Já se entrelaçou nas vozes dos que estiveram em Roma para trabalhar na Roma que aqui está um clube de relação esquizofrénica com as expectativas, o que se entrelaça com um imbróglio de perceção própria. Entre romanos existem os romanistas, estirpe que na memória só tem três scudettos conquistados dentro de uma história magra em títulos, em peso palpável do que costuma rechear o intangível que é a aura de um clube. Mas por alguma razão, ou várias, o estádio olímpico se encavalita de gente a meio da tarde de um dia de semana para o play-off da Liga Europa e lá em baixo, no relvado, praticamente todos os catraios que entram de mão dada com os jogadores encostam uma mão de polegar e indicador esticados por baixo do nariz quando a câmara de televisão lhes passa à frente.

Os bigodes figurados dessa canalha toda, a imitar o gesto de mão característico que Paulo Dybala faz a cada golo que marca, terão murchado, aos 27’, quando o encontro pasmaceiro, nem por isso mal jogado embora soturno de jogadas capazes de desmontar as defensivas adversárias, conheceu a trapalhada numa das áreas.

Tentava a Roma atrair a pressão do FC Porto e ludibriá-la pelo uso do guarda-redes quando o pé direito de Mile Svilar comprometeu com um passe mal feito para Leandro Paredes, que escorregou ao sentir a respiração de Eustáquio. Houve um roubo ali, ainda evoluiria para uma carambola entre ressaltos, a cabeça de Fábio Vieira interveio e a bola ficou a pingar sobre tanque musculado que é Samu, pelos vistos capaz também de acrobacias: o avançado armou uma pedalada e marcou de bicicleta o golo que simpatizou a partida com os dragões em dose generosa face à sua produção no relvado.

A desfeita desse erro irritou, ou pelo menos estorvou, os chacras de Paulo Dybala. Na jogada seguinte, quando Otávio lhe ganhou a frente, esperou o encosto maroto e se deixou cair sobre a bola, o argentino pontapeou-la já depois de o apito da falta se ouvir. De enervado passou a amarelado. Como no Dragão, os italianos espelhavam a estrutura portista, eram três centrais, dois alas, um par de médios, três atacantes de cada lado e um retrato simplista da lição seria sumarizar que as dinâmicas da Roma, sobretudo fomentadas pela junção de dois ou três jogadores, surtiam mais efeitos porque tinham, e têm, melhores intérpretes do que o FC Porto.

Remetido durante a primeira parte a muito pouco além de se contentar em manter a posse de bola com passes nem muito rápidos, nem muito lentos, presos no rame-rame de um coletivo ainda a apalpar o à-vontade nas intenções do novo treinador. Nada criavam além do aproveitamento do erro que daria o golo. Tentavam deixar Fábio Vieira de frente para o jogo, mas nem sempre o lograva, Alan Varela certeiro, mas lento de ações. Os centrais eram o desconforto em pessoa se pressionados apesar de o FC Porto sempre querer sair curto, nem que fosse para atrair a primeira pressão. E num pontapé de baliza que repetiu pela segunda ou terceira vez, juntando Eustáquio à linha dos centrais, na esquerda, a Roma já topara a intenção a léguas.

Quando o médio, chegada a bola, a bateu longa para Samu, logo a posse foi desbaratada e prontamente desfrutada pelo mais letal entre os giallorossi, certamente o único genial, tantas vezes intermitente na carreira e não em Roma, ou quiçá neste dia em específico. A jogada chegou a Dybala, ele virou-se à baliza, passou forte a Shomurodov, que o conhece de ginjeira e devolveu a tabela para o argentino ir área dentro, bola colada ao pé, para a picar à saída de Diogo Costa. A criançada já podia puxar das mãos, o talento do bigode impunha-se (35’) no jogo.

Fê-lo à sua maneira, como jogador que é de arrastar uma partida para onde lhe convém, monopolizando a ação, sendo íman do que pretende. Pouco tardou à Roma até então agarrada a cruzamentos de Angeliño ou Pellegrini a render-se à força gravitacional do líder espiritual de um lado grená da cidade sedenta por heróis, presa fácil para idolatrias. Noutra investida pela direita, esta ainda com menos nesgas de espaços, entre uma floresta de pernas e corpos, Dybala pediu o toca e vai a Koné e com a devolução rematou a bola ao poste mais próximo (39’), não ao distante, enganando o guardião do FC Porto.

