
Durante as semanas em que decorreu a última campanha eleitoral, David Dinis convidou várias personalidades para, no seu podcast, nos dizerem quais são, em sua opinião, as razões “por que falha o Estado”. Fiquei de escrever sobre a matéria, mas os resultados do sufrágio fizeram com que me tivesse desviado.
O país tem um novo Governo que resulta das eleições. Não corrigindo erros que eram visíveis na orgânica e nas personalidades, este segundo executivo de Luis Montenegro tráz consigo uma ambição – reformar o Estado.
A personalidade escolhida, que parece ser respeitada por alguns setores da sociedade portuguesa, virá imbuída de boa vontade. Terá, até, belas ideias que podem ajudar a compor a boa imprensa, mas há uma questão de princípio – o verdadeiro Estado não se reforma. Gosto especialmente da consagração filosófica de Hegel quando afirma que este é a materialização do interesse geral de uma sociedade afirmando-se acima dos interesses particulares. São, portanto, as ferramentas que importa reformar e não o cerne de tal existência.
Para o que nos interessa, importa perguntar ao primeiro-ministro, em primeiro lugar, o que é para ele o Estado neste novo tempo. O Estado é toda a estrutura das administrações públicas e das entidades de natureza empresarial pública? É, também, toda a estrutura de órgãos de acompanhamento, consulta, estudo ou de aconselhamento? Será, ainda, toda a rede de entidades de natureza privada, cooperativa ou social que vivem com uma participação financeira significativa vinda do Estado?
E depois de respondias estas questões, há ainda outras que interessam. A reforma do Estado vai passar pelos restantes órgãos de soberania e amplia-se nas entidades reguladoras, nas regiões, nas autarquias, nas universidades, nos laboratórios e num conjunto de outras entidades com regimes de independência ou de autonomia alargados?
Não pararíamos de identificar novas interpelações perante a tal ambição de reformar.
Há, contudo, um primeiro grande embaraço para o novo titular da pasta – este nunca viveu, por dentro, as administrações públicas, as suas relações de poder, os centros de decisão que fazem atrasar, desvirtuar e esquecer as grandes determinações “reformistas”.
E, na senda do primeiro grande embaraço, há um segundo, muito mais problemático – estão os ministros à altura de tal pretensa reforma? Conhecem as entranhas de cada ministério e de cada serviço para poderem negociar com os dirigentes as mudanças? É aqui que me parece haver o mais relevante entrave para o sucesso. Nenhuma melhoria se faz sem a sua contratualização com os poderes fáticos.
Ao longo das cinco décadas de democracia, houve várias tentativas de se promover uma reforma do Estado. Cada uma dessas tentativas era motivada por razões ideológicas, gestionárias, tecnológicas. Porém, o Estado só teve dois momentos em que chegou a ser pensado de forma mais estrutural: 1º entre 2005 e 2008, no melhor governo de José Sócrates; 2º entre 2012 e 2104, no tempo da intervenção externa.
Quanto ao primeiro, que vivi por dentro e que assistiu ao nascimento do Cartão de Cidadão e do Documento Único Automóvel, o resultado foi muito positivo na simplificação administrativa. O SIMPLEX foi de tal forma um sucesso, que veio até 2019 com alma. No termo da segunda década deste século, já estava condenado e não foi possível encontrar um novo desígnio para ampliar a simplificação e a modernização. A grande alma do SIMPLEX, Maria Manuel Leitão Marques, conhecia a administração, mas, mais do que isso, não parava de gostar, provocava, inovava, premiava.
O segundo momento, foi o da Troika, não houve reforma do Estado, houve implosão de serviços, desconexão das decisões, desconhecimento da realidade das AP’s.
O tempo que vivemos é de desafios. Talvez estejamos a entrar, pela primeira vez, num terreno para o qual não temos as ferramentas de controle suficientes. É exatamente por isso que não podem ser adiadas muitas decisões que são urgentíssimas.
