
Com quase 80 anos, Sérgio Godinho volta a lançar mais um livro de contos. Desta vez, o artista reuniu 15 histórias ligadas ao tema do suicídio, com personagens "atraídas pelo abismo".
'Como se não houvesse amanhã – histórias suicidas' chegou às livrarias, mesmo a tempo das leituras de férias de verão.
O Notícias ao Minuto esteve à conversa com o artista, que confessou que "não tem nenhum impulso suicida", mas que acha o tema "interessante e importante".
Mas engana-se se pensa que Sérgio Godinho passou os últimos tempos apenas a escrever estes contos. Além desta "empreitada", o músico também já está a pensar num novo disco e continua com os concertos ao vivo.
Em breve, será homenageado na Feira do Livro do Porto, onde também vai apresentar o novo livro e dar um concerto com a sua banda, Os Assessores.
Lançou recentemente o livro 'Como se não houvesse amanhã – Histórias Suicidas'. Por que quis escrever contos sobre suicídio?
Desde já quero esclarecer que não tenho nenhum impulso suicida, mas acho que é um tema que é interessante dramaturgicamente e, em termos de histórias de vida, não só é interessante como importante. É uma decisão sobre a nossa própria vida. Em duas das histórias, os suicídios nem sequer são consumados, mas é um assunto que está presente. Acho que é um assunto que dá muitas narrativas, na medida em que é também uma solução solitária, muitas vezes final e muitas vezes sem ser compreendida pelos outros. Interessou-me isso como tema que une as histórias, embora elas sejam muito diferentes umas das outras. E não são histórias mórbidas nem deprimentes.
E o último conto é espelho disso mesmo…
Sim, se calhar nem devia estar a dizer isto [risos] mas, curiosamente, a última história é de uma esperança que se reacende. Não há suicídio consumado. De qualquer maneira, queria voltar a escrever contos. Tinha já um livro de contos e depois três romances seguidos – acabava um e começava logo a trabalhar noutro – e quis voltar aos contos porque tinha necessidade de desenvolver personagens muito diferentes, que não fariam sentido numa única história. São histórias independentes, não têm que ver umas com as outras, exceto este tema comum.
Todos queremos que os nossos trabalhos sejam bem aceites e a rejeição, muitas vezes, pode ser traumática. Eu, da minha parte, procuro que não seja, mas pode ser para algumas pessoas. Pode fazer alguma mossa
Estudou psicologia antes de ingressar pelo mundo das artes. Essa experiência influenciou-o a escrever sobre este tipo de temas?
Não, não. Acho que estas histórias não são muito psicologistas. Muitas vezes, estes impulsos suicidas não são explicáveis. É da própria pessoa. Uma espécie de atração, atração do abismo. Mas não quis muito ir por uma explicação do foro psicológico. Não falo, por exemplo, de amores infelizes, que podem potenciar o suicídio ou coisas dessas. É menos explicável e eu gosto que seja assim. Há um conto em que a personagem feminina diz, precisamente, que ninguém à volta, nem as amigas, nem o filho, iam compreender, mas precisava de fazer aquilo.
Já disse que não tem nenhum impulso suicida, mas foi buscar inspiração a algum caso seu conhecido? Há registo de vários casos no mundo das artes…
Sim, há dois ou três em que, muito indiretamente, podem ter sido influenciados. Há um que fala de um ator com muito sucesso mas que tem sempre medo de que o próximo trabalho traga um fracasso. Essa angústia é real. Não é que alguém se vá suicidar por isso, mas todos queremos que os nossos trabalhos sejam bem aceites e a rejeição, muitas vezes, pode ser traumática. Eu, da minha parte, procuro que não seja, mas pode ser para algumas pessoas. Pode fazer alguma mossa. Há também um conto, que se chama '17 facadas no ciúme'. Acho que muitas vezes, gente muito nova, jovens adultos ou em fim de adolescência, aguentam mal a rejeição. Quando alguém acaba um assunto amoroso, essa rejeição é muito mal sentida, dando origem até a crimes - que é o caso neste conto -, porque é insuportável viver essa rejeição. Acho que tem de se aprender a viver também com essa rejeição. A vida é tão complexa, feita de momentos e contradições. De novos caminhos que se abrem. É difícil, mas necessário.
Desde há muito tempo que procuro escrever quase todos os dias
Acha que há falta de apoios em Portugal para cuidarmos da nossa saúde mental?
