
Entrevista a Joana Mortágua, candidata do Bloco de Esquerda. Desde 2015 que ocupa o cargo de Deputada na Assembleia da República e este ano volta a candidatar-se por Setúbal. Diz que o maior contributo do BE para o Distrito foram as recomendações para a construção de escolas e hospitais na região.
Nasceu no Distrito de Beja, mais concretamente em Alvito. Como foi crescer no Alentejo?
Eu vim do Alvito para Lisboa com 18 anos, quando fui para a faculdade. É uma experiência completamente diferente porque não é uma experiência urbana. Ainda por cima eu não vivia na vila, vivia mesmo no campo. Na minha infância o meu pai foi agricultor, por isso tive a experiência de viver da agricultura e dos animais. Isso deu-me uma perspectiva sobre o mundo e sobre a vida que é diferente daquela de quem vive na cidade. Mas também me deixou crescer em segurança e em liberdade e portanto também ganhei noções de autonomia que o campo permite.
Não trocaria esta infância por outra em que tivesse acesso a mais coisas, mas ao mesmo tempo não tinha acesso àquilo que os miúdos na cidade tinham, cinema à disposição, discotecas, bares, acesso à cultura. Só fazia isso de férias em Lisboa com a minha avó.
Antes de se envolver no Bloco de Esquerda qual foi o seu primeiro contacto com a política?
O meu primeiro contacto com a política partidária é com o Bloco, eu nunca tive interesse por outros partidos. Até lá eu interessava-me muito por trabalho associativo na área dos direitos humanos, do feminismo, do ambiente, era muito o trabalho associativo.
Dar o salto para o Bloco foi natural quando percebi que havia um partido que se encaixava perfeitamente nas minhas ideias sobre o meu ativismo, no conjunto das ideias que fui acumulando ao longo da minha juventude sobre as grandes questões da sociedade. Eram coisas sobre as quais já tinha algum pensamento e que se encaixou perfeitamente.
E o seu primeiro contacto com o Bloco de Esquerda?
Foi na faculdade. Eu tinha uma colega no primeiro ano que era do Bloco e com quem eu falava de política e que me convidou para começar a participar. Depois, no ativismo estudantil, isso acabou por se tornar natural.
Pode falar um pouco do seu percurso profissional antes de ser eleita deputada?
Eu tenho uma trajetória muito anos à anos setenta, uma trajetória de militância política obsessiva. A partir do momento em que eu entrei para o Bloco a política transformou-se numa obsessão a tempo inteiro, sobretudo a militância e o ativismo. No último ano da faculdade arranjei um trabalho em part-time para pagar as propinas e às tantas a pessoa que me empregou disse-me, “vai para o Bloco porque a tua cabeça está lá, não é aqui que está a tua cabeça”.
Era verdade, a minha cabeça estava no ativismo político, na organização distrital, na organização concelhia, no trabalho autárquico. Acabei por viver isso tão intensamente que acabei por ir trabalhar para o Bloco a tempo inteiro e desde então é isso que faço. Enquanto eu puder fazer política a tempo inteiro, que é aquilo que eu gosto de fazer, assim o farei. Quando outras oportunidades aparecerem, acho que estará sempre ligado a isto, mas veremos. Não o vejo como uma profissão mas é uma atividade à qual me dedico muito.
Outros partidos têm documento com propostas e um programa específico para o Distrito de Setúbal, mas o Bloco de Esquerda não. Qual é a visão do Bloco para a nossa região?
Nós temos muitas propostas que fomos construindo ao longo do tempo e elas encaixam-se muito bem no programa nacional do Bloco, por isso, não sentimos a necessidade de fazer um programa regional porque é algo que surge instintivamente. Este Distrito tem um perfil industrial e é um erro vergar o distrito a uma dinâmica nacional de dependência do turismo, devíamos apostar no nosso perfil industrial.
A nossa intervenção parlamentar centrou-se em recomendar ao Governo construções de escolas, lembro-me agora da emblemática Escola da Quinta do Conde ou a de Charneca da Caparica-Sobreda, sobretudo escolas secundárias. Também na saúde, apontamos a falta de médicos e ainda consideramos que o Hospital Garcia da Horta está subdimensionado.
Quem tem falhado ao Distrito de Setúbal não são os deputados mas sim os governos do Partido Socialista e do Partido Social Democrata, os deputados desses partidos são submissos aos governos de turno e portanto é preciso deputados rebeldes que possam fazer valer os interesses do Distrito.
Nas Legislativas de 2022 o Bloco de Esquerda perdeu uma deputada no Distrito de Setúbal e perdeu metade dos seus eleitores, deixando a Joana como a única eleita do Bloco neste círculo eleitoral. Que análise fazem desta perda de representação?
