O tema pode ter passado despercebido mas tem importância, sobretudo no atual momento de crise na habitação. O Governo garante, pela voz do ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, que a alteração à lei dos solos é "absolutamente anti-especulativa" e vai "baixar os preços das casas”.

“Estamos a pensar no casal de enfermeiros, no casal de professores, no casal de bancários. É a classe média que hoje tem imensa dificuldade em comprar a sua casa e nós queremos colocar casas disponíveis a preços moderados. (…) Se não fosse assim, para que é que íamos fazer esta lei então? Se não fosse para aumentar a oferta, se não fosse para baixar os preços, para que é que ia servir a lei?”

Posição diferente têm os partidos à Esquerda e, até, o Presidente da República que, apesar da promulgação, salientou o “entorse significativo” que criará “em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local".

O Governo defende-se, assegurando que “vai manter no mercado o que existe e aumentar a oferta, criando condições para que as câmaras municipais decidam aumentar a oferta. Não vamos, por decreto, fazer nada. Vamos, [apenas], autorizar as câmaras municipais a agir”.

A alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), mais conhecido por Lei dos Solos, não só não está a gerar consensos como levanta várias dúvidas, principalmente por passar a permitir a construção e urbanização em terrenos onde atualmente não é possível.

Dados de “um grave problema”

INE

Sustentando-se em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o Governo diz que se confirma uma “tendência global negativa” no número de fogos: se no ano 2002 foram construídos "cerca de 125 mil fogos”, vinte anos depois, em 2022, foram muito menos de metade.

Estes dados “são relevadores de um grave problema: de que, em média, em Portugal, se construíram tantos fogos por mês, em 2002, como durante meio ano em 2022”, lê-se no decreto-lei.

Por isso, e apesar de admitir que não é um “fator exclusivo”, o Governo defende que “a maior disponibilidade de terrenos facilitará a criação de soluções habitacionais” e atenderá a critérios de "custos controlados e venda a preços acessíveis, promovendo uma maior equidade social e permitindo que as famílias portuguesas tenham acesso a habitação digna”.

Os objetivos

“(…) a presente alteração legislativa, (...), visa criar as condições necessárias para um desenvolvimento habitacional mais justo e acessível”

Sendo que, a concretização desses objetivos “exige uma base territorial adequada e suficiente para a realização de projetos habitacionais que atendam às necessidades das populações mais vulneráveis e que promovam uma integração social equilibrada”, bem como, “o aumento do número de solos destinados à construção de habitação, incluindo habitação pública e acessível”.

“O aumento do número de solos destinados à construção de habitação (...) fortalece a capacidade do Estado em promover políticas habitacionais eficazes, sustentáveis e alinhadas com as necessidades da população. Esta medida é, portanto, essencial para proporcionar soluções habitacionais adequadas e acessíveis a todos os cidadãos".

As proibições

Estabelecidos os objetivos, o decreto-lei Decreto-Lei n.º 117/2024, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), elenca também as áreas que esta reclassificação do solo urbano não pode abranger, destacando-se as áreas classificadas nos termos do regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional (REN).

“A reclassificação para solo urbano (…) não pode abranger: áreas classificadas nos termos do regime jurídico da REN como faixa marítima de proteção costeira, praias, barreiras detríticas, tômbolos, sapais, ilhéus e rochedos emersos no mar, dunas costeiras e dunas fósseis, arribas e respetivas faixas de proteção, faixa terrestre de proteção costeira, águas de transição e respetivos leitos, margens e faixas de proteção; cursos de água e respetivos leitos e margens; lagoas e lagos e respetivos leitos, margens e faixas de proteção; albufeiras que contribuam para a conectividade e coerência ecológica da REN, bem como os respetivos leitos, margens e faixas de proteção, zonas adjacentes, zonas ameaçadas pelo mar e zonas ameaçadas pelas cheias”

Desta lista fazem também parte:

  • zonas de perigosidade de estabelecimentos abrangidos pelo regime de prevenção de acidentes graves, bem como as que sejam identificadas, sendo objeto de decisão pela respetiva câmara municipal, ainda que não incorporadas no plano diretor municipal;
  • áreas abrangidas por programas especiais da orla costeira, albufeiras de águas públicas e estuários;
  • áreas de risco potencial significativo de inundações previstas nos Planos de Gestão dos Riscos de Inundações;
  • aproveitamentos hidroagrícolas.

O decreto-lei refere ainda que se mantém "a proibição de construção em unidades de terra com aptidão elevada para o uso agrícola, nos termos da Reserva Agrícola Nacional”.

O regime especial

Há um regime especial para casos em que “a finalidade seja habitacional” e “usos complementares”, sujeitando-se ao cumprimento cumulativo de um conjunto de requisitos que visam salvaguardar a preservação dos valores e funções naturais fundamentais, bem como prevenir e mitigar riscos para pessoas e bens”.