E curiosamente, nesta tarde virada noite, o argentino não levou a mão à cara, dispensou a sua assinatura.

O reatamento da partida seria funesto. Entre duelos e disputas rasgadas, com o jogo a aquecer, num minuto os dragões pediram o segundo cartão para Dybala e no outro viram Eustáquio a barafustar para o ar na direção do balneário. O VAR chamou o juiz a ver a resposta do médio à provocação de Leandro Paredes, o luso-canadiano foi expulso (51’) e no instante dessa decisão se escreveu na pedra que o ancião Claudio Ranieri e o jovem Martín Anselmi haveriam de ter palavras sobre arbitragem após o jogo, como ambos tiveram antes. Até lá, a tarefa enegreceu para o FC Porto, a perder na equipa além do que já lhe fugia no resultado e no jogo jogado.

Embalada pela superioridade, a Roma acentuou a sua soltura, deixou-se levar pelo empanturramento de espaços. Levava as jogadas com outra rapidez contra a área dos dragões, Shomudorov teve um golo à distância de um dócil encosto, mas a bola desobedeceu-lhe para pular sobre a barra. O golo não queria nada com o usbeque, nem quando o pensou ter marcado, lançado no galope por outro raide com supercola no pé de Dybala, possuído pela sua missão de destoar no relvado do olímpico. O avançado estava fora de jogo, ele e todos os restantes por comparação com o argentino, que também teria o seu remate, meio no ar meio em queda, dentro da área.

O certo relaxamento da Roma a partir da hora no relógio, achando estar confortável no trono, combinou-se com o recuo de Fábio Vieira para o meio-campo, onde na companhia a Alan Varela deu ao FC Porto o rasgo nas zonas onde se pensam as jogadas. Na inferioridade, a equipa teve períodos de melhoria, ia chegando à frente, tentava lançar os laterais, ir até Samu. E esteve perto de retornar ao marcador quando pensou numa auto-estrada até ao seu peculiar matulão de qualidades tão específicas. Diogo Costa agarrou uma bola, pontapeou-a logo para a frente e foi uma má receção de Samu a provocar o ressalto que o seu esforço por remediá-lo originou, ao intercetar um passe de Ndicka.

Lá foi o possante monte de músculos em direção à baliza, direto a Svilar, locomotiva sem freno que atabalhoadamente, já aos solavancos e sob pressão, rematou contra o poste.

Os 20 minutos que restavam foram preenchidos por um FC Porto cedente, a fazer os possíveis, absorto no jogador a menos e nas impossibilidades com que tal o afetava. A equipa não tinha armas, não ligava jogo, nem com Rodrigo Mora a conviver com Fábio Vieira a lacuna era disfarçada. Os dragões já eram uma intenção, continuaram a sê-lo, mas apenas isso, uma vontade em jogar curto, um passe de cada vez com a equipa junta, sem produto final. A bola no poste tocou o alarme para a Roma, acordou da sesta, recorreu de novo ao talento demasiado de Paulo Dybala.

Quando o argentino já fazia de avançado, desengatilhou uma jogada para lançar Angeliño na esquerda, zarpar de novo para a área e o cruzamento rasteiro do espanhol lhe escapar por um triz e acabar em Niccolò Pisilli, miúdo outrora criança para entrar de mãos dadas com os jogados, rapaz formado em casa que fez o terceiro golo (83’). Pouco depois o génio de Dybala iria descansar, despedido por uma arena a ovacioná-lo em reverência. Já do banco viu o carrinho com que Devyne Rensch, virado para a própria baliza, desviou a bola cruzada por Gonçalo Borges já nos descontos, selando um golo inócuo, sem tempo para ter qualquer seguimento.

O Olímpico acabou com uma noite de substância para venerar o seu canhoto argentino, único futebolista, por méritos provados, com aura equivalente à exacerbada na cabeça dos giallorossi. Paulo Dybala foi o talento divergente no jogo em que o FC Porto convergiu com a sua própria realidade, presa à intermitência, à bitola que por muito que se queira está bastante abaixo dos anos anteriores - quando já voava com pouca altitude. Ao sexto jogo, Martín Anselmi perdeu e os dragões estão fora da Liga Europa que André Villas-Boas augurava ser para tentar conquistar. A Roma deu em Roma um bigode a essas pretensões.