O grande flagelo da violência contra pessoas não está nas ruas, está dentro de casa, de norte a sul de Portugal, pelo que é um perfeito absurdo o caminho que Marcelo deu ao desafio populista do Chega para discutir a segurança interna no Conselho de Estado. Primeiro, o Presidente pediu aos seus conselheiros que lhe dissessem se devia ou não fazer a vontade ao conselheiro Ventura; depois, invocou divisões no debate político para admitir, quando forem conhecidos os números do Relatório Anual de Segurança Interna, levar o assunto ao Conselho. Puro sadismo político de quem não se importa de ver os números serem torturados para que digam o que cada um quer que eles digam.

Marcelo Rebelo de Sousa deve ter-se inspirado em Carlos Moedas e nos outros autarcas que apostam no voto do medo como forma de travar o Chega, não percebendo que o alimentam. País nenhum do mundo, nem as ditaduras, vive com zero criminalidade nas ruas, mas querer fazer vencer a tese de que Portugal vive um momento de grande insegurança não pode ser apenas uma flagrante falta de memória. É mesmo a demagogia e o populismo a fazerem caminho e a criar na cabeça das pessoas a percepção de que a segurança pública está a ser posta em causa. Sem recuar muito, basta comparar com a década de 2000 e o aumento de crimes violentos, como carjacking, assaltos a bancos e roubos em transportes de valores, para percebermos que estamos longe, muito longe dessa realidade. Graças à sociedade como um todo e às diferentes forças policiais em particular. Devemos estar satisfeitos e baixar a guarda? É claro que não, mas convém ter as prioridades muito bem definidas.

Câmaras de tortura

São espaços físicos projetados ou utilizados para infligir dor física ou psicológica a uma pessoa, geralmente como forma de punição, intimidação ou coerção. Esta é a definição de câmaras de tortura, usadas ao longo do tempo, por regimes autoritários ou organizações criminosas, com o objectivo de causar sofrimento extremo e atingir o objetivo de submeter as vítimas. A expressão "câmara de tortura" para descrever o ambiente de uma casa onde ocorre violência doméstica, especialmente quando o espaço é transformado num lugar de constante dor, sofrimento e controle, tanto físico quanto psicológico, não é uma analogia meramente figurativa; em muitos casos, a violência doméstica apresenta características que lembram práticas de tortura, como isolamento, humilhação, privação e sofrimento prolongado.

Em nome, sobretudo, de milhares de mulheres e milhares de crianças que vivem em câmaras de tortura anos a fio, deixe que esta imagem o incomode. Visualize o sofrimento de crianças que crescem neste ambiente familiar; se todos o fizermos, estaremos mais capazes para exigir que a polícia, a justiça e a segurança social façam do combate à violência doméstica a sua absoluta prioridade. O Presidente da República faria bem em convocar o Conselho de Estado, e dessa forma todo o país, para inverter o ritmo galopante com que a violência doméstica e a violência de género matam em Portugal. Começamos o ano com uma mulher assassinada a cada semana que passou.

Não seja como os três macacos sábios (boca, ouvidos e olhos tapados) julgando que se não falar do mal, não ouvir nem vir o mal, o mal não existirá. Faço minha a pergunta da ministra da Justiça na abertura do ano judicial: “uma mulher de 46 anos foi morta pelo marido, em sua casa, no Barreiro, à frente dos seus filhos menores, de 6 e 14 anos. Foi degolada e ferida na barriga a golpes de faca e de tesoura. Chamava-se Alcinda Cruz. Enquanto isso, alguns dos presentes preparavam a mais importante cerimónia do ano judicial. Aqui estamos. O que temos a dizer aos filhos de Alcinda Cruz?"

Crime em família

A pergunta de Rita Alarcão Júdice é uma granada lançada na direcção de todos nós, não apenas da Justiça, mas a verdade é que Alcina Cruz tinha apresentado queixa em 2022 e a queixa tinha sido arquivada no ano seguinte. A ponta do icebergue mostra que a cada semana são reportados às autoridades mais de 500 situações de violência doméstica - as mulheres são as principais vítimas - e só 13% resultam em condenações.

A violência doméstica ou violência familiar é o crime contra as pessoas mais reportado e, na criminalidade geral, só os furtos são mais comuns. Na população prisional, a violência doméstica e os seus agressores representam um em cada dez reclusos, mas nem uma outra atitude da justiça tem sido suficiente para travar esta calamidade pública. Por certo, não ajuda rigorosamente nada que o primeiro-ministro desvalorize o aumento do número de queixas, alegando que isso não deve representar um aumento do número de crimes, ao mesmo tempo que valoriza e alimenta a percepção de que o crime está a crescer nas ruas, coisa que os números conhecidos não confirmam.

De acordo com os dados e estudos disponíveis, muitos dos casos de pedofilia e abuso sexual de menores ocorrem predominantemente em contextos familiares ou em ambientes próximos da criança, em câmaras de tortura em que a proximidade facilita o acesso à vítima e dificulta a denúncia, já que frequentemente há medo, vergonha ou dependência emocional. É nesta altura que lhe sugiro a leitura da newsletter A Beleza das Pequenas Coisas de Bernardo Mendonça, onde se mostra que tudo pode ser diferente. Mas é preciso querer.