Este regime especial de reclassificação assegura, que pelo menos 700/1000 da área total de construção acima do solo se destina a habitação pública ou a habitação de “valor moderado”.

Um novo conceito que “reflete uma preocupação do legislador em responder às dificuldades generalizadas de acesso a habitação” e que é diferente de “custos controlados”, na medida em que procura abranger o acesso pela classe média, ponderando valores medianos dos mercados local e nacional, e definindo valores máximos para assegurar maior equidade".

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A última palavra sobre a aplicação deste “exercício excecional de reclassificação” é dada por deliberação da assembleia municipal, sob proposta das câmaras municipais, refletindo-se num processo que o Governo classifica de "transparente e suscetível de integral escrutínio, sujeito à pluralidade de posições que necessariamente acompanham a discussão em sede de assembleia municipal”.

Tendo presente que, a 31 de dezembro próximo, “finda o prazo para a integração das regras de qualificação e classificação do solo nos planos municipais e intermunicipais de ordenamento do território, e não obstante se manter o referido prazo, possibilita-se a realização de operações urbanísticas cuja finalidade seja habitacional ou conexa”.

Exemplos e (ausência de) benefícios fiscais

Esta alteração à lei introduz o termo “valor moderado” que, por sua vez, estabelece critérios, tais como: o preço por metro quadrado que não pode exceder a mediana nacional de preços de venda ou, em alternativa, ser superior a 125% da mediana do concelho, com um limite absoluto de 225% da mediana nacional.

Por exemplo, a mediana nacional é de 1.661€/m², o limite máximo de preço seria de 3.737€/m². Acontece que, por exemplo, no concelho de Lisboa, os preços atuais (4.203€/m²) excedem este limite, pelo que será necessário, para cumprir o “valor moderado”, reduzir os preços em cerca de 11%.

E há benefícios fiscais? Não, pelo menos para já.

“Esta lei vai baixar os preços das casas”

O ministro tem-se desdobrado em entrevistas, nas últimas semanas e, em todas, repete: “Os preços das casas vão baixar”.

“A classe média vai conseguir comprar essas casas, porque vamos estabelecer limites de [valores], que serão definidos com base na mediana dos preços de cada concelho e que não poderão ser superiores a 125% dessa mediana”

A equação é simples, pelo menos para o ministro Castro Almeida, e aos que temem a possibilidade de serem criados novos pólos urbanos em terrenos que hoje são rústicos, deixa uma garantia: “Isso não vai acontecer”, até porque "a expansão que for feita terá de ter coerência com aquilo que já lá está".

Críticas? Há muitas

O anúncio da nova lei dos solos gerou contestação. O PS propõe alterações ao decreto, os deputados da comissão de Economia, Obras Públicas e Habitação aprovaram por unanimidade o requerimento do Bloco de Esquerda (BE) para audição, com caráter de urgência, dos ministros das Infraestruturas e Habitação e da Coesão Territorial.

O requerimento do BE pede ainda a audição da ZERO - Associação Sistema Terrestre Sustentável, da Rede H - Rede Nacional de Estudos sobre Habitação, da arquiteta de Helena Roseta e de Jorge Moreira da Silva, que era ministro do Ambiente em 2013, quando a lei dos solos foi originalmente aprovada.

Já o PCP não só não tem dúvidas de que esta alteração da lei não vai responder ao problema da habitação, como até vai intensificar a especulação. Por isso pede a revogação do lei.

Críticas foram também feitas por mais de 600 especialistas e antigos responsáveis políticos, numa carta aberta.

“(…) o Governo, na urgência de tentar resolver o problema da falta de habitação acessível em Portugal, está prestes a tomar uma decisão que pode vir a ser catastrófica: irá aumentar as áreas de terrenos/solos já degradadas e sem grande potencial agrícola ou florestal, ameaçando a salvaguarda da biodiversidade e da agricultura, e pondo em causa um património natural essencial ao bem-estar de todos e tão apreciado por todos os turistas que nos visitam”, lê-se na missiva.

A Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) considera que é positiva a visão de colocar mais responsabilidades nas câmaras, mas também defende que há melhorias que podem ser feitas.

Quando entra em vigor

O decreto-lei foi publicado em Diário da República a 30 de dezembro de 2024 e, conforme se lê no diploma, "entra em vigor 30 dias após a data da sua publicação".

Mas antes de terminado esse prazo, o ministro Castro Almeida vai ser ouvido na comissão de Economia, Obras Públicas e Habitação na próxima terça-feira, e, três dias depois, o Parlamento irá pronunciar-se sobre o assunto.

“A proposta é discutida no Parlamento e o Parlamento pode até melhorá-la”, disse o governante, embora, quando aprovou o diploma, o Governo tenha fechado a porta e evitado a discussão parlamentar.