Danos colaterais: uso a expressão quando me refiro a coisas que acontecem devido a escolhas que se fazem. Faço-o de forma instintiva, como que para ligar causa e efeito, ação e reação. Mas confesso que não me lembro de a ter usado em relação à morte de pessoas, sobretudo quando essas acontecem às mãos de outras.
Ultimamente tenho ouvido a referência, a dos danos colaterais, com demasiada frequência, nomeadamente pela boca de alguns comentadores.
Sim, porque não esqueçamos: estes são tempos de "comentário público". Comenta-se tudo, a toda a hora e em todo o lado. Na imprensa, em fóruns e blogs, no YouTube, em diretos no Instagram, em palestras e conferências, aqui e ali. Parece que a modalidade funciona e se funciona, tudo bem. Nada a opor, até porque este vosso escriba é também um "comentador" e seria incoerente condenar uma opção que o próprio subscreve de forma profissional.
Mas convenhamos: falar de penáltis e expulsões ou até mesmo de novelas e reality shows, não é a mesma coisa que falar de coisas verdadeiramente importantes que acontecem um pouco por todo o lado.
Essas são de interesse global. Podem mudar a forma como vivemos, podem ameaçar a paz mundial e até o futuro da humanidade, o futuro dos nosso filhos. Algo que um vermelho por exibir ou uma expulsão na casa da Venda do Pinheiro não conseguem igualar.
É precisamente a importância desses temas que me leva a seguir com atenção a opinião de analistas qualificados sobre, por exemplo, as eleições norte-americanas, a guerra na Ucrânia ou a mais recente escalada de tensão no Médio Oriente.
Interessa-me. Preocupa-me. E incomoda-me. Incomoda-me porque, no meio de tanta diferença ideológica, religiosa ou política, é sempre o elo mais fraco que paga a fatura.
Centenas de milhares de almas inocentes morrem todas as semanas devido às "opções estratégicas" de outras. Pessoas que nunca levantaram um dedo contra ninguém. Bebés e crianças, jovens e adultos, idosos e doentes que nasceram ou estavam no lado errado do globo, à hora errada.
É e foi sempre assim, é certo, mas tira-me do sério ouvir alguém dizer, a milhares de quilómetros de distância e sem a mínima noção do horror que é lá estar... que são apenas danos colaterais.
Como se estar nos mesmos hospitais, apartamentos ou escolas onde se escondem meia dúzia de terroristas fosse justificação para bombardear o quarteirão inteiro e levar tudo a eito. Como se recém-nascidos em alas neonatais, miúdos internados em oncologia ou crianças de 3 e 4 anos na pré-primária estivessem deliberadamente a proteger hezzbollas e sus muchachos. Como se os seus pais soubessem de tudo e num complot bem planeado, usassem as suas crias como escudos humanos.
Valha-me Deus.
Desprezo que se chame "dano colateral' à morte horrível de pessoas de bem, de gente que nada fez para viver o inferno na Terra.
Nenhuma simpatia ideológica pode validar esse carimbo, ainda que se mande pelos ares uma mão cheia de malucos. E desprezo também quem defende que em Gaza e no Líbano os "danos colaterais" são inevitáveis porque Israel tem direito a "defender-se", mas na Ucrânia já não são, porque Putin é um criminoso de guerra. Ou o contrário: quem fica mudo e calado quando vê milhares de ucranianos assassinados na sua própria casa, mas depois grita aos sete céus que Netanyahu é um genocida.
Mas agora há vítimas de primeira e de segunda ou isso depende apenas do lado que se está da barricada? Que incoerência é essa?!
A vida humana devia ter o mesmo valor à direita, no centro e à esquerda, independentemente do sexo, raça, credo, religião ou nação onde nasça. É ela que assegura a existência do mundo tal como o conhecemos.
Mais importante ainda: a vida de inocentes tem que ser sempre defendida e protegida. Não pode haver uma única justificação que a ceife.
Qualquer pessoa ou Estado que o faça, estará a cometer crimes de guerra e a ser pior, bem pior, do que tudo o que motivou a sua defesa. Aceitar a desproporção grosseira do direito de defesa é a confirmação de que há muita gente a morar bem longe dos valores que devem nortear qualquer pessoa de bem.