Acho que hoje em dia começa a haver estruturas para isso. Mas é sempre insuficiente.
Escreveu estes contos todos de uma assentada só ou já alguns já estavam na gaveta?
Não havia nada na gaveta, mas também não foram todos escritos de uma assentada, foram várias assentadas. Foi uma empreitada [risos]. Não foi de uma assentada porque não saiu em jato. Tem trabalho, revejo muito. Desde há muito tempo que procuro escrever quase todos os dias. Não pode ser todos os dias porque tenho espetáculos também. E outras coisas de que gosto, mas procuro escrever com frequência e, nesse aspeto, foi um trabalho contínuo.
Em que momentos se sente mais inspirado?
À noite, fim de tarde, se já tiver uma coisa mais em andamento. Gosto de me sentar em frente ao computador e saber que não há mais interferências. Pode haver um telefonema mas... quer dizer, nessa altura, não tenho de ir ao banco, fazer compras [risos]. A noite é algo que parece não ter fim, apesar de não ser um noctívago, não trabalho horas e horas sucessivas.
Gosto de mudar de 'chip', embora a música nunca quero deixar e estou a começar a trabalhar, devagar, num novo disco
Em breve vai ser homenageado na Feira do Livro do Porto, pelo seu contributo para Cultura portuguesa. A sua cidade natal e, precisamente, em agosto, mês em que celebra 80 anos. Que sentimentos lhe traz esta homenagem?
Penso que não foi pelo facto de fazer 80 anos que me quiseram homenagear [risos]. Mas fico contente por ser homenageado na minha cidade. Bem… já nem sei de que cidade sou, para dizer a verdade. Vivi no estrangeiro e vivo há tantos anos em Lisboa [risos]. Não, sei sim, sei que a minha raiz é no Porto. O facto de fazer 80 anos no final de agosto, acho que foi uma coincidência em relação a esta vontade de me homenagear, que tiveram e que me deixa muito contente.
No dia 23 de agosto ser-me-á atribuída uma tília, com uma frase minha, que eu escolhi, de uma canção. No dia 30, haverá a apresentação deste livro, o 'Como se não houvesse amanhã' e, a 7 de setembro, no dia de encerramento da Feira do Livro, haverá um espetáculo comigo, com a minha banda. Mas pode ser que ainda haja mais alguma coisa.
Portanto, quase 80 anos, mais de 50 dedicados às artes. Da música à literatura, passando por guiões de cinema e peças de teatro, há alguma coisa que ainda lhe falta fazer?
Essa é uma pergunta clássica [risos]. E não tenho muita resposta para isso. Não sei se gostaria de escrever alguma coisa para teatro, mas não tenho a certeza que consiga. Fiz uma peça infantil há muitos anos. Até foi premiada, foi muito representada. Mas não sei se me queria lançar novamente nisso. Não sei. Fiz muitas coisas. Gosto de mudar de 'chip', embora a música nunca quero deixar e estou a começar a trabalhar, devagar, num novo disco.
Olhe esta história da Joana Marques e dos Anjos. Isso mostra o quanto o humor pode ser involuntariamente uma arma de arremesso, porque acho isto um disparate por parte dos Anjos
E já há data para esse novo disco?
Para o ano. Estou a começar a escrever, mas ainda vai demorar. É prematuro falar sobre isso.
Os seus primeiros discos, lançados em França, foram proibidos em Portugal pela censura. 50 anos depois, acha que corremos o risco de voltar a ver algumas músicas (e não só) serem 'riscadas' pelo lápis azul?
Houve um que foi retirado após ganhar um prémio, mas não foram retirados assim de chofre. Houve uma altura, do Marcelismo, em que a própria censura já não sabia o que fazer consigo mesma [risos]. Não tinham a coerência. Mas não, acho que não corremos esse risco. Não sabemos como é que é o futuro. Olhe esta história da Joana Marques e dos Anjos. Isso mostra o quanto o humor pode ser involuntariamente uma arma de arremesso, porque acho isto um disparate por parte dos Anjos.
Por fim, o que anda a ouvir e ler neste momento? Há alguém que gostaria de destacar?
Há uns dias esteve cá a Ana Lua Caiano – cujo trabalho eu já conhecia – mas trouxe os discos todos dela. É alguém com uma visão original. Também tenho trabalhado muito com a Garota Não, que é muito talentosa e traz uma visão própria.