação estão, de forma decisiva, no caminho, de regresso para a meta [da política monetária], sublinha o FMI

E acrescenta: “Por isso, um novo alívio da política monetária, deve depender de evidências convincentes de que a inflação e as expectativas de inflação estão, de forma decisiva, no caminho, de regresso para a meta [da política monetária]. Por outro lado, os países que não impuseram tarifas enfrentam um choque de procura. Nesses casos, os bancos centrais podem, gradualmente, reduzir a taxa de juros”.