Escrevo este texto a partir da sede da Polícia Judiciária, onde me desloquei para apresentar queixa depois de (mais) um email recebido com uma ameaça de morte, a propósito de uma imagem falsa do que seria um manual escolar, enviada por um anónimo (porque a cobardia é sempre anónima). Não é a primeira vez, mas talvez seja uma das mais explícitas, com várias ameaças formuladas, que terminam com a frase “socialista bom é socialista morto”.

Isto tudo a propósito, imagine-se, da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e da inscrição no currículo nacional de temas como a igualdade de género e a educação sexual, temas absolutamente consensuais na maior parte das democracias e cujo mérito já foi amplamente explicado (desde o combate à violência doméstica, de género e no namoro, ao bullying por sexo ou orientação sexual). Podia dedicar este texto a voltar a argumentar sobre as correlações entre educação sexual e prevenção de doenças ou da gravidez precoce, mas, para alguma gente, as imagens falsas que lhes aparecem nos ecrãs valem mais do que qualquer conjunto de evidências cientificamente validadas.

Estas ameaças recorrentes, inconsequentes até ao dia em que deixarem de o ser, são, obviamente, um dos graus zero da decência. E não escreveria este texto se não considerasse que a decência também vai a votos no dia 18 de maio, porque estas ameaças anónimas têm autores morais.

Até há poucos anos, num país em que a violência de género era praticada, talvez não fosse tão ufana e orgulhosamente afirmada, publicada online e relativizada. O crescimento dos crimes de ódio, divulgado nas estatísticas oficiais, coincide, cá e noutros países, com o surgimento e expansão dos partidos de extrema-direita.

É ao Chega, ao Ergue-te, ao PNR e aos seus congéneres portugueses e estrangeiros, que podemos reconhecer uma quase constante divulgação de dados falsos, partilha de pseudonotícias (inclusive imitando o grafismo de jornais de referência), a difamação constante, as calúnias reiteradas, os ataques vis e boçais em todos os formatos e modalidades. O Chega levou para a Assembleia da República o desprezo e o desrespeito pelas instituições democráticas e a fuga constante à verdade. Foi de deputados do Chega que ouvimos acusações falsas a imigrantes ou o apelo ao uso da força injustificada pelas autoridades. Foi de uma deputada do Chega que ouvimos a alucinação reiterada sobre casas de banho ou a negação das alterações climáticas, numa confusão ignorante entre temperatura e clima a partir de relatórios inexistentes, apenas para citar dois exemplos. É de uma ideóloga do Chega, presença assídua nas redes sociais com apelos contra a suposta “ideologia de género”, que nascem os exemplos falsos, suscitadores de escândalo, de supostas atividades que os professores organizam nas escolas. Não sei se é a autora da página falsa de um manual escolar em que se ensinariam as crianças a masturbar-se (que aliás, em diferentes línguas e grafismos, já foi utilizado pelos bolsonaristas no Brasil, pelos trumpistas, nos Estados Unidos da América, e pela generalidade da extrema-direita), mas esta imagem que se associa à ameaça de morte que me é dirigida não é diferente de outros alarmismos falsos por ela criados. Foi de um deputado do Chega que ouvi as palavras no seu canal de YouTube em que sugere, de forma absolutamente explícita, mas sem afirmar categoricamente (porque a cobardia é mesmo assim) que eu sou pedófilo. O mesmo deputado que foi deixar um enorme pénis de louça das Caldas à porta de uma estação de televisão, para ser entregue a um jornalista. Estes são os comportamentos da extrema-direita portuguesa, inclusive de deputados eleitos, que vai a votos no dia 18 de maio.

Ao Chega e aos seus partidos amigos associam-se movimentos como o 1143 ou o Habeas Corpus que também povoam as redes sociais, instigando o ódio e legitimando a prática de crimes. Talvez não seja coincidência o facto de as últimas ameaças que me foram dirigidas incluírem a expressão “terrorismo homossexual”, quando integro a lista de terroristas LGBT que uma destas organizações publica regularmente, a propósito das suas práticas (amplamente impunes) de ataques a pessoas e eventos públicos sobre direitos humanos.

Quem achar que esta violência, esta cobardia e estes ataques à dignidade humana são legítimos continue a votar nestes partidos. Quem achar que o crescimento da criminalidade fomentada pelo argumentário destes partidos faz bem a Portugal continue a votar nestes partidos.

Não isento de responsabilidade, numa escala obviamente muito menor, a cumplicidade silenciosa ou expressa de membros do atual governo ou dos partidos que o suportam. Quando o Presidente da Assembleia da República respondeu o seu famoso “Pode” a Alexandra Leitão, viabilizando o desrespeito por etnias em nome de uma confusão entre liberdade de expressão e crime, legitimou. Quando o líder do CDS, Paulo Núncio, foi à televisão disseminar informações falsas sobre o trabalho dos professores sobre educação sexual e igualdade de género, legitimou. Quando o próprio Luís Montenegro considera que uma escola que combate o bullying homofóbico está presa por “amarras ideológicas”, e segue a recomendação do seu partido para eliminar do acesso aos adultos sugestões de trabalho para a promoção do respeito pela diferença, legitima. Quando a Ministra da Administração Interna e a Ministra com a pasta da igualdade nada a têm a dizer sobre movimentos inorgânicos que fazem ameaças a autores de livros infantis, como é o caso de Maria Jones, legitimam. Quando o Ministro dos Negócios Estrangeiros e o Ministro que tutela o Ensino Superior ficam em silêncio perante um questionário dirigido às instituições de ensino superior sobre a agenda de investigação relativa a diversidade, equidade e inclusão, legitimam. Claro que não têm a mesma responsabilidade de um Chega ou de um Ergue-te, claro que não os vejo como promotores destas ameaças sinistras, mas tinham o dever moral e político de se distanciar, de repudiar, de agir sem moralismos bacocos ou piscadelas de olho a esta infame extrema-direita.

Não escondo que hesitei antes de apresentar a queixa ou de escrever este texto. Considerei, contudo, que já chega de impunidade e que me compete partilhar a ameaça, para defesa de todos, e para que seja muito claro que a democracia nos coloca na posição soberana de limpar (para a usar a expressão de que tanto gostam) a sujidade e a indignidade das instituições da República e do espaço público. Serão queixas que não dão em nada por serem contra desconhecidos? Talvez. Mas ficam registadas, para que não se faça de conta que este tipo de crime não existe. E ficam divulgadas para que se exponha a cobardia constante destes imbecis anónimos.