Uma das vantagens da tecnologia é a profunda imersão que nos permite, num qualquer contexto, época ou história distante. Seja mergulhar dentro de um quadro de Van Gogh através de uma projeção 360, viajar pelas ruas da Roma antiga em realidade aumentada, ou descobrir os mais de 5.000 artefactos encontrados no túmulo de um rei egípcio. É fascinante quando usamos as descobertas dos nossos tempos para ampliar o conhecimento de séculos e milénios passados.

A exposição imersiva de Tutankhamon que visitei recentemente em Londres (Tutankhamun: The Immersive Exhibition, Excel London), permitiu-me não só fazer uma viagem bem-sucedida ao antigo Egipto, como também relativizar ou trazer alguma normalidade à transformação que atualmente nos absorve - de dados, de Inteligência Artificial (IA), de tecnologia.

Não dirão todas as pessoas que já passaram por uma grande transformação que essa foi, sem dúvida, a maior de todas? Dizendo-o sempre com um saco cheio de bons argumentos e fatores de diferenciação face às anteriores — porque transformou massivamente uma economia agrária em industrial, porque eliminou milhares de empregos, porque espalhou ideias de liberdade, porque acelerou a globalização... mas será que não continuamos a ser apenas o ser humano curioso, inteligente e engenhocas, que dá uns saltos quânticos de vez em quando? Ora vejamos de seguida, através das cinco ideias partilhadas, como é que o futuro nos pode remeter ao passado, quando temos objetivos semelhantes mas ferramentas diferentes.

#1 Vida digital após morte física: A ‘imortalidade’ na era da IA

Para os antigos egípcios da época de Tutankhamon, a morte não era um fim, mas uma passagem essencial para a vida eterna. A preparação para essa transição era meticulosa, espiritual e profundamente simbólica. O túmulo de Tutankhamon, descoberto quase intacto em 1922, oferece um retrato impressionante dessa visão: mais de 5.000 artefactos cuidadosamente organizados para garantir ao jovem faraó proteção, conforto e status no além. Entre eles, encontravam-se amuletos, estátuas, mobiliário, carruagens, armas e até comida — tudo pensado para acompanhá-lo e servi-lo na sua jornada após a morte.

Atualmente, embora a morte continue a ser um ponto de viragem absoluto, a IA permite-nos deixar um vasto legado digital. Vivemos numa era em que cada fotografia, mensagem trocada ou vídeo gravado podem restituir e manter para sempre a nossa memória. Toda esta informação de quem fomos em vida – o que diziamos, escreviamos, faziamos, pode alimentar a criação, por exemplo, de um "bot memorial", recriando as nossas respostas e possíveis interações através dos tempos. Podcasts, blogs, playlists, álbuns de fotos ou mesmo um perfil de LinkedIn podem sobreviver-nos e contar a nossa história. Se para os egípcios a sobrevivência da alma passava por proteger o corpo e o nome no túmulo, hoje preservamos a nossa identidade em servidores e na memória coletiva da internet — o novo sarcófago do século XXI.

#2 Realidade à medida: A personalização extrema

A descoberta do túmulo de Tutankhamon revela-nos não apenas a opulência do antigo Egipto, mas também o cuidado extremo com a personalização. Tudo no túmulo era feito à medida do faraó: desde os tronos gravados com cenas da sua vida íntima, aos amuletos talhados com o seu nome, até aos modelos de barcos e armas que refletiam o seu gosto e estatuto. Uma eternidade construída à imagem do próprio rei, onde nada era genérico, tudo tinha intenção, função e identidade.

Hoje, a necessidade de customizar um produto, um serviço ou uma experiência ganhou uma nova dimensão com esta capacidade de customização digital extrema. Imagine ver um filme em que pode substituir uma das personagens por si próprio/a, alterar o enredo a seu gosto, ou até reescrever o desfecho de uma história clássica. Com a evolução da inteligência artificial generativa, o conteúdo de entretenimento torna-se uma tela em branco, completamente à disposição da nossa criatividade.

