Assumiu recentemente a presidência da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP). O que o motivou a aceitar este desafio e quais os seus principais objetivos para o mandato?
A motivação passa por dar continuidade ao trabalho meritório realizado por Ricardo Mexia e por Gustavo Tato Borges, anteriores presidentes da Direção, e a uma filosofia que permitiu à ANMSP manter um registo interessante de participação pública, bem como a organização sustentada de formações e de qualidade de eventos, além da sua intervenção na vida pública e institucional relacionada com as temáticas da Saúde Pública e, em particular, com os médicos de Saúde Pública.

Existe, além da preocupação com a continuidade, o objetivo de assegurar que a associação esteja organizada, preparada e capacitada para os desafios que as novas gerações irão enfrentar.

A especialidade de Saúde Pública tem uma característica singular, que é o seu rejuvenescimento muito acentuado, resultando numa rápida redução da mediana de idades. Isto implica a necessidade de uma transição bem estruturada e de maior envolvimento das gerações mais novas, algo que está a ser planeado, até porque a minha intenção é cumprir apenas um mandato.

Em relação aos objetivos, não podemos abandonar a bandeira da participação pública e da informação ao público. É essencial continuar a organizar eventos para associados e também em colaboração com outras instituições, incluindo a concertação de posições com outras associações e sociedades científicas, para que, em conjunto, possamos assumir posições mais robustas em relação às várias temáticas que afetam a Saúde Pública em Portugal. Assim, eu diria que estes três eixos — participação pública, organização de eventos e cooperação institucional — são os mais relevantes.

Naturalmente, temos também uma grande preocupação com a formação de todos os médicos de Saúde Pública. Isto inclui não só responder às necessidades decorrentes da transição para as ULS, mas também organizar as formações adequadas para garantir a maior capacitação possível e maximizar o potencial da especialidade médica de Saúde Pública.

Defendeu em entrevista que não há solução para a sobrelotação das urgências sem o reforço dos CSP. Quais são as primeiras medidas que considera essenciais para fortalecer este setor?
Há um histórico que é preciso revisitar e que mostra que as políticas de saúde e as políticas públicas em geral atravessam vários ciclos governativos. Uma das questões que temos de enfrentar de forma séria é a grave assimetria no acesso aos CSP, resultado de mais de uma década sem soluções palpáveis para a situação dos profissionais de saúde, nomeadamente médicos de Medicina Geral e Familiar, na região de Lisboa e Vale do Tejo. Já na altura em que era médico interno, e mesmo antes disso, era evidente a dificuldade de fixação de profissionais. As administrações regionais de saúde de Lisboa e Vale do Tejo, bem como os sucessivos governos, não encararam este desafio com a devida seriedade.

“Atualmente, herdamos uma situação de défice crónico na fixação de profissionais, devido à ausência de incentivos e de modelos capazes de resolver o problema em Lisboa e Vale do Tejo, mas também noutras regiões, sendo esta área particularmente crítica.”

Não podemos olhar para a situação atual sem considerar os fatores determinantes que nos levaram até aqui. Sem um acompanhamento adequado da população por parte dos profissionais dos CSP, nomeadamente médicos de família, as pessoas acabam por recorrer aos serviços de urgência para necessidades agudas.

Além disso, a falta de acompanhamento crónico, realizado em consultas programadas, como as oferecidas pelas USF, impede o controlo e seguimento contínuo de indivíduos com patologias e fatores de risco já identificados. Estas consultas permitem não só construir relações de confiança, como também controlar patologias pré-existentes, o que minimiza as descompensações causadas por fenómenos sazonais, como as infeções respiratórias.

Por isso, não é possível comparar situações de saturação nos serviços de urgência do país sem considerar a pressão exercida pela insuficiência nos CSP.
Além disso, existem outros fatores que agravam o problema, como a instabilidade das urgências de portas abertas, particularmente em Lisboa e Vale do Tejo, que levam a transferências de doentes entre hospitais que não estão, à partida, formatados para receber uma carga adicional.

É também importante destacar a necessidade de proteger os hospitais de fim de linha, como o São João, o Santa Maria e os Hospitais da Universidade de Coimbra. Estas instituições, pelas suas características, devem ser reservadas para situações mais complexas e diferenciadas.

“Os CSP são, assim, uma peça vital para enfrentarmos as atuais dificuldades nas urgências, melhorando também a resposta às épocas sazonais de gripe no futuro. Ainda que estejamos sujeitos a variações nas características dos vírus, é essencial reforçar esta base do sistema.”