Nós vemos uma dinâmica mundial de crescimento da extrema-direita que vem de uma desilusão geral das pessoas com a democracia e com as respostas democráticas. Esse sentimento combate-se com esperança, propostas e luta. Temos de disputar uma classe trabalhadora que se vê atraída por um discurso mais conservador e que vai mais ao encontro dos nossos instintos primários em tempos de dificuldade, temos de combater isso com muita esperança.
A diversidade à esquerda sempre reforçou a esquerda como um todo e nunca prejudicou as possibilidades da esquerda governar. Esta é uma mensagem importante contra o voto útil, para quem quer tirar a direita do governo. A dispersão de votos à esquerda o que faz é dar força à esquerda para impor as suas ideias, principalmente impor estas ideias ao Partido Socialista.
A Joana falou de um Distrito de Setúbal com um perfil mais industrial. Pergunto-lhe se considera que o Bloco de Esquerda é prejudicado por ter um perfil mais identitário num Distrito onde as condições materiais e o trabalho têm um grande peso na vida das pessoas?
Nós tivemos de saltar na defesa dos que estavam a ser atacados pelo conservadorismo e basta ver os casos recentes de violações e de discursos tradicionalistas em relação à mulher, tudo isso tem a ver com o crescimento da extrema-direita. Nessa circunstância o Bloco de Esquerda levantou-se, a única coisa de que não abdicamos é a luta pela liberdade.
Isso não quer dizer que se abandone um pensamento estruturado sobre os direitos de quem trabalha. A industrialização da região, se for feita com critério e estratégia, com formação profissional e ligada a uma política de transição industrial ambiental, permite ter no Distrito uma classe trabalhadora com um salário acima da média. Há milhares de pessoas a trabalhar por turnos no Distrito de Setúbal, são pessoas que têm a vida virada ao contrário e que não vêem o reconhecimento desse trabalho. Nós defendemos um subsídio obrigatório de 30% e ainda o acesso à reforma antecipada para quem trabalha por turnos.
Aqui no Distrito de Setúbal as pessoas queixam-se das portagens nas autoestradas, principalmente em distâncias curtas, entre Setúbal e Palmela ou entre Lisboa e Almada. O Bloco costuma ser mais a favor da redução de circulação dos automóveis, consideram estas portagens uma medida ambiental importante?
Os fundadores do Bloco vêm do tempo do bloqueio na ponte, durante o Governo de Cavaco Silva. As portagens transformaram-se em taxas adicionais sobre trabalhadores que têm de se deslocar, principalmente os que foram expulsos da cidade para subúrbios pouco servidos de transportes. Esse tempo é também salário não pago e que, no fundo, já faz parte do seu horário de trabalho e é por isso que insistimos tanto nas questões de mobilidade.
As portagens são um abuso, principalmente quando fazem parte de contrato de rapina com PPPs, como é o caso da 25 de abril, principalmente quando não há uma política de transportes públicos. Só se aceita uma política de portagens para retirar carros das estradas quando há uma boa política de transportes públicos. É absurdo que uma pessoa para ir do Barreiro para Almada tenha de passar por Lisboa, a triangulação por Lisboa é um sinal de que os transportes só estão feitos para levar as pessoas para o trabalho. Se as pessoas quiserem ir ao teatro, visitar a família ou ir ao Hospital, o transporte já não serve.
Sobre saúde, o governo cessante anunciou que vai avançar com a transferência de competências em vários Centros de Saúde do Distrito de Setúbal e no Hospital Garcia da Horta e passar a uma gestão em regime de parceria público-privada.
Qual é a posição do Bloco sobre esta questão e que propostas têm para a área da saúde no Distrito de Setúbal?
Para além da construção do Hospital do Seixal e da recuperação de alguns centros de saúde um pouco por todo o Distrito, sabemos que há muitas infraestruturas que não têm médicos. No último concurso do Governo não abriram vagas nem para o Litoral Alentejano nem para a Unidade de Saúde Familiar de Almada-Seixal, no concurso anterior só tinha aberto uma vaga.
Este Governo é absolutamente incompetente para tratar do Serviço Nacional de Saúde e nem quer, porque o projeto deste Governo é entregar a saúde aos privados. Temos de ter a noção de que este preconceito ideológico contra o SNS vai fazer com que o acesso aos cuidados de saúde se vão degradando ao longo do tempo.
Neste momento o Hospital Garcia da Horta já depende de tarefeiros para funcionar. Estes tarefeiros cobram entre 50€ a 80€ por hora, um médico de carreira no SNS cobra entre 13€ e 15€ por hora, estamos a desperdiçar recursos, centenas de milhões de euros apenas em prestação de serviços. No dia em que estivermos nas mãos dos privados eles vão fazer o mesmo e por isso vamos só há uma maneira de fazer isto, aumentar salários para atrair profissionais de saúde no SNS.