1ª decisão – como promover a transformação digital, designadamente para o uso de ferramentas IA, sem provocar uma revolta nos serviços, sem deixar de cumprir as obrigações públicas e sem ter em conta o equilíbrio territorial?
2ª decisão – como obrigar todas as AP’s a darem-se a conhecer por forma a que se promova um autêntico mapeamento dos serviços e dos recursos?
3ª decisão – como fazer com que todos os dirigentes assumam a necessidade de uma reinvenção de procedimentos, de licenciamentos, de financiamentos e de avaliação?
É tendo em conta o enquadramento que referi e as perguntas que acima fiz, que passo a identificar o que em minha opinião deveriam ser os atos primeiros do ministro se este quiser deixar uma marca.
- Construir uma sala de comando com instrumentos de verificação visual e que partam dos ministérios, se desenvolvam pelas direções-gerais, pelos institutos, pelas empresas, pelas equipas de projetos e por outros organismos até ao nível territorial mais pequeno;
- Identificar nesse cenário a localização de cada unidade, com os respetivos recursos humanos e financeiros;
- Determinar que a partir de 1 de outubro e até 31 de dezembro os ministérios devem confirmar todos os dados situados numa grande base de dados das Administrações Públicas a criar e que esta não seja implicada pelas existentes;
- Abrir dois canais de comunicação (interno e externo) onde os cidadãos e as entidades possam entregar propostas de mudança nos serviços públicos que, depois de recebidas, são agregadas por ministério;
- Assumir que, salvo instituições de segurança, saúde, educação e apoio social e outras com responsabilidades na execução no PRR, todos os apoios do Estado serão suspensos até à apresentação de justificação sobre a manutenção de acordos, protocolos e outros compromissos;
- Determinar que as despesas feitas, para além das acima referidas, não terão suporte legal e os funcionários ou agentes que as autorizarem serão responsabilizados pessoalmente pelo regresso aos cofres do Estado;
- Criar três grandes aglomerados de funcionários e agentes, não incluindo as carreiras especiais, que reúnam os ministérios 1) Negócios Estrangeiros; Defesa, Justiça, Segurança e Presidência; 2) Economia, Coesão, Infraestruturas, Habitação, Ambiente e Agricultura; 3) Educação, Ciência, Cultura, Ensino Superior, Juventude, Desporto, Saúde e Segurança e identificar todos os contratos de profissionais liberais e de empresas de trabalho temporário;
- Fazer com que se promova uma radiografia dos recursos humanos tendo em conta as habilitações, a localização, a formação, a progressão e, muito importante, a média etária;
- Determinar que a partir de janeiro de 2026 todas as novas admissões nos quadros diversos do Estado passem a ser feitas tendo em conta a existência prévia de curso profissional para as carreiras operativas e de apoio e que todas as restantes carreiras passem a admitir, como base, unicamente licenciados;
- Aprovar um regime especial de entrada e promoção, nas áreas técnicas das AP’s, para doutorados e técnicos oriundos do setor privado com carreiras já consagradas;
- Definir, ainda, a partir de janeiro de 2026, um regime especial (como o que vigorou a partir da década de 1990 para os “informáticos”), para todas as admissões destinadas aos quadros que vão promover a transição digital e a criação de auditorias internas nos serviços;
- Voltar a rever a lei das Ordens profissionais, agregando-as por áreas de atividade e retirando-lhes a competência para acreditarem diplomas e certificações estrangeiras.