#3 A nova escavação e os agentes de IA

Howard Carter passou anos a escavar no deserto, movido por uma convicção profunda: de que algo extraordinário o aguardava sob a areia do Vale dos Reis. Contra todas as expectativas, e após sucessivas tentativas frustradas, foi a sua persistência que o levou, à descoberta do túmulo de Tutankhamon: intacto, magnífico, transformador.

Hoje, essa mesma vontade insaciável de descobrir o que está por vir leva-nos a escavar em novos territórios - não de pedra, mas de código. E no centro desta nova fronteira tecnológica estão os chamados Agentes de IA: sistemas capazes de agir de forma autónoma, com memória, capacidade de decisão e aprendizagem contínua. Um agente de IA não é apenas um assistente reativo - é um sistema que observa, interpreta e executa tarefas complexas com o mínimo de supervisão. Pode, por exemplo, planear e executar um projeto de investigação completo, realizar diagnósticos médicos personalizados, ou coordenar cadeias de logística em tempo real. Pode lembrar-se do que fez no passado, adaptar-se ao utilizador, corrigir erros, e até decidir parar ou mudar de estratégia.

#4 Dar futuro ao passado: A IA ao serviço da herança cultural

Ao esconder o seu túmulo no deserto escaldante do Vale dos Reis, os antigos egípcios queriam proteger não apenas o corpo de Tutankhamon, mas toda uma herança de símbolos, crenças, objetos e histórias. E, de certa forma, conseguiram: mais de 3.000 anos depois, o mundo ainda se deslumbra com o que deixaram para trás.

Ao longo da história, vários pedaços de conhecimento humano, tradições, rituais e línguas desapareceram com o tempo, a erosão natural, as catástrofes, a colonização, os conflitos armados ou simplesmente do esquecimento silencioso entre gerações.

Contudo, temos uma nova e poderosa guardiã da memória coletiva: a Inteligência Artificial. Com a sua capacidade de processar, reconstruir, traduzir, gerar e preservar conhecimento, a IA oferece-nos meios inéditos para salvar culturas, línguas, rituais e património material e imaterial com um detalhe e fidelidade sem precedentes.

Línguas em risco de extinção podem ser digitalmente documentadas, recriadas e ensinadas. Objetos podem ser recriados em 3D, permitindo visitas imersivas a museus ou sítios arqueológicos a partir de qualquer ponto do mundo. Textos antigos, fragmentados ou ilegíveis, podem ser reconstruídos com algoritmos de linguagem. E histórias orais, passadas de geração em geração, podem ser gravadas, interpretadas e até contadas por avatares de IA, mantendo vivo não só o conteúdo, mas também o tom, o ritmo e a emoção com que eram transmitidas.

#5 O dom da ubiquidade: Como a IA nos multiplica

Durante séculos, estar fisicamente presente foi condição para liderar, ensinar, influenciar ou simplesmente fazer parte. A presença era limitada pelo corpo, pelo tempo e pelo espaço. Mas hoje, graças à Inteligência Artificial, vivemos uma transformação radical: a capacidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo deixou de ser um mito e tornou-se uma ferramenta real de comunicação, gestão e presença emocional.

Já temos diretores de empresas que utilizam avatares realistas para aparecerem em simultâneo em diferentes equipas e fusos horários. CEO's geram vídeos personalizados, criados automaticamente por IA, com linguagem adaptada a cada público - seja para motivar colaboradores, acolher os novos talentos ou apresentar resultados. As professoras podem ensinar em tempo real em múltiplas línguas, com tradução instantânea, ou até criar clones digitais de si mesmas que continuam a explicar, responder e interagir mesmo após a aula ter terminado.

A Inteligência Artificial não é apenas uma ferramenta de construção do futuro - é um espelho sofisticado da nossa humanidade e vontades mais profundas: deixar a nossa marca no mundo, personalizá-lo à nossa medida, explorar o desconhecido, preservar o que somos e multiplicar a nossa presença.