Relativamente à habitação, vive-se no Distrito de Setúbal um cenário em que os valores médios das rendas estão cada vez mais próximos dos preços praticados em Lisboa. Tem-se noticiado situações de ocupações ilegais ou até de igrejas evangélicas que se aproveitam para lucrar com a carência habitacional.
Quais são os planos do Bloco para enfrentar esta situação de crise?
Há quem ache que o problema é as pessoas abrigarem-se em edifícios abandonados, eu acho que o problema é as pessoas não terem casa. Portanto, quem disser que isto é um ato de criminalidade certamente não vai resolver o problema da habitação, porque essa pessoa trabalha para especuladores e para proprietários. Não acho que exista uma vaga de ocupações, mas sim uma vaga de pessoas que estão a ficar sem casas.
Com a crise habitacional que temos não pode haver um edifício municipal vazio e nenhuma habitação por atribuir. Do ponto de vista do Governo tem de haver controlo às rendas, vemos pessoas que vivem na rua e que trabalham, a sobrelotação não é culpa de quem vive em sobrelotação, é culpa dos senhorios que, para acumularem mais rendimentos a partir de sua casa, não se importam de alugar uma casa a 20 pessoas. Só aceita este negócio quem está em situação de desespero. Defendemos o controlo do alojamento local, um teto às rendas e o fim de todos os benefícios fiscais que beneficiam a especulação imobiliária.
Relativamente à imigração, é sabido que a imigração legal, ilegal e tráfico de seres humanos tem consequências na economia e no tecido social do país. É também o tópico da política nacional com mais desinformação a circular online.
O Bloco de Esquerda votou a favor da extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) em 2021 e da sua integração nas forças de segurança. Em 2023 foram transferidas parte das competências do antigo SEF ao serviço administrativo da AIMA. Como olham para a situação atual da imigração em Portugal depois desta transferência de competências?
No Distrito de Setúbal temos dois fenómenos diferentes. O primeiro é típico do Alentejo, muito presente na agricultura do Alentejo Litoral, que é essa dimensão de quase tráfico de imigrantes. Não estamos a falar de imigrantes que chegaram por iniciativa própria a Portugal e que se dirigiram diretamente para estufas, estamos a falar de contingentes de imigrantes que são importados por intermediários que os exploram, recebendo uma parte do lucro dos donos das explorações agrícolas. Quando há uma rusga ou acaba um determinado trabalho, o intermediário desaparece e aquelas pessoas são deixadas às centenas, o caso de Odemira foi bastante elucidativo.
Esses imigrantes estão cá porque os patrões dessas explorações agrícolas os mandaram buscar, mas depois não lhes dão condições de habitabilidade, não exigem aos municípios que respondam com serviços de saúde ou de escolas para seja possível a reunificação familiar, caso contrário são grupos de homens jovens e isso dificulta muito.
Nós tivemos muitas propostas do ponto de vista da responsabilização do patrão e do dono da exploração pelos imigrantes. A proposta foi parcialmente aprovada e consiste na co-responsabilização do patrão pelos crimes que o intermediário comete. O que estava a acontecer é que havia uma série de crimes em que não haviam culpados e o patrão dizia, “eu só contratei um intermediário e não tenho nada a ver com isso”.
Depois existe uma imigração no geral, que tem a ver com a procura e o efeito de chamada da economia portuguesa. Basta ir à Lisnave para ver que tem umas centenas de trabalhadores do quadro e depois tem entre mil a dois mil trabalhadores à jorna e esses trabalhadores são imigrantes. A construção no Distrito não funcionaria sem trabalho imigrante, assim como a agricultura, o turismo e as pescas.
Mas considerando todos os problemas que elencou, caso se voltasse a votar a extinção do SEF, votaria de forma diferente?
Não voltaríamos nada atrás, a imigração não é um crime, um país que precisa de imigrantes não pode tratar cada imigrante como um potencial criminoso e o SEF tinha essa lógica, cada imigrante é um criminoso até que provem o contrário, portanto, achamos que não há nenhuma razão para os imigrantes terem uma polícia dedicada. Há quem diga que o SEF era importante para desmantelar as redes de tráfico humano, não era. Podia ser complementar, mas é a Polícia Judiciária que faz esse trabalho de combate ao crime organizado.
O que os imigrantes precisam é de um serviço que os permita ter uma existência regularizada e para nós termos um retrato real de quantos são, quem são e o que estão cá a fazer. Para além de que não podemos esquecer por que razão o SEF foi extinto, um imigrante que morreu aos cuidados dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras.