![A Riviera do Médio Oriente, um novo Destino Manifesto e a limpeza étnica da Palestina](https://homepagept.web.sapo.io/assets/img/blank.png)
A crise do Antigo Regime na Europa, constituído por monarquias absolutistas legitimadas pelo poder divino e marcadas por uma sociedade de ordens medieval, foi acompanhada pela ascensão do Iluminismo e das revoluções liberais, que influenciaram a declaração de independência dos Estados Unidos no século XVIII. Este novo país viu a sua expansão para o Oeste e consolidação num sistema internacional moderno em construção justificadas por um aparato intelectual constituído por doutrinas políticas e ideológicas, nas quais se destacam o Destino Manifesto. A teoria da predestinação divina e do excecionalismo norte-americano, pensamento de base manifestamente colonial, assente numa suposta superioridade cultural e política, criou a justificativa moral e intelectual para a expansão territorial do país, vista como inevitável.
Esta noção do século XIX foi trazida de volta e tem sido transposta na política norte-americana no século XXI através do Presidente recém-empossado Donald Trump. Isto mesmo o próprio o afirmou no seu discurso de inauguração, no qual disse que a restauração do legado do país na liderança espacial é “o Destino Manifesto Americano nas estrelas”. Mas mais do que uma referência discursiva, o Destino Manifesto enquanto doutrina de poder e linha orientadora de política externa tem aparecido plasmado nas ações do presidente norte-americano nos seus primeiros 15 dias de mandato. Reinterpretado com toques absolutistas à Luís XIV, a quem ficou atribuída a célebre frase “L’État c’est moi”, o novo Destino Manifesto não encontra limites geográficos e tem como ator predestinado o líder, Donald Trump - que pensa que é dono do mundo -, e não o povo norte-americano, como na formulação original.
A narrativa messiânica do homem que sobreviveu a um atentado à sua vida e que agora vem virar o mundo do avesso, no auge da sua legitimidade conferida nas urnas por umas eleições polarizadas e renhidas, mas que se traduziram num controlo quase total do aparato governativo federal, parece que está a ganhar tração. Donald Trump quer comprar a Gronelândia – e quer mesmo obrigar a Dinamarca a colocá-la a venda -; trocou o nome do Golfo do México para Golfo da América, já com repercussões na plataforma Google Maps; chamou o Canadá de 51º estado; e quer tomar de volta o canal do Panamá. Mas para além de tudo isto, diz agora que vai ficar com a Faixa de Gaza, um território de “localização fenomenal, junto ao mar (...) [com o] melhor clima”, que chamou de Riviera do Médio Oriente. E para explorar ao máximo o potencial imobiliário daquela bela zona, pretende deslocar forçosamente os mais de dois milhões de pessoas que lá vivem, atualmente sob os escombros da guerra, para países vizinhos. Afinal, “a maior parte deles está morta, já agora”.
De acordo com o célebre historiador israelita Ilan Pappé, a expulsão de um grupo de uma determinada região ou território pela via da força ou da intimidação com o objetivo de homogeneização populacional constitui limpeza étnica. Embora não tenha sido tipificada no direito internacional como crime independente, a prática da limpeza étnica não só se enquadra no âmbito dos crimes contra a humanidade, como também se constitui num elemento do crime de genocídio. A Convenção de Genebra tipifica o genocídio como ações que visam destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Ações em tudo como aquelas a que temos assistido nos últimos 15 meses, que vão da destruição total de um território e da sua infraestrutura civil, incluindo prédios residenciais, escolas, hospitais e redes de abastecimento, ao bloqueio humanitário e utilização da fome como arma de guerra, tornando as condições de vida de uma população praticamente impossível. Donald Trump reconheceu isso mesmo no seu discurso na Casa Branca essa semana, ao lado do líder israelita Benjamin Netanyahu, embora pareça estar a falar de um qualquer desastre de causas naturais, referido apenas como um “azar”.
O documento de 1948 não pretende apenas definir o que é genocídio, tendo por objetivo central, sobretudo, a sua codificação como crime independente. E embora se chame “Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio”, a sua elaboração em torno da intencionalidade faz com que o objetivo de prevenção seja quase impossível de atingir, na medida em que a constituição de prova do crime é necessariamente um processo moroso que determina um julgamento póstumo e dificilmente passível de interrupção do ato. No entanto, se a colaboração norte-americana no esforço de guerra israelita já era mais do que suficiente para tornar o país, no mínimo, cúmplice de todos os crimes de guerra e contra a humanidade que vimos em Gaza nos últimos 15 meses, as declarações de intenção de Donald Trump podem levar a que os EUA possam ser formalmente implicados no caso movido pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça.
O novo Destino Manifesto norte-americano, que também poderíamos chamar de “Doutrina Trump”, se constitui num desafio à ordem internacional vigente e consolidada a partir de uma série de tratados, normas e instituições que foram construídas no rescaldo da Segunda Guerra Mundial para “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”, conforme se lê no preâmbulo da Carta da ONU. O multilateralismo assente em regras, no princípio da cooperação internacional e da diplomacia preventiva parte do pressuposto base da soberania e da integridade territorial dos Estados. É, portanto, óbvio que estamos a assistir ao fim da ordem liberal, que se tornou hegemónica na década de noventa com a queda da União Soviética.
Ainda não é claro o que se vai seguir à atual desordem mundial que já se vinha a desenhar por todo o mundo e que agora inequivocamente se institucionaliza. Mas parece óbvio que a classificação da Faixa de Gaza como a Riviera do Médio Oriente e as declarações sem escrúpulos ou vergonha da intenção anunciada de levar a cabo um processo, há muito silencioso, de limpeza étnica da Palestina marcam um novo capítulo do romance distópico no qual temos todos vivido. E são certamente um ponto alto, e há pouco inimaginável, do processo histórico de longo prazo de negação identitária, obliteração mnemónica e desumanização do povo palestiniano que, para todos os efeitos, têm sido o combustível de um ciclo de conflito prolongado que cada vez mais parece que não tem fim à vista.