Por outro lado, não podemos ignorar o problema do perfil de utilização e do comportamento dos utentes em relação à procura dos serviços de urgência em Portugal, que é distinto de outros países.

Sem alternativas eficazes, que garantam a continuidade de cuidados e coloquem os CSP como prioridade, não vale a pena discutir soluções para a sobrelotação das urgências.

Como avalia o impacto do novo modelo de acesso às urgências via Linha SNS 24? Considera que estamos a caminhar para um modelo eficiente ou ainda existem falhas estruturais?
Deveríamos procurar soluções, porque passámos demasiado tempo a “empurrar o problema com a barriga”. As linhas de triagem telefónicas são uma solução implementada em vários países, porque, na prática, são uma forma de triagem ou de pré-encaminhamento. Isso permite que as pessoas tenham, não só, um acesso facilitado através desta linha de aconselhamento, mas também a capacidade de compreender, de acordo com os algoritmos de triagem, qual é o local mais adequado a que se devem dirigir.

No entanto, este modelo não é, por si só, a melhor solução se não existirem as tais portas adequadas para que as pessoas sejam encaminhadas de forma eficiente. Além disso, o modelo não está isento de críticas, porque precisa de ser continuamente aperfeiçoado. É necessário melhorar os algoritmos e ter uma predisposição para uma melhoria contínua, ajustada com base nos relatos de profissionais e utentes, porque é natural que ocorram erros.

“Uma das questões importantes a salientar é que, em várias zonas, não existe uma preparação adequada para o encaminhamento e resposta. Isso pode gerar desilusão no uso da linha, porque os utentes podem acabar por ser inadequadamente encaminhados.”

A implementação das USF e a expansão das ULS são marcos importantes na reforma do SNS. Que ajustes considera necessários para maximizar o impacto destas unidades e garantir a sua cobertura homogénea por todo o país?
Na prática, uma das medidas que já poderiam ter sido implementadas há bastante tempo é a flexibilização da forma de contratação de profissionais, permitindo até a formação de equipas a priori. Na realidade, o que estamos a observar com as USF modelo C é a possibilidade de o setor privado ou social apresentar soluções pré-organizadas para atrair profissionais e responder às necessidades.

Durante muitos anos, a forma de contratação de profissionais no SNS não favoreceu a fixação. Não só o custo de vida elevado em Lisboa, em comparação com outras zonas do país, era um fator dissuasor, como também havia outras oportunidades, sobretudo no setor privado, que atraíam esses colegas.

Em termos de rotura do sistema e da dificuldade na fixação de equipas, era necessária uma maior facilidade na contratação de vários profissionais em simultâneo, e não de um a um, nem nos trâmites fechados e morosos. Deveria ter existido, desde cedo, uma predisposição para a formação de equipas previamente à constituição das USF. Isso não aconteceu e, neste momento, não vale a pena criar ilusões.

É essencial implementar medidas concretas, como já aconteceu com as vagas carenciadas, oferecendo incentivos financeiros aos profissionais. Mas, mais do que isso, é preciso criar condições organizacionais ótimas para que os colegas e os restantes profissionais possam desempenhar o seu trabalho de forma eficiente e estável. Na prática, o que muitas vezes era relatado era a dificuldade em estabilizar equipas.

Portanto, devem ser eliminados os entraves, oferecendo todas as condições necessárias para que os médicos de Medicina Geral e Familiar consigam organizar-se de forma eficaz, garantindo equipas estáveis e funcionalidade nas unidades. Esta abordagem poderia ter sido configurada de forma mais assertiva no passado.

O que agora se está a ensaiar, além dos concursos, é a implementação de um modelo previsto há muito tempo na legislação: as tais chamadas USF modelo C.

Considera que pode ser uma mais-valia?
Eu julgo que o juízo sobre o modelo das USF modelo C terá de ser feito após vermos como é que vão funcionar. Porque aquilo que posso dizer, de alguma forma, é que chegámos a este ponto para que a solução das USF modelo C fosse considerada a mais assertiva. Na verdade, e julgo que esta sensação é generalizada, se tivéssemos enfrentado o problema com outras soluções que poderiam ter sido testadas para reforçar as abordagens clássicas do modelo USF A, com evoluções para USF B, talvez não nos encontrássemos numa situação crónica que agora exige uma solução urgente.

Agora, dependendo dos moldes de funcionamento das USF modelo C, será necessário fazer uma avaliação sobre se esta é, de facto, a melhor solução para a população e quais os seus resultados. Isto é algo em que, por vezes, falhamos em Portugal: a avaliação contínua dos resultados e o ajuste das soluções.