- Lançar um programa obrigatório de formação em IA, contratualizado com universidades, universidades politécnicas e outras entidades do ensino superior, tendo como base os atuais territórios distritais, para todos os funcionários das AP’s;
- Identificação e reorganização das redes e sistemas informáticos e de comunicação, bem como a redefinição das condições de segurança e acesso;
- Para além de ser determinado o pagamento de IMI de todos os bem do Estado, lançar a Base do Património, on-line e de acesso público, com o estado, o uso e o valor patrimonial de todas as inscrições matriciais, a que deve juntar-se a possibilidade de qualquer pessoa individual e coletiva se candidatar à sua compra; nomear a Unidade de Gestão do Património Público do Estado;
- Reconfigurar o setor empresarial do Estado, atualmente com 348 empresas, determinando alienações, concentrações e reorganizações;
- Rever a lei de organização e processo do Tribunal de Contas ampliando as suas competências de auditoria, de acompanhamento, de pedagogia e formação de auditores e determinar os regimes de recursos das decisões da 3ª secção que não estão conformes com o nosso Estado de Direito Democrático;
- Aprovar o aumento dos recursos dos tribunais administrativos e fiscais para o dobro até 2029;
- Determinar que todos os serviços do Estado promovam uma revisão regulamentar e de procedimentos nos primeiros 180 dias de 2026, identificando a realidade atual, a que se propõe e passe a vigorar e, ainda, os impactos;
- Fazer aprovar um diploma que obrigue o Governo a preparar, para 2027, um Orçamento de base zero como forma de se poder qualificar a despesa e se identificarem todos os centros de custos.
A concretização deste trabalho vai até ao final de 2026.
Há que definir, também, logo no início dos trabalhos, os campos de intervenção. A empreitada desejada deve olhar, de forma holística, para os seguintes universos: a) funções; b) estrutura; c) património; d) recursos humanos; e) recursos financeiros; f) recursos tecnológicos; g) aparato legislativo e regulamentar; h) regime de taxas; i) engenharia de processos, ergonomia e reorganização do trabalho; j) património.
Pode o governo fazê-lo a partir dos serviços que hoje existem nas AP’s? Poder pode, mas o ministro sairá sem deixar memória. A criação de uma unidade de missão é uma obrigação que deve ser acompanhada de uma tutela partilhada com o ministro das finanças no que se refere aos departamentos que “gerem” as administrações públicas e o património; com os diferentes ministros no que se refere às secretarias gerais e aos departamentos de informática e de controle de despesa.
Há, porém, decisões urgentíssimas por se relacionarem com os maiores aglomerados de despesa.
- A Segurança Social precisa de reunir os seus sistemas informáticos com a Autoridade Tributária e criar uma tesouraria única e os números fiscal, e saúde e de segurança social devem unificar-se; o apoio social carece de novas ferramentas de controle de despesa e de acompanhamento das prestações sociais, devendo estudar-se a sua unificação; deve promover-se uma revisão completa do enquadramento do RSI e avaliar o seu impacto; alterar-se as formas de controle das baixas médicas e do subsídio de desemprego, designadamente através de modelos de conferência que utilizem IA;
- O Sistema de Saúde precisa de ver associados os Serviços Partilhados com os SUCH; o Instituto do Sangue e da Transplantação com o Instituto Ricardo Jorge e deve ver extinta a Entidade Reguladora da Saúde passando as funções desta para a DGS; precisa de retirar os hospitais universitários do universo das atuais ULS’s e juntar ULS’s em novas EPE’s que tenham robustez que estejam divididas em Algarve, Alentejo, Área Metropolitana de Lisboa Sul, Área Metropolitana de Lisboa Norte, Lisboa Oeste, Centro Litoral, Centro Interior, Área Metropolitana do Porto Norte e Área Metropolitana do Porto Sul; Interior Norte e Litoral Norte. Precisa de fazer terminar as nomeações partidárias e dotar os novos universos de hospitais e centros de saúde de administradores hospitalares de carreira (individuais ou em pool), escolhidos por concurso, que sejam responsáveis pessoalmente e criminalmente pela gestão e tenham participação, por prémios, nos resultados; as administrações das novas EPE’s devem ser constituídas por equipas nacionais ou estrangeiras que assegurem o serviço público, que sejam remuneradas de acordo com os resultados e que tenham prémios de desempenho de acordo com os ganhos em saúde;
- O Sistema de Segurança Interna carece de uma profunda mudança na presença territorial, na não sobreposição das forças, na utilização de ferramentas e recursos partilhados; a GNR deve integrar a Guarda Prisional e a Polícia Marítima; a PSP deve ser a força civil de base presente em todos os concelhos do país;
- A Defesa Nacional não pode ver o orçamento aumentar para valores proibitivos se o Governo não souber alocar orçamentos de outras entidades públicas, designadamente a Proteção Civil, e não conseguir fazer uma profunda reestruturação dos ramos, da sua capilaridade, da sua operacionalidade e das suas obrigações públicas, tendo sempre em conta o uso múltiplo dos meios.
