Conseguir ter uma visão não binária acerca da política, do funcionamento das sociedades e dos demais será, porventura, um dos maiores desafios que se colocam a cada de um nós nos tempos que correm. A incapacidade para ouvir o que não nos parece música celestial e abane os nossos dogmas, a inflexibilidade para admitir (e até enveredar por) caminhos diferentes e a indisponibilidade para procurar a razão e a bondade no outro estão a fazer sucumbir o que há de mais humano em nós.

Não sendo adepto de consensos moles e estéreis, que nos condenam ao imobilismo, assumo, no entanto, uma certa nostalgia face a períodos em que a política era, antes e acima de tudo, a arte do encontro. Do acordo que se alcançava apesar das vontades divergentes, do pacto que se obtinha entre partes aparentemente inconciliáveis.

O radicalismo característico da “intemperança do intelecto” de que Edmund Burke nos falou e a fúria, promovida a virtude por algoritmos imperscrutáveis e amplificada por hordas de desocupados (não raras vezes sob anonimato), estão a contaminar a nossa coabitação e a deixar exangues democracias que tomámos por perenes.

Vem isto a propósito daquela que, em alguns momentos, me pareceu uma lufada de ar fresco à esquerda do PS, o Livre. Sem prejuízo de discordar de quase tudo o que por ali se discutia e defendia, sobretudo a disponibilidade para frentismos com forças avessas ao modelo democrático pelo qual pugnamos, sentia-se um cheiro a novidade num espaço político fossilizado e em que ninguém conseguia sequer sentar-se à mesa.

Embora pretendendo pôr as esquerdas a conversar, o Livre queria distinguir-se do BE e do PCP fazendo juras de amor à Europa e parecer suficientemente ecologista para que o líder de turno no PS reconhecesse em si alguma utilidade prática (que o PEV nunca teve nem para o PCP nem para o país).

Contudo, cedo se constatou que o Livre não era o oásis de modernidade e razoabilidade que Rui Tavares, figura tarimbada e tribuno eloquente, artificialmente vendera. À medida que os fracassos eleitorais se acumulavam, o partido oscilava entre a necessidade de parecer moderado aos olhos dos portugueses e as pulsões radicais dos que veem em cada carro um inimigo, em cada homem heterossexual um presumível agressor, em cada português branco um inveterado racista e xenófobo, em cada estado ocidental uma força opressora com uma infinidade de pecados históricos por expiar e na economia de mercado a hipoteca do nosso futuro coletivo, que só o socialismo de papoila ao peito, tote bag ao ombro e Birkenstock nos pés poderia corrigir.

O Livre, à semelhança de outras forças polarizadoras à esquerda e à direita, percebeu os ares dos tempos e patrocinou a primeira candidatura como cabeça-de-lista de uma mulher negra que tinha como único pergaminho político queixar-se a cada instante de racismo e misoginia em Portugal. O Livre, partido das elites urbanas que vão de trotineta para o trabalho, o brunch, o padel ou o Cinema Ideal, compactuou com o populismo de alguém que considerava “absolutamente revolucionário” chegar a deputada sem pertencer a essas mesmas elites.

Os insondáveis paradoxos estão no ADN do Livre. Como pregar os méritos das primárias abertas a militantes e também a simpatizantes e, a meio do processo, tentar alterar o resultado das ditas primárias porque a cúpula dirigente (ficção criada por Rui Tavares para que aquele coletivo não pareça o que é, uma EUssociação partidária) preferia Filipa Pinto a Francisco Paupério para concorrer às europeias.

Hoje, o partido nascido para ocupar o “meio da esquerda” resume-se a uma sociedade algo indefinida de lesados do antigo centrismo do PS, dissidentes da “velha” esquerda marxista e ativistas das causas identitárias mais em voga. E tem como princípios os princípios de Rui Tavares, como meios as redações de Lisboa e como fins a administração das suas lengalengas a qualquer maioria, local ou nacional, encabeçada pelo PS.

Inexplicavelmente, a esta federação de gente (muita dela estimável) que tem como primeiro e último axioma o de que o lugar da direita é nas bancadas da oposição tem faltado a clarividência para fazer reset. Num “partido do tipo novo” (a descrição pertence a Rui Tavares), não deveria haver equívocos sobre onde se quer estar e com quem se deseja estar.

Não basta afirmar que o 25 de Novembro é divisivo; é preciso escolher se se quer engrossar as fileiras dos defensores da democracia representativa ou se se quer marchar com quem ainda sonha com a via revolucionária e o poder popular.

Não é suficiente que se vocifere apenas contra as ameaças autoritárias à direita; é inaceitável que se adote um tom estranhamente prudente e subitamente mavioso quando os tiranos por esse mundo fora se situam no polo oposto.

Não chega bater com as mãos no peito em nome dos valores europeus; é imperativo recusar arranjos com quem quer fazer Portugal regressar aos tempos de isolacionismo político e económico.

Não é atendível que se integre movimentos de defesa dos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+ e que se participe em inúmeros eventos de solidariedade; é exigível que se seja coerente e não se condescenda com regimes torcionários onde tais direitos são diariamente atropelados.

Não é compreensível que se condenem os atos hediondos de grupos terroristas, como sensatamente fez Rui Tavares; é moralmente obrigatório repudiar a tese de que há grupos terroristas que são escudos legítimos contra as operações de outros estados (por mais censuráveis que estas sejam - e têm sido).

Da mesma forma, não serve somente a manifestação de disponibilidade para o diálogo com todas as forças democráticas; é preciso, em simultâneo, fazer pedagogia para que não haja minions do partido a escrever sem rebuço, a propósito da crise inflacionária, dos custos com a habitação, do flagelo dos fogos ou do diabo a quatro, que o capitalismo mata.

Numa só década, o Livre, qual Jano, foi capaz de mostrar o seu lado cintilante, mas também o mais obscuro. Já houve Livre do compromisso e Livre da dissensão, Livre da candura e Livre do cinismo, Livre da inclusão e Livre dos saneamentos, Livre da lisura de processos e Livre de caciques e galopins. Livre de paz e, sobretudo, Livre de guerra – onde o fundamentalismo fez escola e prevaleceu.

Talvez no Livre ainda acendam velinhas para agradecer que a “insolente” e “impertinente” Joacine (assim foi glorificada numa canção dos Fado Bicha) não tenha conduzido o partido à implosão. Provavelmente também o farão para pedir um novo milagre: a não repetição desse imorredouro trauma. Joacine, percebe-se agora, não foi obra do acaso.

Ex-jornalista e especialista em comunicação