Mudando de assunto e falando sobre a formação de especialistas em Saúde Pública, tem-se verificado uma diminuição do número de jovens médicos a escolher a especialidade. Quais são os principais fatores que contribuem para esta tendência e o que pode ser feito para reverter essa situação?
Se olharmos para dados anteriores a 2010 verificamos que havia muito menos jovens no internato de Saúde Pública do que atualmente e que registávamos uma proporção de conclusão não satisfatória.

O que temos hoje em dia? Um problema geral relacionado com o valor acrescentado da escolha da especialidade por parte de todos os jovens médicos, e não apenas na Saúde Pública. O próprio bastonário já destacou que isso é um sintoma claro de que algo mais precisa de ser feito. No caso da Saúde Pública, tal como noutras especialidades, enfrentamos um problema salarial no internato médico. Apesar da correção negociada sindicalmente, o aumento previsto ainda não será suficiente para mitigar, de forma clara, a desvalorização do papel importantíssimo destes profissionais, tanto em termos salariais, como das condições de trabalho.

Sabemos que, em algumas especialidades ou em determinados hospitais, as condições levam as pessoas a fazer outras escolhas. Isso ocorre porque o modelo de trabalho acaba por assentar num esforço muito intenso por parte dos médicos internos, com recurso a muitas horas extraordinárias e a turnos de urgência.

Portanto, trata-se de um problema geral: é necessário assegurar condições de trabalho que favoreçam a aprendizagem e também o reconhecimento salarial devido, uma vez que os médicos internos trabalham muito e são, na prática, a coluna vertebral do Serviço Nacional de Saúde.

Relativamente à Saúde Pública em particular, existe também um problema específico com a escolha ou não desta especialidade no momento de entrada. Contudo, há outra questão que me parece igualmente ou ainda mais grave e que merece atenção: estamos a assistir a uma situação em que os jovens médicos, após concluírem a especialidade (ou mesmo antes), optam por outras oportunidades fora do SNS.

Assim, as colocações na especialidade de Saúde Pública no SNS devem oferecer condições de trabalho, salariais e de desafio que permitam a fixação.

Este é o grande desafio. Não podemos ignorar que é necessário melhorar as condições do internato médico como um todo, mas também devemos estar seriamente preocupados com as condições de trabalho, remuneração e progressão dos jovens especialistas em Saúde Pública.

O que podemos chamar de brain drain na especialidade de Saúde Pública é uma grande preocupação, pois temos indivíduos muito talentosos, com coortes cada vez mais bem preparadas em várias competências técnicas, que são altamente procurados pelo mercado da saúde em geral e por organizações internacionais.

Precisamos de fazer uma reflexão crítica sobre como podemos acrescentar valor e garantir progressão a estes profissionais nas unidades e nos serviços de Saúde Pública a vários níveis, incluindo, claro, as condições remuneratórias e de trabalho.

As ULS não poderão ser um caminho?
As ULS são uma reforma que oferece a perspetiva de colocar a Saúde Pública num nível mais equidistante entre os CSP e os cuidados de caráter hospitalar. Abrindo-se essa porta e com a devida rentabilização dos recursos, pode efetivamente ser uma oportunidade para potenciar as competências e proporcionar desafios interessantes para os médicos de Saúde Pública. Contudo, é essencial haver uma conciliação de esforços.

Outro ponto crucial é assegurar a valorização salarial, as condições de trabalho e o reconhecimento dos médicos especialistas em Saúde Pública como um todo. Esta força de trabalho é indispensável não apenas para responder aos desafios crónicos, mas também para garantir a capacidade de atuar em momentos de maior emergência, como ocorreu durante a resposta pandémica. Se não houver uma força de trabalho bem orientada, constantemente formada, atualizada e coordenada, os resultados em situações agudas serão inevitavelmente piores.

Há, assim, uma preocupação com a preparação contínua. Finalmente, coloca-se um repto e um desafio para a especialidade médica de Saúde Pública: os serviços devem procurar adaptar-se às atualizações e às necessidades emergentes no contexto das ULS. Dessa forma, não só se promove a valorização dos profissionais, como também se alcançam melhores resultados para a ULS como um todo.

A promoção da saúde e a prevenção da doença são frequentemente apontadas como áreas negligenciadas no SNS. O que pode ser feito para dar a estas áreas a prioridade que merecem?
Há algo que deve ser destacado.

“Fala-se muitas vezes da questão da promoção da saúde e da prevenção da doença, mas depois o que está estabelecido como incentivos à sua execução e avaliação não é claro.”