- As entidades que recebem do Estado mais de 25% das suas receitas correntes devem conhecer, até ao final de 2025, o novo regime de organização, funcionamento e transparência que determine o uso obrigatório das regras claras de contratação pública, de contratação de pessoal e de incompatibilidades e impedimentos dos seus dirigentes associadas a limitações de mandatos.
Para além deste trabalho ciclópico, há a necessidade de promover uma revisão profunda do código dos contratos públicos, das obrigações de transparência, da localização das compras, do equilíbrio dos territórios perante aquisições de bens e serviços.
Desde logo, há que determinar a eliminação dos avisos dos concursos dos preços base; depois, importa que os portais base, que devem ser de acesso e fiscalização por parte da IGF e do Tribunal de Contas, devem passar a incluir os nomes dos membros do júri, os procedimentos de adjudicação associados à identificação dos subcontratantes, as revisões de preços, os trabalhos a mais e a menos e os montantes finais pagos. Tais informações devem passar a ser acompanhadas pelos documentos de autorização com a identificação dos responsáveis, os pagamentos feitos e a quem.
A reforma deve chegar, ainda, aos poderes regional, supramunicipal e local. A descentralização deve ser incentivada, mas não pode desresponsabilizar o Estado central. As leis das finanças regionais e das finanças locais não podem deixar de ser profundamente revistas e a desconcentração de serviços é um imperativo nacional. Se queremos que o país dos territórios deprimidos não desapareça temos de ampliar a presença da “função pública”. Um analista de processos contraordenacionais tanto pode estar em Lisboa como em Borba.
Este processo inicial (2025/2027) terá a tendência de se ir arrastando. É, por isso, necessário um grande cuidado para não se criar entropia. O que criou essa entropia no passado? O facto de se ter começado todo o processo com a ambição da redução significativa de pessoal.
Apesar de termos o maior número de funcionários e agentes de sempre, apesar do Estado ser responsável, indiretamente, pelos empregos de cerca de 200 mil pessoas que estão alocadas a instituições que desempenham serviços protocolados ou convencionados, não é pelas pessoas que importa principiar.
Talvez tenhamos mesmo de contratar mais para, depois, começarmos a ajustar os quadros tendo em conta os regimes de aposentação, as ofertas de formação e as saídas voluntárias.
É exatamente nos regimes de contratação de pessoal que importa atalhar o amiguismo e a endogamia. A reforma da CRESAP é inadiável, os júris dos concursos devem passar a ter membros sorteados a partir de bolsas nacionais; as provas devem ser elaboradas por especialistas em recursos humanos; as entrevistas devem passar a ser públicas.
Por fim, a perspetiva de longo prazo. Não há nenhuma reforma se ela não conseguir ser aceite por uma ampla frente parlamentar, se não for plenamente negociada com os parceiros sociais e se não tiver uma verdadeira e significativa disponibilidade orçamental. Reformar o Estado não pode ser só o corte de gorduras. Será, por obrigação, uma nova alocação de recursos humanos, materiais, tecnológicos e financeiros às reinventadas entidades e às novas responsabilidades que resultarem da transformação feita. É o redefinir dos processos e o aumentar a transparência, é ampliar o interesse público compatibilizando-o com as inevitáveis urgências dos interesses privados.
Ficamos por aqui. Só podemos desejar ao novo ministro os maiores sucessos.