Ou seja, se não houver uma alocação de financiamento para essas atividades, seja a nível de uma ULS, seja a nível nacional, é evidente que a resposta não será tão eficiente.

Temos de ter noção de que existem profissionais médicos e serviços de Saúde Pública que têm capacidade de gestão de programas, atividades, projetos e organização relativamente a questões de promoção da saúde e prevenção da doença. É necessário investir, capacitar e permitir a reorganização e aproveitamento de projetos já existentes na comunidade.

A Saúde Pública não se esgota nos serviços. Há muita coisa a ser feita na área da promoção da saúde e prevenção da doença, até com as próprias autarquias. Mas é necessário um acompanhamento adicional para que esses projetos possam ser medidos da melhor maneira e integrados de forma mais eficaz, possibilitando melhores resultados.

Sem dúvida, há uma necessidade de refletir a nível nacional sobre o papel da promoção da saúde, ocupando o espaço mediático, realizando campanhas específicas dirigidas a temas determinados.

Existem aqui várias oportunidades a serem exploradas.

“Contudo, quando comparamos o que se investe em promoção da saúde e prevenção da doença com os gastos em tratamento, estamos a falar de percentagens muito pequenas. É urgente aumentar a consciência e a coerência entre aquilo que se diz e o que se faz na área da promoção da saúde e prevenção da doença.”

Esta é uma nota constante, mas a ideia de um investimento sério na reorganização da promoção da saúde e prevenção da doença deve estar na agenda, para que não fiquemos apenas com o que é dito, mas com os resultados práticos e a alocação de meios para que isso aconteça.

A outra questão tem a ver com as reformas das ULS. É necessário ter a devida cautela para que os chamados programas verticais, nomeadamente atividades que algumas vezes orbitavam em torno das administrações regionais de saúde, sejam devidamente integrados. Há questões muito importantes a destacar, como, por exemplo, a sustentabilidade e a homogeneidade sectorial dos programas de rastreio.

Como é que isso será implementado de forma equitativa e sustentável nos próximos tempos? É uma preocupação, pois essas atividades fazem parte de um conjunto que agora terá de ser transferido para uma lógica de ULS. Mas também com a devida preocupação de reduzir as assimetrias, amplamente reconhecidas, na questão dos rastreios a nível nacional.

Além dos já referidos, que outros desafios enfrentamos?
Não podemos esquecer que não somos imunes aos determinantes económicos e sociais que nos rodeiam. Portanto, há grandes desafios que me parecem evidentes e que todos sentimos: a nível nacional, o primeiro são as questões da habitação e da acessibilidade à habitação, que acabam por ser fatores que condicionam um conjunto de fenómenos de saúde a jusante. Ou seja, este problema não se limita apenas aos problemas habitacionais. Acaba por transitar facilmente para questões de saúde em várias circunstâncias, sendo algo que deve ser encarado como tal. Algo associado, que é um problema crónico em Portugal, é a questão da pobreza energética.

O segundo ponto que gostaria de destacar como uma prioridade, que deve fazer parte da agenda dos serviços de Saúde Pública e até do próprio Estado e da democracia, é a questão da desinformação, que também deve ser uma prioridade.

Sem termos uma conversa pública e um debate ancorado em factos, não é possível garantir a sustentabilidade democrática e institucional. Portanto, seja qual for a organização, associação ou sociedade ligada à Saúde Pública em geral ou a algum tema específico em saúde, a questão da desinformação deve integrar a agenda e deve ser refletida, no sentido de pensarmos como nos podemos posicionar coletivamente, para diminuir esse fenómeno e fornecer informações consistentes à sociedade como um todo.

Mas há mais desafios incontornáveis, como as questões das alterações climáticas e as consequências que já sentimos e vamos continuar a sentir em Portugal, com destaque para o aparecimento de novas patologias infeciosas. São questões às quais não podemos deixar de estar atentos, até no contexto de preparação de resposta a emergências que inexoravelmente voltarão a surgir.

Há ainda o envelhecimento e o isolamento. Ou seja, são aspetos aos quais temos de estar atentos, porque, efetivamente, observamos um envelhecimento notório da população portuguesa, mas também há alterações nas características sociais. O isolamento e a solidão são situações às quais devemos estar atentos, para que possamos encontrar soluções para a sua mitigação.

Além dos determinantes sociais clássicos da saúde e da doença, há também ainda necessidade de refletir e agir sobre determinantes comerciais, promovendo alterações que tenham impacto positivo na saúde dos portugueses.

Esta nova direção da ANMSP tentará dar o seu contributo positivo nestes desafios.

Sílvia Malheiro

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